quarta-feira, dezembro 31, 2003

Catorze.


"Como Eric também se perdeu"



Terá sido assim: "Deviam ser umas oito da noite e eu vinha da praia. Tinha combinado qualquer coisa com duas miúdas que conheci da parte da manhã na piscina do hotel e estava atrasado. Como uns tipos locais me tinham falado de um caminho mais curto através das montanhas, decidi arriscar. Durante quinze minutos atravessei o verde das encostas absolutamente sozinho sem que um único carro se cruzasse comigo e eu comecei a achar que ou me tinha enganado no caminho ou era alguma brincadeira dos nativos com os turistas. Ou mesmo qualquer coisa pior, qualquer intenção criminosa que se escondia por detrás da informação que me haviam dado. Entretanto, a estrada começou a apresentar-se-me em pior estado, piorando a cada quilómetro. A paisagem não era desagradável. A situação era." Nós líamos aquilo atentamente e ninguém se atrevia a interrompê-lo.

"Ao fim de uma hora eu continuava na montanha e sem perspectivas de sair dali. De repente, numa curva, apareceu-me, ao longe, uma grande quantidade de luz que eu não reconheci imediatamente. Andei mais alguns quilómetros, parei o carro e, com a ajuda de binóculos, reconheci tratar-se da cidade onde eu estava hospedado. Calculei que, apesar do tempo que já havia perdido, quinze minutos pôr-me-iam no lugar que eu queria. Ora, estando as montanhas à minha esquerda, e a cidade à minha direita, vendo-me constantemente a curvar no sentido contrário a esta, embrenhando-me cada vez mais na serra, aproveitei, quando me apareceu uma estrada nova à minha direita, para mudar de direcção. Durante uns dez minutos rolei entre o pó e a bruma. Continuava a descortinar as luzes da cidade ao longe mas, por mais atalhos que eu tomasse, não havia maneira de me pôr na estrada principal que me era familiar. Umas duas horas e meia depois, aconteceu o pior. Gasolina, zero. Sai do carro, dei três pinotes e amaldiçoei os tipos que me tinham aconselhado o trajecto. Eram praticamente onze da noite. Estava cheio de fome, tinha a certeza de que as miúdas não estavam à minha espera e não fazia ideia de como ia sair daquilo. Encostei-me ao carro e, com uma emissora local sintonizada, comecei a beber um pacote de leite. Imaginam o que aconteceu então? Saiu-me ao caminho um velhote a cantarolar a mesma canção do folclore local que saía da porta do Jeep. 'Eh lá!', interpelou-me ele placidamente, monocórdico. ("Interpelou era um termo típico do Eric. Tique de advogado.) Puxava uma espécie de carripana com duas rodas atulhada de ferramentas e outras coisas que eu não pude distinguir. 'Allah hu acbar.' - foi a primeira coisa que me saiu entre dentes. Uma coisa que aprendi com um cliente árabe que não parava de ma repetir depois de ganharmos uma causa perdida. Qualquer coisa acerca de uma francesa que ele tinha comprado para o filho."

Nós continuávamos a ouvi-lo atentamente. Nessa altura, como agora, éramos um grupo de cinco e encontrávamo-nos umas duas ou três vezes por semana. Além de mim, da Kate e do Eric, havia ainda o Johny Boy, era assim que ele gostava que o tratássemos, que tanto nos falava de Nova Iorque como de Londres - às vezes vinha acompanhado de uma rapariga ruiva e alta, modelo, pelos vistos - e, em Osaka, o Songo-Han. Na altura, foi o único que notou que alguma coisa não estava bem. Comigo. Depois, há sempre aqueles que vão e vêm. É com este grupo que eu liberto as minhas vergonhas mais inconfessáveis, nem todas. Mas ouçamos o resto da história do Eric.

"Pela explicação do velho, rapidamente percebi que nunca, por mim, voltaria a encontrar o rumo certo. A estrada principal, a marginal, estava ali mesmo ao lado, mas grande parte destes caminhos onde nos encontrávamos eram particulares e conduziam a velhas minas arruinadas e sombrias. Foi isto mesmo que ele me disse. Ele próprio que era, ainda, o proprietário da única mina em funcionamento. Apenas ele a trabalhava e, dir-se-ia, pelo seu aspecto e pela forma como transportava o material de trabalho, que a mina, mais do que a sua felicidade constituía para ele fonte de miséria e de frustração. Eu não podia estar mais enganado, como mais tarde constatei. Aquele velho era absolutamente feliz. Feliz. Notem bem, eu digo feliz na inteireza do termo. Estou a dizer-vos, feliz. Algo para nós completamente desconhecido. No extremo da miséria, algures em nenhures, nas latitudes do fantástico, do essencial, ele não guardava em si qualquer mágoa pela vida.

Tudo isto, eu fui-o sabendo enquanto subíamos um carreiro até à sua casa. Era assim que ele chamava um barracão pré-fabricado com a fibra de vidro já a mostrar-se entre as placas retorcidas pelo sol e pela chuva. Apenas um candeeiro iluminava a cena quando chegámos ao pátio onde deixou o carro com as ferramentas. Eu acompanhei-o confiante na promessa de uns litros de gasolina que, aparentemente, eram, aparte um velho rádio de pilhas, os únicos resquícios de civilização que guardava. A gasolina, pelo que me explicou, servia um motor que em tempos utilizara na mina para puxar o vagão. Mas agora apenas se servia da sua própria força e cada pepita era duplamente compensadora. A promessa incluía também um percurso guiado até às raias da civilização. Que eu desconfiava significar coisas opostas para ambos. Estávamos na cabana, ou como lhe queiram chamar, onde ele tinha a chave de uma pequena arrecadação onde guardava as ‘alfaias’. Mandou-me entrar e saiu 'por la gasolina'. Eu sentei-me numa poltrona velha que me indicou e, durante breves instantes, examinei a habitação escassamente iluminada por uma gambiarra. Aquilo era como um estúdio, uma única divisão com a cama a um canto, uma espécie de cozinha a outro e, por fim, o que seria a sala a ocupar dois terços do espaço. Aí pusera a poltrona onde eu me sentara, uma mesa e duas cadeiras. Duas cadeiras; estaria ele à minha espera? Só mais tarde me apercebi de um pormenor curioso. Entretanto, o velhote apareceu na ombreira da porta, com a lata na mão. Já não estava tisnado e trazia roupa lavada. Um par de minutos depois tínhamos regressado ao local onde eu deixara o carro. Fizemos todo o percurso em silêncio. Quando esvaziei a lata para dentro do depósito perguntei-lhe quanto lhe devia. Ele riu-se. 'Por agora, nada. Talvez um dia.', respondeu-me. 'Gostava de ser desprendido como o senhor.', disse-lhe. 'A matéria não é tudo. Não se deixe apanhar por isso. Não faz bem à saúde.', tornou-me, com um sorriso fechado; fiz-lhe um sinal afirmativo com a cabeça. Então, inesperadamente, quando nos preparávamos para partir, perguntou-me se eu não queria jantar com ele. Eu disse-lhe que se fazia tarde e que não queria incomodar, mas ele insistiu. Percebi que não poderia dizer-lhe que não. Voltámos à cabana. Assim que entrámos ele sintonizou o rádio. A música era agradável e dava um aspecto estranho à cena. O velhote preparava o jantar no outro canto da casa, assobiando descontraidamente a melodia que saía do aparelho, como se lhe fosse já familiar. Só então me apercebi do pormenor estranho de que vos falei há pouco e que me teria escapado completamente se eu estivesse naquele momento a caminho da marginal. À esquerda de quem entrava, quase em toda a extensão da parede, na penumbra, uma biblioteca distribuía-se pelas prateleiras de um móvel de pinho escuro. Eram centenas de livros, se não milhares, aquilo que os meus olhos acabavam de descobrir. Levantei-me. Eram livros de filosofia, de história, de música, de direito, romances, ensaios, poesia. Até uma banda desenhada do Corto Maltese, não sei se conhecem. O velho voltou-se, viu-me de pé junto ao móvel e sorriu. Não disse nada. Ou disse, sim, disse. "Não pude desfazer-me disso."

Veio depois até ao pé de mim e estivemos em silêncio a ouvir música enquanto o jantar cozia. O mais surpreendente aconteceu depois. Dispostos os pratos e os talheres, o velhote trouxe a panela para a mesa. Antes de me servir pediu-me desculpa. Pediu-me desculpa porque apenas tinha batatas cozidas para me oferecer. Servimo-nos e jantámos em silêncio. Não me perguntem porquê, foi a melhor refeição que eu já tive. Nunca para mim uma refeição foi assim completa.

"Quando nos despedíamos, já na marginal, eu voltei a agradecer-lhe por tudo, tomando-lhe ambas as mãos nas minhas. Ele voltou a desculpar-se pelo jantar e, então, eu senti os olhos húmidos, apertei-lhe mais as mãos entre as minhas e corri para dentro do carro. Ainda hoje sinto o coração enternecido ao pensar nisto e apenas me atrevi a contá-lo a vocês."

Tudo isto nos foi narrado em poucos minutos à velocidade dos dedos do Eric, deixando-nos sem ar e sem vontade de dizer mais nada. Confesso que nunca esperaria que tal história viesse a passar-se com o Eric. Que na verdade não era história. Tinha sucedido justamente ao Eric.



Votos de bom ano novo para os meus leitores, até para o ano

terça-feira, dezembro 30, 2003

Doze.


Ser um zero à direita. Sem vírgulas.



Tenho 29 anos. Doutorado aos vinte e cinco com uma tese sobre Berkeley. Solteiro. Amo os meus pais e eles não me amam apenas por ser o único filho que têm. O meu nome é Andrés Filip; a maior parte do tempo acho-me uma merda, o resto do tempo, um génio. Adoro mulheres, cerveja preta e Gustav Mahler. Apaixonei-me uma vez na vida mas tarde demais. Gosto de ajudar os outros e ainda pretendo um dia ser feliz. Eu - tudo o resto é acessório.

Eu. Duas semanas atrás. Sem tempo para o senhor director, pai de uma menina mimada que conseguia ser mais perversa do que ele; o senhor director que estimava os meus oitenta quilos a peso de ouro. Eu não precisava disso. Não devia precisar disso. São os confortáveis sucessos que enterram os homens. Hábitos terríveis que se cultivam como virtudes. Não. Fui enganado. Oitenta quilos e deixei que me empurrassem para trás. Enganado. Eu não era nada. Estes acontecimentos fantásticos mostravam-me isso mesmo. A vida deixava de me poupar ‘às coisas mais obscuras’.

Tinha acabado de pedir mantimentos para vários dias. Haviam-se acabado no dia anterior com as últimas caixas de cerveja Guinness. Desliguei o telefone e o computador. Agora, era de mim que se tratava. Não podia continuar a adiar o futuro que me restava ad aeternum, como uma representação nos poucos espelhos que me restavam. Pensei em ligar para os meus pais, mas a angústia que eu sabia que lhes iria causar tudo aquilo seria para mim ainda mais insuportável do que todas as desesperações que me haviam trespassado nos últimos dias. Era impensável. Como iria eu explicar-lhes tudo aquilo? Explicar-lhes que, subitamente, algo me fazia falhar uma vida já de si falhada. Ainda que não soubesse o quê.

Fiz a lista das minhas necessidades quase decalcada da anterior com duas ou três excepções; juntei-lhe também uma escova de dentes. Pedi que as coisas me fossem deixadas à porta com o código de pagamento da web que entretanto eu perdera. Eu não queria confrontos desnecessários.




Treze.


O artigo estava entregue



Dia 19. O artigo estava entregue. Apesar de tudo, o artigo estava entregue.

Algures a meio dessa terceira semana. Eu estava a ligar o modem para fazer qualquer coisa quando reparei numa folha a uns dois metros do faxe, debaixo da minha chaise-longue. Dizia apenas: ÓPTIMO, FANTÁSTICO, ATÉ SEGUNDA. Era por isto que eu gozava de toda a liberdade do mundo. Todos os meses me saía um óptimo, fantástico até segunda. Já devia estar ali desde o dia anterior. Era de Gustav, um publicitário espanhol que trabalhava no departamento de marketing e que na minha opinião percebia mais de literatura do que todo o conselho editorial da revista, consultores e demais "oculinhos" com aspecto de cerzideiras, sem ofensa para as cerzideiras. Pesava nisto a paixão ainda pura que ele tinha pelos livros. A mesma paixão que o levava a surripiar e ler os meus artigos antes dos ditos censores. Um tipo à maneira. Com umas camisas um bocado maricas, mas à maneira.

Passei o resto da semana a ver televisão, o que pode parecer-vos uma forma improcedente de lutar pela minha integridade intelectual, ou qualquer outro tipo de integridade. De facto, não é. E posso argumentar como os antigos romancistas, vejam: da mesma forma que o médico receita o repouso para o corpo cansado e não a actividade física, também o alheamento de uma fonte de preocupações constituirá melhor medicina do que a cisma, e por aí fora. Garanto-vos, a única coisa que me passava pela cabeça era ficar ali, em frente da televisão, a zappear o cérebro.

Quando não estava a ver televisão estava a dormir, a comer, no quarto de banho em frente ao espelho, vigiando-me, ou a viajar na net, alturas em que aproveitava para procurar casos semelhantes ao meu; esta última actividade dava-me grande prazer, é que, tendo-me ligado há poucos meses fiz já grandes amigos. Havia a Kate, de Little Rock, Arkansas, 1 metro e 70, 58 quilos, medida 36, loura e olhos azuis; eu continuo a desconfiar que é um homem de barba rija. Em Paris, estava o Eric, advogado, 35 anos. Costuma deliciar-nos com detalhes perversos que usa nas defesas. No início não nos era muito simpático, no entanto, um dia em que chegou de férias, não me recordo onde, contou-nos uma história por que passou e deixou-nos a todos, tal a emoção que nos causou, convictos de que tinha coração, apesar de tudo. Talvez mesmo igual ao nosso, com dois ventrículos e duas aurículas.



Obrigado aos meus dois únicos leitores pela paciência, até logo

segunda-feira, dezembro 29, 2003

Onze.


Quantum mutatus ab illo!



O dia seguinte, à excepção das refeições, passei-o a tirar notas no diário. Isso levou-me algum tempo por causa das polaróides que acrescentei para ilustrar melhor o estado do meu estado. Fotografias de todos os ângulos. Cronemberg fotograma a fotograma. Era fantástico ver as fotografias assim espalhadas no chão da sala. Absolutamente natural, sem corantes nem conservantes. O que se tornava pecaminoso era o meu humor. Nem eu próprio o aguentava. Tentava controlar-me mas tudo o que conseguia era provocar esgares que me irritavam tanto como os gemidos histriónicos que me escapavam por entre os lábios e que eu sentia retorcerem-me a cara.

Ordenei as fotografias e colei-as num caderno de capas negras e duras acrescentando a data e uma descrição mais ou menos tosca. O que havia para ver estava à vista. Escrevi a data em letras de máquina e pus o caderno dentro de uma pasta: Face esquerda. Face direita. Frente. Legenda quase adequada - o sonho impossível de Tod Browning. O mundo encerra um número ilimitado de combinações. Desde a loucura até à loucura. Mas não era disso que se tratava aqui. Talvez com Gustav Mahler de comboio. No Irlanda-Mauritânia. Prados verdes. Passagem pela planície de Ampurdán com Dali e Gala a acenarem da casa de Port Ligat, ou Cadaqués, não me recordo onde os vi. Areias luminosas. O Sol a bater escaldante nas polaróides. Mas não aqui. Faltava acrescentar as notas. A descrição possível do improvável. O CD continuou. A Terceira no prato 1; o 'Langsam' à espera no 2. Seleccionei a função Repeat all. Ía ser assim a tarde toda. 'Bimm Bamm, Bimm Bamm...'. Se um dia me for, que me vá assim.

Voltei a olhar-me no espelho enquanto lavava as mãos. Confirmei, pela segunda vez, como eu, naquele momento, dependia mais do meu aspecto do que daquilo que era suposto ser capaz de fazer e para o qual, exclusivamente, me pagavam. Era mesmo assim, "Bimm Bamm, Bimm Bamm...".

Quando arrumei a pasta junto do computador, cheguei a pensar seriamente na causa daquilo. Seria inédito? Já teria ocorrido? Talvez a alguém tão escrupuloso quanto eu que ocultou a sua monstruosidade ao resto do mundo. Era-me quase impossível qualquer conjectura naquele momento. Que podia eu saber? Foi numa noite, com Dante, Borges e um desejo vil. Nada mais. Haveria ali o dom divino? Não quis pensar mais nisso.

Já com a noite perto da varanda comi uma lata de milho doce Heinz e bebi uma cerveja Guinness. Apenas os verdadeiros amantes Guinness a podem beber em casa. Os procedimentos devem ser precisos para não tornar a melhor cerveja do mundo numa mijoca preta sem vida. Enquanto lanchava, recebi um e-mail do escritório, depois um faxe e, por fim, uma mensagem no gravador. Tudo do dono da revista. O senhor director, editor e presidente que assinava documentos importantes com canetas feitas por medida. Talvez um dia vos conte a história. Não tenho qualquer simpatia por esse cabrão que todos os meses me põe um balúrdio no banco. Menos ainda depois do que aconteceu a Jean-Pierre, um velhote francês que trabalhava no departamento de segurança. Aturo-o por causa da filha, a Catarina, e porque me dá um certo gozo obrigá-lo a aturar-me a mim. Ele sabe-o mas é um animal e, sendo eu o Sr. Prof. Doutor, o menino-prodígio da casa, ainda não teve tempo para endireitar a espinha. Nessa tarde eu também estava sem tempo para ele. De qualquer forma, lembro-vos, era segunda-feira e eu tinha ainda vinte e quatro horas para entregar as provas, corrigidas e anotadas. As correcções, já eu, entretanto, as tinha feito, e as notas podiam muito bem sair em anexo, se bem que, nos livros que leio, as prefira em rodapé. É verdade, até eu tinha direito à preguiça em todas as frentes. A imobilidade total.

A imobilidade total. Curioso. Nunca chegou a passar-me pela cabeça. A esta hora até os senhores se devem ter já perguntado se eu não me preocupei com a possibilidade de morrer ‘daquilo’. Que não morri, é óbvio. Quanto a considerar a possibilidade de, bem, simplesmente não me ocorreu. Sentia-me mais um Quasímodo equipado com HB e Armani. Não. Nunca me ocorreu. Na altura em que dei conta do que se passava apenas me preocupou a minha imagem e depois já devia ser tarde demais para a coisa se tornar letal. E, no fundo, eu sentia-me bem. Já o disse e reafirmo-o, eu sentia-me bem. Preocupava-me mais como enfrentar a vida. Esta vida que se estendia à minha frente sem que eu tivesse movido um dedo por ela. Eu sou imortal. Esta era a minha maior angústia. Como suportar assim a eternidade.

Entretanto, outra Guinness. E outra, e várias preparadas ao mesmo tempo e bebidas ainda mais rapidamente. As latas amontoadas na mesa pequena ao pé da varanda. Esgotado o que tinham dentro, veio outra coisa. Se já viram uma lata Guinness devem ter reparado em dois números, 8º e 11,5%. Se já beberam Guinness depois de uma hora passada pelo frigorífico e vestida numa caneca grossa de vidro sabem o que esses números significam. Eu deixei de o saber meia hora depois. Novamente abertas as portas da percepção, voltei a sentir-me o senhor do mundo e despedi-me da gravidade física que me prendia ao chão. Os níveis de consciência clarificaram-se até ao absurdo e a realidade tornou-se complexa demais para que eu a pudesse suportar sozinho. Da caixa de discos saltou o vinil da família Stone e a dança começou. O Sr. Sly iluminou-me e deu-me energia suficiente para esmagar um elefante. Estava na altura de enfrentar os meus rins. Bexiga. Uretra, e por aí fora sempre a descer. Novamente - estava a tornar-se uma verdadeira obsessão - passei pelo espelho da casa de banho. Voltei a olhar-me olhos nos olhos.

O Sr. Sly tocava na sala. Não se pode dizer que tivesse sido um tipo bonito. Não na minha opinião de heterossexual com algum sentido de estética masculina. Provavelmente, estarei enganado. Mas estava ele na sala e eu, por acidente, de frente para o espelho. Bêbado. Completamente bêbado. Embriagado. Ébrio. Em suma, bêbado que nem um cacho. Como nunca, devo dizer-vos, senti o estado em que estava. E chorei. Chorei porque apenas então a minha alma se deu conta do corpo em que estava metida. Soube naquele momento. Já não era o eu racional mas uma qualquer parte oculta e vigilante que impunha a sua autoridade obscura e sem limites.

De novo, a garra afiada que não conhece contemplações e que recusa a análise antes de destilar o pânico frio e delirante veio cravar-se-me no peito. Como o soube naquele instante. Eu rumava sem norte e estava já perdido de toda a razão. A espiral era toda a descer e os gemidos na sala eram notícias da minha perdição. Arrastei-me para a sanita com a carapaça enfiada até ao pescoço e mijei tudo o que tinha para mijar, enquanto que quase tinha forças para chorar. Depois, não sei o que aconteceu. Sei que no dia seguinte acordei não na cama mas no sofá, enrolado num cobertor e numa toalha húmida, e sem o humor insuportável da tarde anterior; sei ainda que pela noite fora despachei uma garrafa de Porta dos Cavaleiros onde anotei no rótulo "Quantum mutatus ab illo!!!". De facto, como só então me dei conta.

PS - A novela crónica de uma escrita de há dez anos parece-me às vezes passada e custa-me a publicar. Mas eram os meus 25 anos e, como passei por eles, suponho que constituem um estrato da minha ossatura frágil e apanhada pelo reumático.

Já não é Natal

Regresso depois dos dias passados a consumir família. Dos dias à lareira de província e regados a pronúncia beirã. Dos dias em que o vórtice dos sentimentos culmina num cansaço de bem estar que já não se aguenta. Dos felizes dias. Regresso à capital, à minha cidade. À cidade que adoptei e me dá a luz única da rua que tive onde nasci mas que já não existe.

Até já

segunda-feira, dezembro 22, 2003

Dez.


O exame



Nada, para mim, é mais fantástico e
inesperado do que a realidade.

F. Dostoievsky


O primeiro exame. No dia seguinte. Domingo, portanto. Estávamos em Abril e chovia lá fora. Abri a janela. Já não chovia há alguns meses. Eram nove da manhã. O ar cheirava a terra molhada. Ninguém nas ruas. As árvores em frente escorriam um verde escuro e o cheiro da terra atravessava a rua até às minhas narinas. Por um minuto voltei a jogar à bola, encharcado até aos ossos, com os joelhos esfolados e as luvas da minha mãe rasgadas na palma das mãos. Fui sempre o número 1. Como a Camus, dava-me gozo voar em direcção à bola. Viver de frente para este parque abre-me de vez em quando essa parte da memória e por isso escolhi esta casa. Para poder voltar a ser criança de vez em quando. Entretanto, o disco do Popiggy, como lhe chamamos entre os amigos, rodava no prato Technics ligado à Sony. Voltei para a sala com os olhos húmidos e o "Isolation" no ar. A varanda estava alagada e eu fui deixando atrás de mim um rasto lacrimante com terra à mistura. As minhas orquídeas rejubilavam com aquele banho de vida. Baixei o volume e liguei a televisão que passava resumos de futebol da Segunda Divisão turca. Já era mais do que a hora: o primeiro exame.

Para não tornar o procedimento mais doloroso do que já iria ser, e dada a minha sensibilidade quanto ao meu aspecto físico, aproveitei para me familiarizar com aquilo à medida que me barbeava. Era de mim que se tratava agora, pensei enquanto aquecia a toalha de turco. Sentei-me na tampa da sanita, deitei-me para trás e cobri a cara até aos olhos. Um minuto depois já sentia que os pêlos me acariciavam os dedos à medida que passava a mão pelo queixo. Concentrei-me neles ao máximo e apenas olhava de relance para a parte superior, o que conseguia a custo, semicerrando os olhos. Peguei no creme Basic e espalhei-o primeiro com os dedos, depois usando o pincel e água quente. Apoiei-me com ambas as mãos no lavatório e aguardei um pouco, com os olhos em baixo.

Por momentos, distrai-me com os ténis brancos que Isabel me deu há uns anos atrás, as calças de linho amareladas e, já no espelho, a camisola azul-escuro por cima da t-shirt do Benfica. Estava frio. Iniciei a delicada arte do escanhoado. Eis, então, a forma da coisa. Sem contemplações. Logo acima da linha do nariz, que se mantinha praticamente intacto, a pele tinha-se reproduzido em grande quantidade e ora parecia calejada em pequenos tumores ora caía em pregas sobrepostas. No meio, as lentes negras, perfeitamente encaixadas. Depois, virando-me de lado, tinha, até às orelhas, dois canais esculpidos com nervuras grossas à superfície, veias que latejavam em golfadas de sangue e também bordejados de pregas, estas, ligeiramente maiores; como eram em grande quantidade e estavam sobrepostas, quando a minha cabeça se movia abriam-se em forma de leque. A cor cinzenta era uniforme e espelhava bem o meu ânimo. Mas eu começava a habituar-me àquilo. O que me incomodava era a ausência de sobrancelhas. Quantos animais se podem gabar de possuir um bom par de sobrancelhas? Nunca tinha pensado nisso, mas o grande segredo da humanidade é que um par de sobrancelhas nos dá um aspecto mais humano; mesmo que nos falte tudo o resto.

Surpreendidos, meus senhores? Incrédulos? Não fiquem, a realidade dos tempos modernos supera a ficção. Eis o aspecto da situação. Eu começava a habituar-me àquilo, o que abria perspectivas mais animadoras para as minhas capacidades. Ao fim de vinte minutos, já escanhoado e tendo atingido os primeiros objectivos, reparei que, olhando com atenção, as lentes ultrapassavam a barreira da pele e, por detrás desta, tinha uma visão nítida dos dentes molares. Baixei os olhos - vou continuar a chamá-los assim - até ao peito e puxei a roupa para cima. Lá estava o coração, um músculo vermelho vivo em movimentos sincopados, manchado num matiz negro. Por essa altura já nada me surpreendia. O sangue fluía lentamente em golfadas que se repetiam no meu espírito vital. Aquele negro devia ser dos meus pecados. "Eu não tenho sido bom.", pensei. Mas também não tenho sido mau, não como a maioria. Nunca chateei ninguém. Eu não sou mau. Apenas... brando. A maior parte do tempo acho-me um génio. O resto do tempo, uma merda. Posso garantir-vos, se o meu coração estava assim, o dos outros devia estar muito pior. Como os meus pulmões depois de semanas consecutivas de trabalho e Luckies sem filtro. Deixei cair as camisolas.

Voltei a olhar-me de frente, olhos nos olhos, e estendi o braço para o armário. Agarrei a tesoura. Por momentos, meu deus. Que grande pecado. Seria a mutilação o caminho redentor? Para Ele foi, por todos nós. Dizem. Talvez por mim também. E Judas? Não o irmão de Tiago. O outro. Que missão ingrata. Agarrei a tesoura, alterei a rota da lâmina, cortei o plástico de uma das amostras CK que uma amiga costumava mandar-me e espalhei-a pela cara, queixo e pescoço. Ardeu-me. Tinha de lho dizer. Não, o sofrimento puro não é redenção. É o caminho fácil. E quem ganha com isso o que quer que seja? Não é que eu encare a coisa unicamente do ponto de vista da utilidade, mas o princípio, encarado assim, acaba por se perder entre as vergastadas e os gemidos. Dedicar os fins de tarde a um gato vadio, pena suspensa. Dormir com urtigas na cama, estadia no hospital. Abençoados os pobres de espírito. Não os estúpidos. Swedemborg disse-o perfeitamente a propósito de um pobre homem que ganhou o céu sem estar preparado para ele. Vão lá e vejam. Leiam como o desgraçado perdeu a vida na privação e na prece mecânica.

Desliguei as luzes pensando como humano que quase não era que as coisas nem sempre são tão más como parecem, "Como irá isto acabar?".



PS- Já agora, e se não nos voltarmos a ver até lá, bom Natal

domingo, dezembro 21, 2003

Porque tantas palavras cansam





Um destes acima a todos os meus improváveis leitores. (Sem más interpretações.)

Até logo
Oito.


Eu sou eu no espelho. Sou?



Nessa sexta-feira deitei-me cedo. Era quase dia. A minha vida tinha mudado completamente para algo que eu desconhecia e eu tinha plena consciência disso. Desde pequeno que as mudanças, qualquer tipo de mudança, me perturbam e aquilo, para mim, aos vinte e nove anos, apresentou-se-me como uma execução em lume brando. Foram sentimentos deste tipo que se deitaram ao meu lado nessa noite. O horror por aquilo em que me transformara e a certeza de muitas manhãs a acordar no inferno aniquilaram as poucas forças que recuperei no sofá. Foi um delírio próximo da vertigem que me tomou pelo braço antes de se enrolar à volta do pescoço e cravar-me as garras na espinha. As horas de desespero dessa tarde e o tempo que levei a adormecer imerso nas mais negras visões são algo que não tentarei sequer explicar-vos. Estaríamos a perder o nosso tempo com uma insípida versão dactilografada. Como iria aquilo acabar?

No sábado de manhã - the day after, portanto - acordei com o cabelo emaranhado em suor e particularmente inquieto. Não sabia o que era. Estava tomado por uma estranha inquietação à procura de encaixar algures no cérebro assim que deixasse de estar mal-acordado. As más notícias voam e o cérebro estava ali tão perto. Em dez segundos, no momento em que levei as mãos à cara, acordei para um pesadelo, o pesadelo que me punha a alma a leilão. E eu não dava nada por ela. A pata cortante e hipnótica do delírio já começava a trepar-me pelo pescoço e em breve quereria enterrar-se no meu cérebro. Era impossível fugir-lhe. Todas as hipóteses de tudo não passar de um mau sonho como tive às dezenas em miúdo ficaram-me entaladas entre os dedos e, então, voltei a temer pela minha sanidade mental.

Eu sou um tipo sensato. Tenho de ser: formei-me em ciências físicas e doutorei-me em filosofia sobre o "Esse est percipi" de Berkeley. Para verem como eu sou sensato, era minha intenção escrever sobre os dados imediatos da consciência de Bergson mas uma amnésia temporária levou-me a iniciar a pesquisa sobre o bispo irlandês. Até por acidente sou sensato. Eu tinha de tomar uma decisão e reagir ao incontornável, mesmo que a vertigem começasse já a tomar conta de mim.



Nove.


Erving Goffman tinha a sua razão



Pontualmente, comecei a observar o mais rigorosa e friamente possível tudo o que dizia respeito ao meu estado. Físico, uma vez que fazia parte dos propostos da minha inquirição o total alheamento de qualquer tipo de psicometria. Ainda hoje tenho a certeza de que essa via apenas me iria afastar da serenidade que eu necessitava então mais do que nunca. No fundo, eu estava bem. Quer dizer, antes estava bem. Ter conseguido o que consegui com o artigo, para mim, dizia-me tudo a esse respeito. Tinha conseguido escrever o que o cérebro me ditara, o que queria dizer que o meu cérebro estava lá. E em forma. Para que assim continuasse, deveria, pois, limitar-me à observação física.

Outra decisão importante havia também saído da forma. Tinha posto de parte a hipótese de recorrer a alguém. Mesmo aos meus melhores amigos a quem sempre considerara o último refúgio em tempos de agonia. Era como se uma mistura de vergonha e orgulho me impedissem de me revelar ao mundo naquele estado; como se não os pudesse expor àquele constrangimento; como se os devesse proteger daquela mácula. É curioso, eu podia ter acabado de assassinar uma criança no berço e, no entanto, não teria problemas em ir ali abaixo comprar batatas ou Luckies; cumprimentaria as pessoas com um sorriso, falaria sobre o tempo ou sobre os resultados dos jogos do fim-de-semana; e à saída, provavelmente ainda com um pouco de sangue seco por debaixo das unhas, desejaria educadamente um bom dia a toda a gente. E todos me responderiam com um delicado bom dia e ficariam a gabar o meu Pierre Cardin em lã e viscose. Mas não então. Não assim. O estigma físico vê-se demasiado. Vê-se na distância e eu não podia deixar que aquilo me marcasse de uma vez para sempre.

Não sem antes lutar por mim. Durante a semana seguinte, observar-me-ia ao espelho quatro vezes ao dia depois das refeições, mantendo um diário com todos os pormenores relevantes. Depois, e só então, se ao fim desses sete dias não sentisse qualquer motivo de alívio, procuraria Pol que é médico e meu amigo por ordem inversa de importância. Procurando-o, poria tudo nas suas mãos, o diário, a minha cabeça, a minha salvação, tudo. Tomadas estas decisões, seguiu-se o primeiro exame.



(Esta coisa de publicar neste blog um conto com 10 anos é às vezes frustrante e quase infantil) Até logo

sábado, dezembro 20, 2003

Seis.


O cântico dos cânticos



Isabel. Mais velha do que eu quinze anos, quando eu tinha apenas vinte, foi para mim como uma mãe. Uma outra mãe. Adorava-a como nunca adorei nada na vida. Escrevia-lhe poemas infantis que acabavam sempre da mesma forma:

Não morreria por ti
mas diz-me e
Morrerei contigo
Hoje.

Isabel foi para mim a materialização dos contos de Annais Nin. Uma história de carne com prazeres abertos à minha adolescência sublimadora. Por que me lembrei eu de Isabel a propósito de Ugolino? O infame pai Ugolino. Claro, Isabel era uma segunda mãe que me pariu para os prazeres da carne. Uma mãe e eu nunca tive problemas, comi-a, por vezes durante horas e horas em banquetes devassos e sem pausas sobre a cama assim que ela chegava a casa não sei donde. Nunca lhe fazia perguntas. Não interessava. Limitava-me a comê-la, devorando o seu amor como leite materno, morno e doce como o mel; doce e pleno como o mel. E ela dava-me todo o amor que eu poderia querer; e eu queria-o, finalmente, todo. Já de noite, depois de jantar o seu corpo de fêmea esculpido em fogo branco e depois de lhe devorar as energias com horas de sexo juvenil e beijos nos lábios, adormecia-lhe no colo nu, enrolando-lhe o cabelo negro nos meus dedos, inventando caracóis onde os não havia, suspenso nos seus olhos; nos reflexos das chamas da lareira a vibrarem-lhe o azul das pupilas. É claro que nada disto vos interessará, é apenas Isabel, a única história da minha vida.

Mas Isabel desapareceu e deixou-me lágrimas para sempre. Isabel. Ao fim da noite costumava pegar em mim e levava-me para a cama. Devia levar, porque era aí que eu acordava com os barulhos da cidade, com a cabeça dela no meu peito. Todos os dias começavam assim, com ela, na cama, e acabavam com ela, na cama. Eu dava-lhe tudo e ela dava-me o amor que tinha e protegia-me do mundo. Cada noite era única. Isabel, dominadora; Isabel, protectora; como as mulheres de Hoffmann, era para mim o centro vital de todos os compromissos.

Mas chega de literatura de cordel; falar de Isabel faz-me mal, falar de Isabel faz-me bem, por esta ordem. Como ler Samuel Beckett, o irlandês de cabelo espetado, mas aqui na ordem inversa. De qualquer forma, não vejo agora como lembrar o Paraíso tivesse podido ajudar-me a resolver o problema do Inferno. Fosse como fosse, eu precisava de outro tipo de conhecimentos. Precisava das teorias dos entendidos. Nessa altura tinha dez dias para entregar o artigo e urgia resolver o problema de Borges. Liguei o modem, confirmei uns títulos, e pedi à livraria B. que me enviasse com urgência umas quantas obras citadas pelo bibliotecário argentino e ainda outras de um biólogo que entretanto ficou famoso pelas pesquisas antropológicas realizadas há uns anos pela sua equipa no interior do Continente Africano. Enquanto esperava, ainda com a memória desperta por imagens de banquetes a dois, encomendei sushi e sakê. Naquele sábado, acabaria por jantar com Isabel. Mahler, nervoso e genial, também apareceu.

Meia hora depois tinha o estafeta à porta. Vestia um impermeável fluorescente, verde, talvez, ou amarelo. Pelo que pude perceber em breves segundos de conversa, fixou-me de forma estranha, mas também isso não posso garantir porque não consegui ver-lhe os olhos. A comida estava a arrefecer, despachei-o com cinco contos. A encomenda com os livros chegou pouco depois e repetiu-se, incompreensivelmente para mim, na altura, a estranheza estampada no rosto do jovem motociclista de capacete à tira colo. Três horas depois, eram duas da manhã, eu estava instalado na minha chaise-longue com um sorriso de sakê nos lábios e a cidade aos meus pés, chegavam mais livros que tinham ficado esquecidos no armazém da livraria. Livros esquecidos e estafetas assustados, como um título de Vernon Sullivan. Apaguei o cigarro. Enclinei-me mais para trás e deixei-me a olhar para a minha cidade, as luzes vermelhas das traseiras dos carros e os candeeiros misturados com Wynton Marsalis. A minha cidade é fantástica. Livros à porta às duas da manhã. O que podia eu querer mais? Talvez a felicidade acondicionada numa mala térmica.

Até ao dia seguinte andei às voltas com teorias que não eram minhas e que não se davam bem com aguardente de arroz. Já de manhã, antes de me deitar, encomendei provisões para uma semana. Era Domingo. O dia do senhor, diziam-me. Eu que pensava que o dia do senhor era o Sábado, o shabbath, quando não se pode fazer nada. Nada não é bem assim, quando dizem ‘nada’ referem-se a ‘nada desde que não prejudique o negócio’. Eles é que sabem, com certeza absoluta quem está errado sou eu. Fumei o último Lucky Strike do último maço e enquanto via a cidade quase acordada apalpei a cara, senti os olhos escurecidos no vidro da janela, examinei o sobrolho, apaguei o cigarro e fui deitar-me. Os óculos continuavam a fazer parte de mim.




Sete.


Catorze dias depois - A Coisa



São duas da tarde. Passaram catorze dias desde a saída apressada de casa de F. depois de o marido dela nos ter encontrado na sua própria cama e me ter esmurrado no olho, por sinal, o meu melhor olho, sem qualquer sinal do astigmatismo com que os computadores me infectaram o esquerdo; depois o velho, o Sol e toda a madrugada daquele sábado quente de fins de Março. Tudo estava ainda por acontecer. Toda a dor me esperava dentro de mim. Para já, a vista estava perfeita. Vivia uma aventura biológica única. Poucos dias antes surpreendi-me a observar as actividades de uma ratazana junto de um café a pouco menos de um quarteirão do meu estúdio. Depois, num apartamento a quase cem metros, pude ver através de cortinas de tule como dois namorados se enroscavam no sofá antes de uma velhota de ar simpático voltar da cozinha com amendoins e leite com Ovomaltine. A brincadeira acabou ali, com a velhota afogueada a deixar cair o tabuleiro. Enquanto os dois alinhavam as roupas, a pobre caíu para trás aterrando em cheio num cadeirão de baloiço. A coitada da senhora acabava de apanhar o afoito do rapaz com a mão por debaixo da saia da feliz da rapariga, extática, no preciso lugar onde acabavam ambas as pernas.

Depressa abandonei estas actividades; à excepção do pequeno episódio por detrás das cortinas de tule a vida das pessoas era quase sempre desinteressante. Achei indecente o pouco que tinham para me mostrar. Catorze dias, portanto, desde a minha mutação. Física, uma vez que, como eu previra, a culpa e a angústia me abandonavam à medida que eu reinvestia o espírito no trabalho. Nessa altura havia apenas, no fundo de mim mesmo, a certeza de que aquele momento de fraqueza, do desejo mais obsceno, voltaria um dia para me relembrar - afinal - a minha verdadeira condição. Aparte as aparências eu era nada, havia nascido nada e acabaria em nada. Como o velho de sexta-feira. E como ele também eu começava a coleccionar momentos e aquele seria para sempre um daqueles instantes que me marcam a consciência a ferros, mas de forma quase subliminar. É, eu carregava agora um desses momentos. Como quem chega a casa depois de um dia de chuva e se dá conta de que a areia lhe ficou nos sapatos passados que estavam muitos meses depois daquele desgosto de Verão. Eu ainda não sabia nada.

Tinham passado catorze dias e há treze que não me via ao espelho, tal era a forma como o artigo me absorvia durante a tarde e grande parte da noite. Mas não me doía nada. Tirei um novo print do trabalho e aqueci café. Depois de descascar e comer uma laranja, telefonei aos meus pais.

Era o dia de telefonar aos meus pais. Quer dizer, há um dia para isso, se bem que eu não lhe dê muita importância. Continuo a pensar que significa muito mais o eu lembrar-me deles e de lhes telefonar do que o telefonar-lhes. Porque ao contrário do telefonar, o lembrar não é para mim uma obrigação. Lembro-me deles todos os dias porque tenho de me lembrar deles, porque gosto deles, porque me preocupo mais com eles do que comigo. Mas quem está do outro lado do telefone não sabe nem quer imaginar isso. As pessoas são muito egoístas com estas coisas. Por isso é que aquele era o dia de lhes telefonar. De seguida, meus senhores, vou transcrever- vos uma das muitas formas que o amor filial pode assumir.

Falei primeiro com a minha mãe, anotei todos os conselhos para o mês que se seguia e tentei, depois, explicar ao meu pai, ocultando o pormenor dos óculos, aquilo que acontecera. Não por mim, mas porque não queria estar a preocupá-lo com esse pormenor. Para que percebam, na minha família temos todos uma mania terrível de sofrer mais com o mal dos outros do que com o nosso próprio mal. O que torna muito difícil perceber a quem pertence cada maleita, cada desgraça que se abate sobre um de nós. Dou-vos o exemplo de quando o meu pai sofreu uma grave problema que lhe custaria uma operação de sete horas. Antes de ficar inconsciente, o que nos dizia, a mim e à minha mãe, era: calma, é preciso ter calma. Como vêem, a distribuição do mal é uma coisa que está mal estimada no meu seio familiar. Na dúvida, cada um toma como seu o seu sofrimento. Voltando ao meu pai, astrónomo reformado, se é que se pode sê-lo. Não compreendeu, como, aliás, eu já esperava.

- Diz-me lá, à noite, não foi?
Sim, mas isso...
- A noite. Sempre a noite - aplicou exactamente aquela inflexão que eu conhecia muito bem desde os quinze anos, altura em que comecei com as minhas escapadelas. Eu tinha de contra-atacar, para bem do nosso relacionamento.
Claro, a noite. A fria noite quando me preparam o pequeno-almoço em forma de pão fresco. Quando os médicos têm a mania de aplicar as suas manigâncias em corpos prestes a despedirem-se da sua querida alma nas salas das urgências. (Isto, pensei-o mas não o disse, como sempre. Claro, poderia ter atirado com uma ou duas barbaridades destas que mostram uma vida contínua e sem parágrafos, mas o respeito, o medo de o magoar, a minha imagem de puto que eu ainda vejo projectada nele impediram-mo. E não me incomodei muito com isso. Respondi antes:)
É na noite que estão as estrelas. Já pensou de onde teria vindo o pão para a nossa mesa durante tantos anos se não fosse a noite, pai? - Resmungou, eu ri-me da minha táctica, ranhosa e infantil.

Quando desliguei sabia que um dia voltaríamos ao mesmo, era inevitável, não uma vez mas sempre. De qualquer forma, a relação com os meus pais era assim e agora melhor do que nunca. O telefone, o amigo comum. A mim, bastava-me telefonar. Saber que estavam bem, como diz a minha mãe. Só o facto de levantarem o auscultador já me deixava descansado. Até me permitia começar as conversas com uma brincadeira que para mim implicava coisas muito mais sérias: "Então, ainda não morreram?". Não. Claro que não. Se tivessem morrido, preocupando-se comigo como só eles preocupam, seriam os primeiros a avisar-me. Para não me preocupar. Que ficariam bem.

Agora, com o falso problema de B. resolvido (o que posso dizer-vos é que Dante sabia provocar, não foi o acaso que o fez político), o artigo quase pronto, apetecia-me sair. Ver como o mundo se tinha desenrascado sem mim. Estar com os amigos. A máquina de café começou a fazer barulho na cozinha. Sentia-me porco. Bebi duas chávenas e pus água a correr no chuveiro. Aqueci uma toalha para amaciar os pêlos da barba de duas semanas que já andavam a provocar-me com comichões havia alguns dias, sintonizei o rádio ao acaso e liguei a televisão, tirando-lhe o som. A sister Wendy Beckett acabava de passar das tentações de Santo Antão para um Caravaggio que eu não conhecia. O espelho esperava-me e tinha chegado a hora de o enfrentar. Esperava-me, enfrentar, isto, digo-o agora.

Liguei a luz da casa-de-banho, depois a do espelho, olhei-me de frente, vi-me a ficar lívido, desliguei a luz e fui sentar-me no sofá. Existem limites para o possível e para o impossível. Eu tinha ultrapassado um desses limites e nesse instante soube qual.

Um terror apodera-se de mim. A minha agonia muda e imóvel é indescritível. Fiquei ali uma hora ou quase, enterrado na pele negra, a pensar no que tinha visto. A velha questão da retórica desenterrou-me do torpor cínico da minha vidinha e para meu desespero algo disparou em mim numa luta que não teria tréguas senão pela vida. Pela vida que agora eu deveria destinar. A minha faculdade de pensar permanecia clara e activa mas no espírito sentia-me tomado de pavor. Tinham passado catorze dias, duas semanas, desde que me acontecera aquilo. Entretanto, acabei o artigo, revi-o e preparei as notas finais para acrescentar depois das provas. Há catorze dias eu não era aquilo no espelho da minha casa de banho. Sem certezas acerca de nada pareceu-me que os óculos haviam desaparecido por completo. Continuava a ver as lentes negras no lugar das orbitras, mas se antes apenas o perímetro que delimitava a lente direita era recoberto por uma fina camada de células escarlate translúcidas, agora toda a armação metálica tinha sido comida pela minha cara. É verdade que eu continuava a sentir-me bem. A ver melhor. Mas o meu aspecto não era humano. Nem humano, nem animal. Era o aspecto de uma COISA.

Quando me levantei do sofá ainda não tinha reunido forças para voltar a ver-me no espelho. Eu não estava preparado para voltar a encarar-me. Não tão cedo. Não enquanto o meu espírito estivesse possuído daquele horror gélido e silencioso. Da BBC, a irmã Beckett continuava a explicar "O Santo Sepulcro". Eu não a ouvia. Nem um som me chegava ao cérebro. Nenhum apelo da vida.

Levantei-me e fui para a cozinha beber café. Já com a caneca na boca, vi reflexos negros da minha cara no líquido preto. Não me tinha metamorfoseado num grande poeta; isso, com toda a certeza. Enquanto permanecia sentado passando a mão pelo cabelo molhado vezes sem conta, num gesto nervoso, comecei a ver a vida a afundar-se. As primeiras questões levaram-me a lugares onde li deliciado a Metamorfose do Kafka. Como então me diverti com as angústias improváveis de Gregor Samsa. Nada daquilo fazia sentido para mim. Apesar de me achar um zero à esquerda, coisa contrariada pelas aparências, como já disse, eu era um tipo decidido e era isso que fazia de mim um tipo bem-sucedido. Essa qualidade, que nas sociedades modernas faz toda a diferença mesmo que não tenhamos qualquer valor, levava-me a agir de imediato perante os desafios. Principalmente se esses desafios implicassem a dificuldade. Por isso me divertiam as questões do herói do Kafka. Por isso achava estranha a hesitação inicial do personagem do Camus no Estrangeiro. Maman est morte. Poderei faltar ao trabalho? O que vou dizer ao meu patrão? Homem, a sua mãe morreu, o patrão que se amanhe. Isto era eu, antes. Agora era a mim, um tipo real, que estas dúvidas assaltavam. E piores, dúvidas mais mundanas. As minhas namoradas, o que iriam elas pensar de mim? Conseguiria voltar a beijá-las? Voltaria a ter os gestos do amor com elas? Como poderiam elas encarar aquela coisa que era eu e que a mim próprio provocava nojo e repulsa. No escuro, talvez. À canzana, eu escondido dos teus olhos.

Estaria eu condenado a uma triste reclusão aos vinte e nove anos? Seria a escapadela às putas, envolto numa capa teatral, a minha única perspectiva do amor? Talvez o sexo oral numa esquina escura. Mas pior, e os meus amigos? As idas em bando restrito ao GARFIL. Os jantares a trinta quilómetros da capital estavam agora fora de questão. Tudo isto era demasiado fantástico e punha-me num estado de ansiedade que os senhores não podem imaginar. Não, nada seria como dantes. Nada. Nem uma simples ida ali à mercearia de baixo para comprar arroz. Ou cerveja. Ou havanos. Nada. Estes foram os primeiros pensamentos que consegui ordenar e que agora me provocam o riso.

Hasta luego

sexta-feira, dezembro 19, 2003

Breve conto de Natal para ser lido às criancinhas filhas de um qualquer porco capitalista nas vésperas da abertura de prendas que custem mais do que o necessário simbolismo da época não sendo de todo inútil lembrar que também qualquer criancinha ou já quase adulto fruto de um progenitor dedicado à política poderá em muito beneficiar desta leitura sobre a grande obra do dito papá ou mamã


É curioso como me ocorrem as coisas mais despropositadas no dia de Natal. Estou sentado ao meu computador que não é meu, é emprestado, e tenho os head-phones ligados à Lacrimosa de Mozart. Passou um dia depois do dia de Natal. A Filarmónica de Berlim percorre-me e é divina no meu cérebro. Não consigo libertar-me do Confutatis de Mozart e imagino-o moribundo a compor entre rasgos de suor pelos dedos. Ruanda. Etiópia, África inteira. Imagino que também aí deve ser Natal. Diz o confutatis, Gere curam mei finis, Ajuda-me nos meus momentos finais. Suponho que também por ali deve ser Natal. Claro, nem pode deixar de ser. Eu tive uma ceia de Natal razoável. Passei a noite com todas as pessoas que amo. Sim, absolutamente razoável. Ao fundo, no meu cérebro, movem-se ossudos, os cadáveres de crianças negras que já deram conta de que não vão chegar a velhos e que nunca ouvirão o Confutatis e a Lacrimosa do Mozart quando os altos dignitários de várias nações se levantarem a esses sons num qualquer serviço em sua memória. As crianças que insistem em estragar-me o Natal todos os anos têm e irão conservar até à morte um ar inocente e perdido no ecrãn do meu televisor e eu não posso deixar de os olhar com espanto. Vejo por detrás delas o pó que se levanta do apocalipse e a terra é seca e dura. As cores alaranjadas do sol que nasceu para elas apenas por engano deixa-as ocultas na paisagem dos meus piores sonhos.

Vamos lá ao conto de Natal. Eu até gosto de Coca-Cola. Era uma vez uma família composta, muito bem composta para dizer a verdade, por um marido, uma mulher, duas filhas, um filho, um cão, dois gatos que se davam bem, um peixe e uma avó rabugenta. No dia anterior ao dia de Natal tiveram uma consoada recheada com peru e batatas assadas, arroz de polvo e bacalhau cozido com batatas e couves e regado tudo isto com azeite virgem com 0,5º de acidez. Durante a refeição a mãe mudou o canal que estava a dar o telejornal para o que estava a dar a telenovela que hoje não era dia para ver coisas tristes. No fim da refeição, os petizes abriram as prendas sem esperar pela meia noite e os animais tiveram direito a um prato suplementar de biscoitos que estavam em promoção no hipermercado. É com uma alegria silenciosa que percebo que aquela lacrimosa e aquele confutatis não são para mim. Desde sempre foram para aquelas crianças que íam estragando o jantar àquela família de bem, ou não tivessem sido compostos por um moribundo. De pouco lhes servirá - mas, por elas, digo-lhe eu, obrigado senhor Amadeus e que as suas preces cheguem rápido aos céus que eles têm pressa de chegar a velhos.

Já fui mais extremista, agora que sou pai apenas me dói mais, muito mais

Até logo
Cinco.


Problemas que assaltam Borges e ressuscitam Isabel



Os óculos. Se eu quisesse deixar-me de merdas, como diz o meu dicionário de vernáculo, os óculos não eram um problema. Logo nos dias que se seguiram os meus olhos adaptaram-se à semi-obscuridade do apartamento - um estúdio de cento e cinquenta metros quadrados de tábua corrida sobre a cidade, para ser mais correcto - e durante o fim-de-semana seguinte consegui trabalhar sem as luzes ligadas. Continuava a não sentir dores - embora sentisse o olho inchado e a latejar de dez em dez segundos - e as coisas filtradas começavam a agradar cada vez mais ao cérebro por detrás das lentes. Quanto à culpa, coisa que só se poderia passar na minha cabeça mas que eu queria sentir como algo que não meu, quando me expugnava nos lapsos da memória eu respondia-lhe redobrando esforços para compreender os passos dos ensaios de Borges e dizia para mim mesmo: estes gajos andaram a fazer rendas e tu vais retalhá-los e acabar com a nobre arte de alinhavar palavras.

Porém, lá no fundo, na minha condição irredutivelmente humana, era como se nada esperasse das minhas acções e de todas as milhares de recensões que pudesse escrever. Era como se nada pudesse apaziguar aquele sentimento. De qualquer forma, não estava à espera que um anjo viesse e me tomasse pela mão. Há um limite lógico para tudo e eu não desafiava esse limite. E até por isso os óculos não constituíam problema algum. Tudo estava dentro dos meus limites do impossível.

Entretanto, por essa altura, mais exactamente no domingo à tarde, cheguei a um problema que o era, pelo menos para Borges; era-o para ele apenas porque o tinha sido para outros e era-o agora para mim porque o tinha sido para ele. Como tudo no mundo comum ligado por interstícios culturais. O problema de Ugolino. Claro que assim à primeira impressão nos é difícil admitir um tal paradoxo da sobrevivência. Dirão os senhores: «Somos civilizados, não?». Mais ainda quando a carne é a nossa carne. Tudo isto parece simples, indiscutível, mas eu estava convencido, ainda estou, que ao corpo apenas interessa a sobrevivência, isto é, superar as situações extremas do seu limite biológico; e tirarmos conclusões sobre uma situação destas sem nos submetermos a ela (falo da fome - foi este o caso que levou Ugolino a, pressupostamente, aceitar a carne dos filhos moribundos), com o cérebro transformado em milhões de células famintas a devorarem-nos tudo o que resta da moral, penso eu, falar destas coisas depois de salmão regado a limão e batatas de cultura biológica com molho de manteiga pode levar-nos a tudo menos à nossa verdade impossível. A história do homem nem sempre é bonita. Só para os tipos que ensinam e nunca saíram das universidades. Só os sistemas teóricos possuem essa diáfana auréola da perfeição. Vejam o relato de Mórus. Numa Inglaterra distante os homens cometiam o simples furto para matar a fome sabendo que isso lhes podia custar a vida. Mais importante: havia quem lhes cortasse a cabeça no caso de serem apanhados. O que não impedia outros de repetirem a proeza. É verdade, nada como ter o estômago a roer-nos por dentro e a cabeça a rebentar para nos ensinar a lição. Eu não tinha essa experiência, também, confesso.

Que problema filho da puta. Em todos os sentidos. É que não tinha eu essa experiência nem tinha eu condições de a recriar. Tudo o que eu pudesse ter feito então não passaria de um simulacro, uma tragédia com dead-line definido. Seria como teorizar sobre a artificialidade.

Na altura, eu apenas tinha a vantagem de reconhecer as minhas limitações. Poucas vezes um problema me mostrara que a vida me tinha poupado às coisas mais obscuras. Nada como a própria fome para me ensinar a lição. Eu nada percebia de fome. Preocupava-me com a colecção de CDs e se algum dia teria um 911.

Mas tinha consciência disso. Eu tinha consciência das minhas limitações e daí iria escrever sobre o problema de Ugolino. Nem poderia ser outra coisa ou de outra forma. A uma coisa eu estava habituado - não falhar. Se o senhor editor, pai de uma filha que valia mais do que o ordenado todos os meses depositado com muitos zeros na minha conta, queria fornecer aos leitores um mapa para os Ensaios Dantescos de Borges, o senhor editor podia contar com ela em cima da secretária antes do fecho da edição.

Curioso foi, a partir daquele episódio da Comédia, lembrar-me de Isabel. Como de outra forma o seu corpo me alimentou meses a fio. A memória é das poucas coisas que eu não entendo e não controlo, é estranha e por vezes, imprudentemente, desenterra-me de segredos que tudo faço para não regressarem. Isabel. Isabel nada tinha que ver com Ugolino nem eu era um tirano para ela. Ugolino Della Gherardesca, gibelino que governou Pisa com mão-de-ferro. Pisa, a cidade da torre inclinada. Nem sequer era assim o meu amor por Isabel. Dói-me falar de Isabel. E os senhores, o que poderão os senhores compreender dum discurso sobre o meu amor? As palavras. As palavras e o seu alinhamento sucessivo. Nada. Como poderia eu expor-vos as marcas da alma que não fazem parte da memória? Que poderei eu dizer-vos desse breve reencontro com a vida? Antes de tudo, não que vos interesse ou mesmo ao episódio, devo declarar que na altura em que recebi a visita deste anjo a minha vida não exigia qualquer tipo de redenção. Não como eu viria a desejar nos dias que se seguirão no relato. Até então eu nada podia temer. Nenhum sinal me fora enviado para revelar a marca da mortalidade dos dias, dos dias já mortos e perdidos. A redenção era para mim uma coisa bíblica, imaterial, como de facto é, imaterial, um território desconhecido cujo sentido se encerrava numa geografia muda, sem voz, quase inoportuna. Que redenção? A minha inexperiência era uma fonte de poder. Tudo estava ao meu alcance. O único amor que conheci até aos vinte anos foi-me dado pelo meu pai e pela minha mãe e era quase filicida, o que de forma mecânica me impelia a encarar a afectividade com constrangimento e repugnância à mistura. Era-me mesmo fácil manter as meninas na distância que eu achava aconselhável. Casto. Até aos vinte anos não toquei com um dedo numa mulher. Castíssimo. Claro que me masturbava desalmadamente, desenvolvendo as minhas fantasias, acariciando-as, aperfeiçoando-as até aos limites do irrealizável a cada novo acto, quer dizer, diariamente - o suficiente para ser internado caso alguém viesse a descobrir a minha actividade favorita. Mas não descobriram e com cuidado conheci o prazer da solidão e a solidão do prazer. Essa maldição terrível que se viria a prolongar até à minha actual existência.




Seis.


O cântico dos cânticos



Isabel. Mais velha do que eu quinze anos, quando eu tinha apenas vinte, foi para mim como uma mãe. Uma outra mãe. Adorava-a como nunca adorei nada na vida. Escrevia-lhe poemas infantis que acabavam sempre da mesma forma:

Não morreria por ti
mas diz-me e
Morrerei contigo
Hoje.

Isabel foi para mim a materialização dos contos de Annais Nin. Uma história de carne com prazeres abertos à minha adolescência sublimadora. Por que me lembrei eu de Isabel a propósito de Ugolino? O infame pai Ugolino. Claro, Isabel era uma segunda mãe que me pariu para os prazeres da carne. Uma mãe e eu nunca tive problemas, comi-a, por vezes durante horas e horas em banquetes devassos e sem pausas sobre a cama assim que ela chegava a casa não sei donde. Nunca lhe fazia perguntas. Não interessava. Limitava-me a comê-la, devorando o seu amor como leite materno, morno e doce como o mel; doce e pleno como o mel. E ela dava-me todo o amor que eu poderia querer; e eu queria-o, finalmente, todo. Já de noite, depois de jantar o seu corpo de fêmea esculpido em fogo branco e depois de lhe devorar as energias com horas de sexo juvenil e beijos nos lábios, adormecia-lhe no colo nu, enrolando-lhe o cabelo negro nos meus dedos, inventando caracóis onde os não havia, suspenso nos seus olhos; nos reflexos das chamas da lareira a vibrarem-lhe o azul das pupilas. É claro que nada disto vos interessará, é apenas Isabel, a única história da minha vida.

Mas Isabel desapareceu e deixou-me lágrimas para sempre. Isabel. Ao fim da noite costumava pegar em mim e levava-me para a cama. Devia levar, porque era aí que eu acordava com os barulhos da cidade, com a cabeça dela no meu peito. Todos os dias começavam assim, com ela, na cama, e acabavam com ela, na cama. Eu dava-lhe tudo e ela dava-me o amor que tinha e protegia-me do mundo. Cada noite era única. Isabel, dominadora; Isabel, protectora; como as mulheres de Hoffmann, era para mim o centro vital de todos os compromissos.

Mas chega de literatura de cordel; falar de Isabel faz-me mal, falar de Isabel faz-me bem, por esta ordem. Como ler Beckett, o irlandês de cabelo espetado, mas aqui na ordem inversa. De qualquer forma, não vejo agora como lembrar o Paraíso tivesse podido ajudar-me a resolver o problema do Inferno. Fosse como fosse, eu precisava de outro tipo de conhecimentos. Precisava das teorias dos entendidos. Nessa altura tinha dez dias para entregar o artigo e urgia resolver o problema de Borges. Liguei o modem, confirmei uns títulos, e pedi à livraria B. que me enviasse com urgência umas quantas obras citadas pelo bibliotecário argentino e ainda outras de um biólogo que entretanto ficou famoso pelas pesquisas antropológicas realizadas há uns anos pela sua equipa no interior do Continente Africano. Enquanto esperava, ainda com a memória desperta por imagens de banquetes a dois, encomendei sushi e sakê. Naquele sábado, acabaria por jantar com Isabel. Mahler, nervoso e genial, também apareceu.

Meia hora depois tinha o estafeta à porta. Vestia um impermeável fluorescente, verde, talvez, ou amarelo. Pelo que pude perceber em breves segundos de conversa, fixou-me de forma estranha, mas também isso não posso garantir porque não consegui ver-lhe os olhos. A comida estava a arrefecer, despachei-o com cinco contos. A encomenda com os livros chegou pouco depois e repetiu-se, incompreensivelmente para mim, na altura, a estranheza estampada no rosto do jovem motociclista de capacete à tira colo. Três horas depois, eram duas da manhã, eu estava instalado na minha chaise-longue com um sorriso de sakê nos lábios e a cidade aos meus pés, chegavam mais livros que tinham ficado esquecidos no armazém da livraria. Livros esquecidos e estafetas assustados, como um título de Vernon Sullivan. Apaguei o cigarro. Enclinei-me mais para trás e deixei-me a olhar para a minha cidade, as luzes vermelhas das traseiras dos carros e os candeeiros misturados com Wynton Marsalis. A minha cidade é fantástica. Livros à porta às duas da manhã. O que podia eu querer mais? Talvez a felicidade acondicionada numa mala térmica.

Até ao dia seguinte andei às voltas com teorias que não eram minhas e que não se davam bem com aguardente de arroz. Já de manhã, antes de me deitar, encomendei provisões para uma semana. Era Domingo. O dia do senhor, diziam-me. Eu que pensava que o dia do senhor era o Sábado, o shabbath, quando não se pode fazer nada. Nada não é bem assim, quando dizem ‘nada’ referem-se a ‘nada desde que não prejudique o negócio’. Eles é que sabem, com certeza absoluta quem está errado sou eu. Fumei o último Lucky Strike do último maço e enquanto via a cidade quase acordada apalpei a cara, senti os olhos escurecidos no vidro da janela, examinei o sobrolho, apaguei o cigarro e fui deitar-me. Os óculos continuavam a fazer parte de mim.

Até logo

quinta-feira, dezembro 18, 2003

Andava doido para fazer isto



E chamem-me maluco ou babado, mas o que eu sei é que a minha filha de três meses que anda rabugenta se calou ontem a ouvir Handel. Peguei nela e ergui-a a altura das colunas como num gesto de entrega primordial. Ela calou-se, abriu muito os olhinhos que só ela tem para a sinfonia que saía da estante da sala. Calou-se, virou os olhinhos para mim e sorriu até não poder ser mais audível naquele rir sem som dos bebés.

Agora sim, até logo (e claro, um imenso obrigado ao Carlos Neves, o Grande pela dica nas imagens)
Quatro.


A culpa roubando-me a paz pela calada



"E a ambição, que nasce apenas de
um acesso de febre e atravessa, sem
se demorar, o coração estreito
do homem."

Keats




Quando acordei era de novo dia. O sol entrava-me pela casa à velocidade de trezentos mil quilómetros por segundo directamente do Oriente. Era de manhã e eu tinha dormido demais. Um dia inteiro. Uma noite inteira. Era outra vez de manhã. O meu corpo levou os habituais e terríveis minutos a reagir à ideia de um duche quente. Já na casa-de-banho e ainda mal-acordado vi que os óculos permaneciam entre mim e o espelho. Tinha-os esquecido e nem sequer os sentia, como se fossem já a minha própria visão. Aproximei-me do espelho e tentei tirá-los mas senti um esticão na pele inchada do sobrolho direito. O estalido metálico assustou-me e a dor terrível que se seguiu obrigou-me a desistir. Logo de seguida o sangue começou a descer-me pela cara e pelo pescoço manchando o colarinho do meu pijama em algodão branco da Calvin Klein. Despi-me e limpei-me com uma toalha. Eu reagia às coisas como um robot e nem sequer pensei em quanto ia custar mandar limpar o pijama de duzentos euros.

Tentei de novo tirar os óculos; o que eu fiz foi puxá-los na esperança de que me saltassem da cara e o termo correcto é arrancar. Sem melhores resultados voltei a aproximar-me do espelho. Analisar todas as situações de forma clínica fazia parte dos meus genes mas entrava quase sempre em confronto com a minha natureza de escorpião, de génio difícil e mimado. Mas de momento não havia outra coisa a fazer. E o que sabia eu das coisas naquele primeiro dia?

Uma frágil membrana de escarlate translúcido começava a unir o sobrolho e a pálpebra ao aro. Fatalista e misticista como me ensinaram a ser nas minhas origens de aldeia, pensei “O Inferno de Dante não me perdoou”. Nem a mim nem àquele vil desejo inspirado pelos mais nobres vapores etílicos que o homem pode experimentar. Mas se eu pressentia algo de estranho por acontecer, estava longe de imaginar o ponto que as coisas iriam atingir. Despi-me e meti-me debaixo do chuveiro. O sangue correu, lavado e escuro; só muitos segundos depois parou.

Os óculos eram, aparentemente, irremovíveis e resolvi deixar de pensar neles. No momento não me incomodavam e sentia-me melhor com eles do que sem eles, dois dias antes. De qualquer forma, pensava eu, não seria nada que um bisturi, uma mão hábil e meia dúzia de pontos não resolvessem em meia hora. Pensava eu.

Contudo, misticismos à parte e apesar do meu conforto físico, uma frase que ouvia na distância dos anos numa Igreja perto da minha infância através da voz irada de um pároco alto e seco que Deus brindara com voz de barítono anunciava-me já os limites dos dias que aí vinham e as noites prolongadas em suor e pânico, O preguiçoso é semelhante a um monte de esterco...

Até já

quarta-feira, dezembro 17, 2003

Dois.


O fim da noite...



Tipos que entravam e saíam. Não conseguia responder ao que me perguntavam. Estava a ficar cada vez mais bêbado. Demasiado bêbado. Eles também. Não lhes respondia mas ria-me com eles; ensaiava passos idiotas quando a música entrava com o movimento da porta. Dançava, cambaleava, ria-me com eles. Éramos todos camaradas sem o sermos. Já de saída, seis da manhã, passei pela pista onde quase enlouqueci com as luzes e as lolitas que dançavam como se estivessem a cumprir estágios para streapers do Crazy Horse. As mini-saias plissadas não cumpriam a função, ou cumpriam; há pais que deviam ser presos por incitamento à pedofilia. Em casa ainda lhes sabia as bocas e os corpos de mulher desenhados em pele de bébé. Os corpos, o resto nem por isso, não me lembro. Terríveis lolitas, de todas as cores e tamanhos. Até hoje, nunca mais o síndrome de Mason me abandonou. Como é que tudo começou para o pobre? Lo-li-ta: a ponta da língua faz uma viagem pelo céu da boca... Pornografia do melhor que já se fez.

Pois bem, seis horas; de saída, de novo a rua; nos olhos, o reflexo das luzes da pista, mais no esquerdo do que no direito, com as meninas no coração quase a saltar-me das calças. E depois o velho. Subtil. E depois tanta coisa que via e ouvia em off, sem interesse, e eu, ali, inexplicavelmente quase atento. Talvez a escutá-lo. "As coisas perdem o cheiro demasiado..." Qualquer coisa assim. Acendi um cigarro, afastei-me e deixei-o só, sentado no passeio com putas do outro lado. Tinha os olhos a arder. Era o Sol, a manhã já tinha nascido e eu preparava-me para renascer com ela. "Miúdo", era para mim, "tira aí duas cervejas e eu conto-te a noite que passei com uma tipa com idade para ser minha mulher e que acabou com o marido dela a apanhar-nos nus à lareira, a beber champanhe e a aquecermos o corpo com as melhores posições do Kamasutra." Cervejas, okay. Histórias, negativo. São as duas para ti, velhote. Eu já tenho que chegue. Conheço bem demais essa história e já tenho que chegue. E tinha.




Três.


...e um par de óculos



De qualquer forma, o sono foi à vida com o broche de F. e tinha em casa Jorge Luís Borges e o inferno de Dante à minha espera; o que a certa altura me pareceu impraticável. À medida que a manhã avançava contra mim, senti os olhos a piorarem e comecei a ir contra coisas e pessoas que saíam das esquinas obstinadas. Era a manhã de sábado e as ruas perdiam o cheiro da noite. Ao cruzar-me com uma mulher baixa e pesada, esta virou-me o ombro esquerdo para abrir caminho e, investindo com determinação, atirou-me para dentro de um supermercado contra os carrinhos das compras. Enquanto cambaleava, impecável no meu blazer de caxemira do Afeganistão, percebi que não iria ouvir qualquer explicação e só tive tempo de ver o rabo gordo que a seguia logo atrás e que fez questão em me apresentar. Não se podia exigir nada a semelhante criatura, que se movia a muitos quilómetros por hora, ocupando no seu movimento pendular toda a largura de um passeio de três metros. Estou atirado contra os carrinhos.

Perturbado pela súbita mudança de luz, voltei a cambalear entre as prateleiras das sopas Campbell e dos caldos Knorr. Enquanto obrigava o olho esquerdo a refocar as coisas, que não me pareciam fantásticas, a minha atenção parou num expositor vertical montado sobre uma cópia da Torre Eiffel com a bandeira tricolor; um expositor de óculos de sol. Eu estava mais bêbado do que pensava: a marca era Le Pen. Comprometi-me a voltar ao supermercado com mais sangue do que álcool a correr-me nas veias para confirmar o nome mas, como verão, nunca cheguei a tirar as dúvidas.

Fosse qual fosse a marca, acabei por encontrar a solução para enfrentar o Inferno de Borges. Ao acaso, como muitas outras coisas que me conteceram durante aquela sexta-feira. Estendi a mão, sem olhar, e tirei os primeiros que os meus dedos tocaram. Uma vez postos, assentavam como uma luva. Paguei e sai. A rua, de novo. Mas diferente. Tranquila, pouca gente, como um fim de tarde de Verão, com o Sol a meio gás, aquela rua que apenas os miúdos que jogam à bola conhecem, em cores de fogo de lareira através das brasas ao fundo da sala. Cores com cheiro. Havia qualquer coisa de poético que se podia respirar. Aproveitei e enchi os pulmões até à última costela. Lembro-me de chegar a casa a sentir-me bastante melhor.

Assim que despi tudo menos as calças peguei em vários tomates, esvaziei meia garrafa de Absolut, preparei uma jarra de bloody-mary e fui aliviar-me dos restos da cerveja. Foi na casa de banho que pela primeira vez vi o aspecto físico do milagre por cima do nariz. Iguais a dezenas de óculos que eu já vira antes em tendas de feira. As astes em plástico, os aros em metal escuro, as patilhas de apoio do nariz em borracha transparente e as lentes ovais e escuras. Muito escuras, para ser exacto. Nesse pormenor estava a razão da singularidade do objecto no seu todo. De facto, numa observação mais cuidada, estes não eram uns óculos vulgares. Mais parafuso menos parafuso, mais plástico menos metal, a estrutura era igual à de qualquer par de óculos de sol que os senhores possam imaginar. Mas as lentes eram barreiras que se erguiam entre o mundo e os meus olhos, ao ponto de se tornar impossível vislumbrá-los. E tudo me parecia diferente. A vida quase suportável.

Estava satisfeito com a compra e começava a encarar as aparências da realidade com novo ânimo quando me sentei em frente da Sony com o Inferno nas mãos. Lia "De magestade plenas, quatro sombras/ sem prazer ou tristeza no semblante.// E logo após do meu mestre ouvi:/ 'Aquele que na mão traz uma espada/ E à frente vem dos três, tal mago rei,// Homero é, dos poetas o maior...'...'', quando, sem modéstia nem vergonha (dou-me agora conta, que belo motivo para que a mão de Deus me acariciasse violentamente a face), me ocorreu a ideia de que a cegueira transpõe para a alma a pureza da luz das coisas e que talvez eu, semi-cego como me encontrava, estivesse nesse preciso momento, e justamente por meio das lentes, a metamorfosear-me num Homero ou num Borges. Tal foi o delírio que apenas me permiti um mísero 'talvez'. Mas a verdade é que no mais íntimo do que eu sou tinha sucumbido à tirania do mais sombrio dos desejos. Qual, perguntam os senhores, terá sido o desejo sombrio que acalentou o coração deste jovem no fim daquela noite de sexta-feira? Qual. Pois bem, sejamos honestos: o pior de todos. Da facilidade com que me ri do velho – que para mim era um sucedâneo desgastado do P. Lorre, um velho a destilar charme para poetas enquanto sorve vinho de pacote na beira dos passeios, perdido pela Primavera e pelas mulheres – o quão rapidamente encarei a probabilidade de vir, a partir dessa noite, a ser alguém, um iluminado, um eleito de trazer por casa. Mas não foi apenas a forma como encarei essa probabilidade. Ao sentir-me um cego como Borges e Homero e Milton admiti terríveis circunstâncias para a realização obscura do que já foi para mim uma obsessão – repetia o infortúnio dos mestres com a certeza da glória paga em adiantado. A facilidade. Sem juros. Sem prestações. A pronto. O pecado da inveja personificado no cuco de oitenta quilos que eu fui por breves momentos. O suficiente para me perder da mão de Virgílio e dar de caras com um leão esfaimado, como se pode ler na Comédia.

Para aquele que guarda para o pensamento o último reduto da consciência e de tudo o que ainda é honesto, este foi o momento que desencadeou o processo de que vos é dado conhecimento. Arrependido pela barbaridade, deixei-me cair nos pesadelos que me aguardavam ali mesmo, no sofá, com o livro de Borges no peito, pensando no velho, na luz que lhe faltava e na luz que eu não mais teria.

Obrigado pela paciência, até logo
Blog back to Paris

Nos últimos dias, a minha cidade repesca-me da memória uma Paris de 85, com a neblina que insiste em prolongar-se para mais do que a manhã. Tornando as tardes agradavelmente cinzentas e húmidas, com uma luz entrecortada por gotículas, como chuva que paira mas não cai.

Lisboa, até já

terça-feira, dezembro 16, 2003

HAVIA-O PROMETIDO E SOU DE HONRA



"Espero mudar totalmente e converter-me noutra
pessoa, pois estou fartí­ssimo do Jorge Luí­s Borges."
Jorge Luí­s Borges


Zero.


Non nova, sed nove ou qualquer coisa assim



"Desejei ser feliz como se
não pudesse ser outra coisa."
André Gide


Desculpem-me por começar desde o zero. Não é maneira de começar uma história. Supõem os tempos modernos que a coisa comece com meia dúzia de factos ou descrições que abram o apetite. Lamento decepcionar os senhores leitores, mas a coisa só dá para o torto lá mais para a frente. Mas, para que não tenham dúvidas, digo-vos já que o que aqui ouvirem e apesar de esta história não estar aparentemente dentro dos limites da verdade, tudo aconteceu de facto; aconteceu-me justamente a mim, o único de entre os não-eleitos a quem poderia acontecer. Tive apenas o cuidado de ocultar todos os nomes que se atravessaram no meu caminho sob pseudónimos toscos que fui buscar ao inconsciente, e que irão descobrir quando eu já estiver absolutamente perdido. Também localizações geográficas, sí­tios e afins apenas têm verdadeiro significante na minha cabeça.

De qualquer forma, não se vejam obrigados a entender as páginas que vão seguir-se. O que é que podemos dizer uns aos outros? Pouco mais do que nada. Não se iludam, caros senhores. É isso que eu tenho para contar: nada de novo. Talvez vos agrade a forma. Ou talvez a achem tosca. Nil novi sub sole. O novo século está aí­ e esta história servirá melhor se vestida em boas capas de couro em mobílias de cerejeira.

Aquilo que aconteceu naquela noite poderia ter dado em nada, significar nada, mas aconteceu-me a mim. Aqui está. Aconteceu-me. A mim. A mim, o ser mais importante do universo desde o ponto em que me encontro. Aconteceu-me enquanto ensaiava uns passos hesitantes por maus caminhos para me tornar numa melhor pessoa. Tudo isto numa noite na minha cidade. E eu até estava bem, não me podia queixar. Nessa altura, preparava uma recensão sobre os ensaios dantescos de Borges. Andava a juntar uns cobres para o meu último capricho. Desistira de escrever porque achava o acto em si mais feminino do que fazer croché. Revi todas as noites sentado em frente do computador a alinhavar palavras umas atrás das outras e achei o acto tão delicado que transformava um gigante de dois metros a escrever por quem os sinos dobram no mais mariquinhas dos seres humanos. Comecei a lembrar-me do meu avô agricultor atrás de um arado e envergonhava-me sempre que pegava na Parker 21 para rabiscar umas frases. Por mais sofrimento que daí­ adviesse, não podia deixar de me sentir um mariquinhas a fazer renda com os pensamentos. Virei-me para a crí­tica e uma editora aceitava-me como mais brilhante do que os autores em que eu descarregava fel mês após mês.

Foi ao fim da noite com o ar frio nos pulmões. Quase sol. Tinha sido mais uma daquelas noites. Noites em que as cores da vida resultam num outro tipo de existência. Sedutora, malévola. Com álcool a girar turbinas. Há anos que eu me alimento desses hiatos entre o ser e o nada para viver. Quando a escuridão rasga o dia e os contabilistas nos perdem de vista. Nessas alturas torno-me numa criança com ví­cios e muito dinheiro. Como todos os que encontro então, sou um morto-vivo por opção. Não agradeço o que me deixaram nem me preocupo com os que vierem depois. Sou um mimado que recusa qualquer encargo que possa tornar-me responsável. Nunca esperei nada da vida.

Mas não vamos perder-nos em angústias desnecessárias. É apenas de mim que se trata. Sentem-se. Se tiverem tabaco à mão, fumem à vontade. Eu estou a fazê-lo neste preciso momento. Nem uma página sai daqui sem um cigarro. Gostaria que fossem Luckies mas acabaram-se ali em baixo na mercearia do senhor Almiro, esse personagem maior, mas que pela minha boca nunca saberão porquê.



Um.


Com o rumor da noite colado ao corpo




Seis e meia da manhã. Fim da noite. O ar frio nos pulmões. Quase sol. Já no caminho para casa, cansado, encontrei um velho com olhos à Peter Lorre sentado numa boca de água à beira do passeio. Pus-me à conversa com ele. Mulheres. Bares. Noites para passar. Já tinham sido milhares. Noites que acabavam com os maços de cigarros vazios. Já não pertencia a este tempo. Estendeu-me uma garrafa com não sei o quê e enquanto bebíamos - a única coisa que me interessava àquela hora era atrasar a ressaca - falava de manhãs que ninguém via e como isso o irritava por ser um iluminado e estar na merda enquanto os outros dormiam em casas grandes e quentes. De vez em quando deixava a cabeça roçar o chão entre as pernas para se reerguer de seguida e engolir ar em grandes golfadas. Já não pertencia a este mundo sem alma. Isto, disse-lho eu, quase a sorrir e com uma pancadinha nas costas. Não gostou. Agora, apenas queria uma morte em paz. Sem agonias de última hora. Sem ressacas da vida. Nem dos acessos de génio. Nem da alma que arrastava atrás de si como um peso e que pensou um dia que poderia ser grande para sempre. Em momentos de tentação. Assim que me tomavam, disse, rumava ao bar mais próximo e bebia até acabar à pancada com um filho da puta qualquer. Não há nada mais triste do que estar à espera de ficar nos anais da história quando há tanta coisa que pode satisfazer um gajo logo ali enquanto está vivo. “Sabe, eu não tenho jeito para esta vida. Estou farto de tipos que... gajos bem sucedidos sem tempo para ser mais nada, tipos que não são mais do que eram à hora de nascer, que nunca criaram do nada e nada são para além do que têm, é o que é, andam a foder o mundo para poderem ter um mundo melhor, é o que é, a inteligência a toda a prova, se as florestas fossem de plástico andavam a arrancar árvores para construir ventiladores de oxigénio”. O que está este cabrão para aqui a dizer?

Um gole de cerveja e abrimos um novo capítulo sobre os momentos. "Mas esses momentos desapareceram, deixaram de me incomodar" - dizia. "Só me doem de noite. Depois, o Sol acaba sempre por nascer. Toda a vida tem sido assim. Tenho a coragem de recusar o génio. Não sei se o tenho, mas recuso-o todos os dias. Não sou como esses ratos das capelinhas. Vivo. Um dia destes deixo a minha carcaça ao mundo. Mais nada. Há-de ficar arrumada num sítio qualquer com duas datas a provar que vivi."

Havia qualquer coisa perto da verdade no que ele dizia; mas era a lata de cerveja que eu tinha acabado de tirar da máquina atrás de mim o que me interessava. Eu só pensava em adiar a ressaca para dali a dois anos.

Do outro lado da rua havia putas; mas eram como a conversa do Peter L., podia ser muito bom mas não para hoje. "E agora já não vale a pena" - continuou. "Quando chegamos a velhos essas coisas acabam por perder o cheiro. Só a ideia de glorificar uma mente genial no corpo de um velho dá-me vontade de vomitar. E não duvides que eu não o faço. Antes sonhava com tudo isso e como era bom mas, sabes, é o cheiro das coisas que realmente conta, é a Primavera que me enche os pulmões. Nas mulheres, então... nas mulheres... é sempre a Primavera que eu procuro no corpo das mulheres." Comecei a pensar que o tipo se tinha esquecido de tomar a medicação e estavamos ali os dois a brincar à psicanálise. Já estava farto e comecei a levantar-me. Devagar. Pus a mão direita no chão.

Tinha sido mais uma daquelas noites onde se misturam gajos demasiado vivos com outros que ainda não deram conta que estão mortos. Uma noite igual a todas essas outras noites. Mas a ressaca iria ser pior. Senti-o. Não me estava só nos ossos. "O corpo das mulheres é o mapa da minha vida, mas é o cheiro de todas as flores de todas as Primaveras que me conduz na procura das mulheres desses corpos." Levantei-me. Estou de pé. Abanou a cabeça. Estiquei as pernas. "Agora... Nada vale a pena. Nunca valeu. Fui bom demais. Deixei que me tirassem tudo." Acendi um cigarro, vi-o procurar qualquer coisa nos bolsos e afastei-me com os olhos a arder. Acendiam-se luzes nos edifícios em volta e uns putos cantavam uma velha canção dos Velvet. “But one day she heard a New York station...”. Aquilo era mais do meu tempo do que do deles. Era de manhã e o Sol já tinha nascido.

No fim da noite estava de rastos. Quis sentir-me morto e acabado. Apesar de tudo, o velho tinha-me ateado qualquer coisa na alma. Ou talvez fosse a cerveja branca que me estivesse a dar voltas ao estõmago. Eu quase bebia cerveja preta por receita médica. O Pol dizia-me sempre, foge da cerveja branca como diabo da cruz. Mas era fácil para ele dizer estas coisas a um desgraçado que depende de cerveja como os peixes da água. E quando não houver uma guinness à mão senhor doutor? Não bebas. Vai à merda Pol. És tu e o velho. Os cabrões dos velhos que acabam sempre por saber tudo vinte ou trinta anos antes de termos consciência como é tramado andar com um tubo ligado à pichota e um saco amarrado à perna, ou ter de substituir a anca por uma prótese de ferro fundido ou cimento armado. Vistas as coisas à distância, aquele velho, como muitos outros, não era estúpido. Não que eu me tivesse convertido à sua ladainha. Mas fiquei com uma sensação nas pontas dos dedos de que naquela noite qualquer coisa que se estava a perder no universo. De forma constante. Como o mar desgasta as praias. Sem pressas. Alguma coisa se perdia e eu sempre prezei o instinto que me segredava ao ouvido coisas na forma de mil ciclos à espera de serem descodificados.

Mas não foi aí, porém, que o meu eu se transformou noutro eu. Tudo estava ainda por acontecer. Era a luz, aquela luz com que o velho se lavava todas as manhãs, que sabia a hora. Aquela luz iria abater-se sem piedade sobre os olhos que me vêem todos os dias no espelho grande da casa de banho. Eu não o sabia mas pressenti-o. Quando saí da casa de F. com a saliva de F. no meu pénis e o punho do marido no olho direito. F. foi uma verdadeira puta, como sempre. E o marido um homem. Como nunca, suponho. Eram duas ou três da manhã, a noite estava longe de acabar, e eu a calçar os sapatos sentado num relvado qualquer. Ainda não tinha acontecido o meu encontro com o velho, a lua conduziu o meu corpo pelas ruas e eu apenas tive de o seguir.

Quatro e tal da manhã. A noite é enorme mas a minha cidade é ainda maior. E aquela era, como diria o velho, uma noite por cumprir-se. Meia hora depois, estava à porta do único bar onde poderia ir parar naquele estado. GARFIL. O olho estava pior e a ficar cada vez pior. Praticamente já não o abria. Entrei. Eu não estava nem queria estar melhor do que o olho. O olho, meus senhores, onde tudo começou para mim. O direito. Compus as lapelas do Hugo Boss antracite e entrei. Objectivo: Bloody, 1 metro e 95, magro mas com anos de ginásio, cabelo oxigenado, o barman eleito pelo melhor do meu fígado, o único que me abria através das entranhas o impreciso caminho da alma. Do melhor do meu fígado para o pior da minha alma encavalitado no shaker de Bloody. Com um bilhete de ida, apenas.

Apesar de mui nobre, o objectivo que me levou a subir a Rua da Atalaia e abrir caminho nas Portas Largas entre dezenas de gajos indiferentes às minhas necessidades primárias foi abortado em trinta segundos. A mãe do Bloody, cinquenta e nove anos, alta, elegante nos seus cinquenta e nove anos, olhos negros e o cabelo sempre apanhado num carrapito, já andava mal há coisa de meio ano; naquela sexta-feira sentiu uns calores na cara, quebra de tensão com desmaios e passou a noite nas urgências. Bloody, apesar de matulão, ainda vivia aos trinta e seis com a mãe que adorava e não saiu de ao pé dela. Como não ia ter ninguém para cuidar de mim, amuei e decidi passar o resto da noite na casa-de-banho, longe dos decibéis assassinos que faziam pular toda a gente numa violência artificial.

De qualquer forma estava eufórico e nada podia impedir-me de sentir a minha alma ali ao lado, à espera. Peguei num rolo de papel higiénico, mergulhei-o em água, espremi-o e improvisei uma compressa. Estava decidido, passaria ali o resto da noite e beberia toda a cerveja que houvesse na máquina do lado esquerdo dos lavatórios. Graças a deus havia litros e litros de Guinness à disposição. Caso contrário teria de me arrastar até à porta do lado e nunca se sabe o que nos pode acontecer na casa-de-banho das meninas do GARFIL. Sentei-me num banco alto e iniciei o fim da noite.


Desculpem-me juntar assim dois inícios tão longos, mas é mesmo assim

um abraço, até logo
Blog quebra o silêncio


O mais belo poema de... (1992)


Agora eu tinha
voltado à aldeia dos
meus pais. A música.
A mesma música.
o silêncio o mesmo
Nu na cama.
O mesmo silêncio.
Sentir-me lá. Aqui.
Longe.
Acordar com a esperança de
que fosse verdade.

Eu estou lá. Sim
Eu estou lá.
A música. Sentir-me
assim de novo.
Como então me sinto
agora.
Que grande alegria.
Um alegre vazio.

Eu

De verdade - Eu.
O Sol. Entre as casas.
Quente. Nas sombras
de pedra. Sentar-me.
Comer um pão com presunto.
Ouvir a minha avó
a chamar por mim.
Não ouvir. Não ir.
Ficar ali, entre as pedras
e o Sol.
Que terrível criança que
eu sou.
Agora. Apenas por um
momento. Então.
Estou de calções.
Descalço.
Fui beber água à
fonte. Estou feliz.
Por este momento. Por
esta memória.
(a sério)
já vou, avó
tenho que ir, infelizmente

um cão passa por mim
dou-lhe um pontapé, mas
gosto dele


Até logo

quinta-feira, dezembro 11, 2003

A folha branca, sempre

Não há forma de remediar este silêncio, como tal avanço com uma história em capítulos que será mediada por prosa de coisas simples.

Até já