quarta-feira, setembro 23, 2009

política portuguesa

sábado, setembro 19, 2009

O HOMEM

Quando eu era pequeno, vivia a minha vida entre gente viva, num café que pulsava a todas as horas do dia. Com ritmos diferentes, certo, fosse manhã, tarde ou noite. Mas eram horas que me eram sempre familiares, a mim que reconhecia as nuances do dia sem olhar os ponteiros de 1 a 12. Conhecia o andar das horas pelo matiz da piada que irrompia pelo café porque era o senhor João que entrava, aquele que arranjava pneus onde eu me espojava como fazem os burros nos lagos de terra quando querem aliviar a comichão das costas na aldeia que foi a dos meus avós. Os pneus onde cheguei a adormecer por entre túneis que só eu parecia conhecer e onde qualquer outro se perderia sem a minha bússola. Ou quando entrava o senhor Mendes, a quem por respeito e despeito chamavam o Careca - também por falta de cabelo do frontal até à nuca - e que tinha na juventude sido atleta do Benfica, campeão na bola, no hóquei, no atletismo e no ping-pong. O senhor Mendes tinha uma oficina de máquinas de escrever, logo ali quase de frente para o café. Perdi-me também entre teclados azert e imponentes máquinas Royal onde metia papéis mal prenchidos com palavras desalinhadas meio vermelhas meio pretas. O café não tinha clientes. Eram amigos que a espaços entravam e saíam. Às terças era dia de feira na cidade e era dia de os agricultores aparecerem com cestos vazios para um último copo antes do regresso, que eu constrangido julgava que transformavam o meu café numa tasca mas que logo sentia estar tão tão enganado nessa repulsa momentânea. Num compartimento à parte havia matraquilhos e flippers e mais tarde os video-jogos que começaram com o Space Invaders, um compartimento de uns 20 metros quadrados onde passei muitas tardes e muitas noites com gente que é hoje importante mas que eram apenas uns miúdos que aproveitavam aquela casa de família. Todos os dias havia no ar um aroma a moelas e febras feitas com a mão certa e muito colorau. E os amigos que não eram clientes. Um estranho que contornasse de fora o edifício e entreouvisse de uma porta aberta as frases soltas que se desprendiam dos próprios fígados presumiria que se matavam ali, mas não, era antes o cada um a dar-se aos outros com tudo o que tinha. E eu estava aberto para receber tudo. Foi a minha primeira e mais importante escola. O café onde se viveram angústias pessoais, íntimas, onde havia lugar para a maledicência também. Houve destruição de carácteres mas sempre um ombro para amparar os caídos em desgraça. Como quando o senhor Alexandre, que tinha a lavandaria, apanhou Alzheimer, e todos sofremos com isso, ou quando o Careca morreu após anos de luta contra o cancro na garganta. De tudo. Gerações inteiras. Pais, filhos, netos, eram impossível que por ali não passassem. Ah; também me perdi entre as fronhas e vincos desmaiados de clientes finos nos cestos de roupa da lavandaria, e claro que dormi umas boas cestas coberto de flanelas e rendas quebradiças enquanto a minha mãe se afadigava debaixo do Sol à minha procura. Esqueço-me do senhor Oliveira que tinha a papelaria, e que disse um dia que eu tinha pernas e coração de maratonista, mas ele não era homem de cafés, apenas porque não era. E eu também não me perdia entre as páginas dos livros que vendia. Mas lembro-me de um dia, teria eu 11 anos, o meu pai, a quem nunca conheci a hesitação, depois de eu colocar uma dúvida estranha acerca da língua, pegar em mim e entrarmos na Papelaria Camões: senhor Oliveira, dê-me um dicionário para o Paulo. Há gestos curtos que escrevem panegíricos inteiros. Obrigado pai. Quando há meses lhe peguei na mão enquanto morria e lhe sussurrei ao ouvido obrigado pai, obrigado por tudo, obrigado, obrigado pai, obrigado pai, obrigado foi também por isto. Por tudo isto. Porque ali, naquele café, o cimento de toda aquela gente e sempre a servir-nos a todos - o meu pai.
E não há nada mais triste, não é assim?

"Sozinho, leva nas retinas um lume de heroína, uma vaga memória de pés descalços na areia molhada, do terno hálito da mãe após um beijo na testa e do cheiro a mar no pescoço do pai, a cabecear de sono puro no colo quente." (Caixa de Petri)

quinta-feira, setembro 10, 2009


Ó meu caro...

se o Switf por aqui chegasse não veria obrigatoriamente "um grupo de políticos na defensiva, sem respeito por si próprios, acossados por jornalistas malcriados e por uma irritação colectiva atiçada por boas e más razões", mas facilmente confundiria debates entre esses pobres acossados com a gamela dos porcos. Cevados, bem entendido. Mas dignos de comiseração, um outro tipo de comiseração talvez encontrado nos círculos percorridos por Virgílio.

E encontraria gente que tem blogues para maldizer quem escreve em blogues e gente que veste farda de comentador televisivo para desfazer os comentadores televisivos e gente que escreve em jornais para desdenhar aquele que escreve em jornais - quando era eu ainda miúdo entre amigos néscios, já então, havia um nome para este tipo de gente. Swift encontraria deuses, enfim, mas deuses menores, quão menores meu caro.

terça-feira, setembro 01, 2009

Treze. Um acidente. (versão 2)


A caminho da noite. Acabaram por comer qualquer coisa em casa de Tomás – nothing fancy, uma coisa quase seca - antes de partirem para uma noite de tripop mas era mais um som à Lisa Gerrard o que levavam na alma. A caminho da noite, já na rua. Acabaram por se deter breves instantes num tipo que apresentava à beira-rio o seu espectáculo de robertos. Roberto, para dizer a verdade. O tipo suspendia-se de um boneco de uns bons três metros de altura, ao qual estava ligado por varas metálicas. Neste caso era o boneco quem ordenava todos os gestos. Quando entraram no Lux, iam já nas duas e tal da manhã e sem nada para decidir. Por momentos, os planos da noite foram absorvidos num vórtice de música e corpos de gajas desinteressantes. Parados à beira da pista, esforçavam-se por manter os olhos abertos. Como se estivessem demasiado bêbados. Demasiado velhos. Cansados daquilo. Cansados de gente a mais. Há uns anos, numa noite de férias quentes de Verão, ao fim da noite entraram num bar de karaoke que era coisa que abominavam e por isso mesmo entraram naquele bar de cantigas brasileiras com legendas e meninas a esforçar pronúncias de mau português. A sala teria uns cinquenta metros quadrados e todo o espaço era preenchido por carne fresca e meninas chegadas à praia das cidades de província de todo o país. Depois de meia hora a emborcar cerveja e fumar cigarro atrás de cigarro, o Tomás agarrou o André pelo braço e gritou-lhe: let´s torch this shit apart. What, fuck you. We’ gonna sing My Way. Vai-te foder mais o Sinatra. No sir, Sex Pistols. Joaquim estava entretido a um canto, com duas ou três gajas debaixo de olho e Jean, como sempre, meio perdido onde quer que estivesse. Quando Tomás chegou à cabine do DJ com o Andrés debaixo do braço levou muito tempo, mais do que queria, a explicar que era o Sid Vicious quem ele queria ver por detrás das letras do my way que iriam aparecer no LCD a meio da sala apinhada. Esperaram vinte minutos até que das colunas saiu um “E agora My Way por Tomás e André” (obviamente que o gajo nunca iria perceber o s, poucos percebem). Pegaram nos micros e caminharam displicentemente como faria Sid Vicious em direcção ao meio da sala pequena e Tomás começou lentamente com um tom que só os dez cigarros que entretanto fumou tornavam possível and now, the end is near… mas quando chegou a regreats I had a few já o Andrés amplificava o mau estado de coisas por cima do seu ombro direito, Tomás empolga-se dá uns passos à direita, volta-se, corre para Andrés e desliza até ele já de joelhos e entre grunhidos aqui e além – Joaquim está louco aos saltos agarrado a duas jovens meninas com saias tipo cinto o que lhes expõe as costuras dos collants – Tomás apenas vê vultos em volta, sombras que trepam pelas paredes e o pub é subitamente um lugar arejado e em breve expurgado dos males do mundo. Andrés está também de joelhos And did it my way. Metade da sala desaparecia quando são agarrados por dois tipos de calças muito justas pretas, botas da tropa, redes e t-shirts rasgadas, o cabelo em ripas verticais, a cara furada por pregos e alfinetes a gritarem-lhes aos ouvidos Pá, távamos a ver que nunca mais apareciam e o DJ, sem deixar acabar a parte instrumental anuncia ao microfone: e acabamos por esta noite, esperamos por vocês amanhã. Foi o primeiro bar da praia a fechar naquela noite – era umaevinte.
Mas isso foi há anos e essa era outra noite. A meio desta noite que já madrugava, Andrés foi contra um dos colegas lá da revista, um tipo baixo e rotundo, mais velho, que foi despejado na agenda e que se ocupava a chatear os jornalistas hora sim hora não com uma conferência de imprensa que estava para acontecer ou uma actriz promovida a estrela que tinha uma sessão de fotografias ou de autógrafos ou uma coisa do género. “Eia Andrés, por aqui?”, não, por ali, quis responder-lhe mas foi um “Eia” que lhe saiu e sem dar por isso já estava ouvir não sei o quê dos horários da revista e que estava a ser lixado com os subsídios e que era uma merda ter de trabalhar tardes e noites por causa não percebeu de o quê quando sem anúncios esofágicos aspergiu de alto a baixo com um vómito o funcionário que acabara de encontrar entre duas músicas lentas e chatas e que não levou a coisa a bem e fez um ensaio de que queria arrear-lhe mas Joaquim que estava por perto a rir às gargalhadas interpôs-se e arrancou dali para fora com Andrés por um braço enquanto fazia sinal a Jean e Tomás. E tudo o que eles eram estava resumido nesse momento. Uma náusea imensa pela vida. Pela vidinha.