terça-feira, dezembro 16, 2003

HAVIA-O PROMETIDO E SOU DE HONRA



"Espero mudar totalmente e converter-me noutra
pessoa, pois estou fartí­ssimo do Jorge Luí­s Borges."
Jorge Luí­s Borges


Zero.


Non nova, sed nove ou qualquer coisa assim



"Desejei ser feliz como se
não pudesse ser outra coisa."
André Gide


Desculpem-me por começar desde o zero. Não é maneira de começar uma história. Supõem os tempos modernos que a coisa comece com meia dúzia de factos ou descrições que abram o apetite. Lamento decepcionar os senhores leitores, mas a coisa só dá para o torto lá mais para a frente. Mas, para que não tenham dúvidas, digo-vos já que o que aqui ouvirem e apesar de esta história não estar aparentemente dentro dos limites da verdade, tudo aconteceu de facto; aconteceu-me justamente a mim, o único de entre os não-eleitos a quem poderia acontecer. Tive apenas o cuidado de ocultar todos os nomes que se atravessaram no meu caminho sob pseudónimos toscos que fui buscar ao inconsciente, e que irão descobrir quando eu já estiver absolutamente perdido. Também localizações geográficas, sí­tios e afins apenas têm verdadeiro significante na minha cabeça.

De qualquer forma, não se vejam obrigados a entender as páginas que vão seguir-se. O que é que podemos dizer uns aos outros? Pouco mais do que nada. Não se iludam, caros senhores. É isso que eu tenho para contar: nada de novo. Talvez vos agrade a forma. Ou talvez a achem tosca. Nil novi sub sole. O novo século está aí­ e esta história servirá melhor se vestida em boas capas de couro em mobílias de cerejeira.

Aquilo que aconteceu naquela noite poderia ter dado em nada, significar nada, mas aconteceu-me a mim. Aqui está. Aconteceu-me. A mim. A mim, o ser mais importante do universo desde o ponto em que me encontro. Aconteceu-me enquanto ensaiava uns passos hesitantes por maus caminhos para me tornar numa melhor pessoa. Tudo isto numa noite na minha cidade. E eu até estava bem, não me podia queixar. Nessa altura, preparava uma recensão sobre os ensaios dantescos de Borges. Andava a juntar uns cobres para o meu último capricho. Desistira de escrever porque achava o acto em si mais feminino do que fazer croché. Revi todas as noites sentado em frente do computador a alinhavar palavras umas atrás das outras e achei o acto tão delicado que transformava um gigante de dois metros a escrever por quem os sinos dobram no mais mariquinhas dos seres humanos. Comecei a lembrar-me do meu avô agricultor atrás de um arado e envergonhava-me sempre que pegava na Parker 21 para rabiscar umas frases. Por mais sofrimento que daí­ adviesse, não podia deixar de me sentir um mariquinhas a fazer renda com os pensamentos. Virei-me para a crí­tica e uma editora aceitava-me como mais brilhante do que os autores em que eu descarregava fel mês após mês.

Foi ao fim da noite com o ar frio nos pulmões. Quase sol. Tinha sido mais uma daquelas noites. Noites em que as cores da vida resultam num outro tipo de existência. Sedutora, malévola. Com álcool a girar turbinas. Há anos que eu me alimento desses hiatos entre o ser e o nada para viver. Quando a escuridão rasga o dia e os contabilistas nos perdem de vista. Nessas alturas torno-me numa criança com ví­cios e muito dinheiro. Como todos os que encontro então, sou um morto-vivo por opção. Não agradeço o que me deixaram nem me preocupo com os que vierem depois. Sou um mimado que recusa qualquer encargo que possa tornar-me responsável. Nunca esperei nada da vida.

Mas não vamos perder-nos em angústias desnecessárias. É apenas de mim que se trata. Sentem-se. Se tiverem tabaco à mão, fumem à vontade. Eu estou a fazê-lo neste preciso momento. Nem uma página sai daqui sem um cigarro. Gostaria que fossem Luckies mas acabaram-se ali em baixo na mercearia do senhor Almiro, esse personagem maior, mas que pela minha boca nunca saberão porquê.



Um.


Com o rumor da noite colado ao corpo




Seis e meia da manhã. Fim da noite. O ar frio nos pulmões. Quase sol. Já no caminho para casa, cansado, encontrei um velho com olhos à Peter Lorre sentado numa boca de água à beira do passeio. Pus-me à conversa com ele. Mulheres. Bares. Noites para passar. Já tinham sido milhares. Noites que acabavam com os maços de cigarros vazios. Já não pertencia a este tempo. Estendeu-me uma garrafa com não sei o quê e enquanto bebíamos - a única coisa que me interessava àquela hora era atrasar a ressaca - falava de manhãs que ninguém via e como isso o irritava por ser um iluminado e estar na merda enquanto os outros dormiam em casas grandes e quentes. De vez em quando deixava a cabeça roçar o chão entre as pernas para se reerguer de seguida e engolir ar em grandes golfadas. Já não pertencia a este mundo sem alma. Isto, disse-lho eu, quase a sorrir e com uma pancadinha nas costas. Não gostou. Agora, apenas queria uma morte em paz. Sem agonias de última hora. Sem ressacas da vida. Nem dos acessos de génio. Nem da alma que arrastava atrás de si como um peso e que pensou um dia que poderia ser grande para sempre. Em momentos de tentação. Assim que me tomavam, disse, rumava ao bar mais próximo e bebia até acabar à pancada com um filho da puta qualquer. Não há nada mais triste do que estar à espera de ficar nos anais da história quando há tanta coisa que pode satisfazer um gajo logo ali enquanto está vivo. “Sabe, eu não tenho jeito para esta vida. Estou farto de tipos que... gajos bem sucedidos sem tempo para ser mais nada, tipos que não são mais do que eram à hora de nascer, que nunca criaram do nada e nada são para além do que têm, é o que é, andam a foder o mundo para poderem ter um mundo melhor, é o que é, a inteligência a toda a prova, se as florestas fossem de plástico andavam a arrancar árvores para construir ventiladores de oxigénio”. O que está este cabrão para aqui a dizer?

Um gole de cerveja e abrimos um novo capítulo sobre os momentos. "Mas esses momentos desapareceram, deixaram de me incomodar" - dizia. "Só me doem de noite. Depois, o Sol acaba sempre por nascer. Toda a vida tem sido assim. Tenho a coragem de recusar o génio. Não sei se o tenho, mas recuso-o todos os dias. Não sou como esses ratos das capelinhas. Vivo. Um dia destes deixo a minha carcaça ao mundo. Mais nada. Há-de ficar arrumada num sítio qualquer com duas datas a provar que vivi."

Havia qualquer coisa perto da verdade no que ele dizia; mas era a lata de cerveja que eu tinha acabado de tirar da máquina atrás de mim o que me interessava. Eu só pensava em adiar a ressaca para dali a dois anos.

Do outro lado da rua havia putas; mas eram como a conversa do Peter L., podia ser muito bom mas não para hoje. "E agora já não vale a pena" - continuou. "Quando chegamos a velhos essas coisas acabam por perder o cheiro. Só a ideia de glorificar uma mente genial no corpo de um velho dá-me vontade de vomitar. E não duvides que eu não o faço. Antes sonhava com tudo isso e como era bom mas, sabes, é o cheiro das coisas que realmente conta, é a Primavera que me enche os pulmões. Nas mulheres, então... nas mulheres... é sempre a Primavera que eu procuro no corpo das mulheres." Comecei a pensar que o tipo se tinha esquecido de tomar a medicação e estavamos ali os dois a brincar à psicanálise. Já estava farto e comecei a levantar-me. Devagar. Pus a mão direita no chão.

Tinha sido mais uma daquelas noites onde se misturam gajos demasiado vivos com outros que ainda não deram conta que estão mortos. Uma noite igual a todas essas outras noites. Mas a ressaca iria ser pior. Senti-o. Não me estava só nos ossos. "O corpo das mulheres é o mapa da minha vida, mas é o cheiro de todas as flores de todas as Primaveras que me conduz na procura das mulheres desses corpos." Levantei-me. Estou de pé. Abanou a cabeça. Estiquei as pernas. "Agora... Nada vale a pena. Nunca valeu. Fui bom demais. Deixei que me tirassem tudo." Acendi um cigarro, vi-o procurar qualquer coisa nos bolsos e afastei-me com os olhos a arder. Acendiam-se luzes nos edifícios em volta e uns putos cantavam uma velha canção dos Velvet. “But one day she heard a New York station...”. Aquilo era mais do meu tempo do que do deles. Era de manhã e o Sol já tinha nascido.

No fim da noite estava de rastos. Quis sentir-me morto e acabado. Apesar de tudo, o velho tinha-me ateado qualquer coisa na alma. Ou talvez fosse a cerveja branca que me estivesse a dar voltas ao estõmago. Eu quase bebia cerveja preta por receita médica. O Pol dizia-me sempre, foge da cerveja branca como diabo da cruz. Mas era fácil para ele dizer estas coisas a um desgraçado que depende de cerveja como os peixes da água. E quando não houver uma guinness à mão senhor doutor? Não bebas. Vai à merda Pol. És tu e o velho. Os cabrões dos velhos que acabam sempre por saber tudo vinte ou trinta anos antes de termos consciência como é tramado andar com um tubo ligado à pichota e um saco amarrado à perna, ou ter de substituir a anca por uma prótese de ferro fundido ou cimento armado. Vistas as coisas à distância, aquele velho, como muitos outros, não era estúpido. Não que eu me tivesse convertido à sua ladainha. Mas fiquei com uma sensação nas pontas dos dedos de que naquela noite qualquer coisa que se estava a perder no universo. De forma constante. Como o mar desgasta as praias. Sem pressas. Alguma coisa se perdia e eu sempre prezei o instinto que me segredava ao ouvido coisas na forma de mil ciclos à espera de serem descodificados.

Mas não foi aí, porém, que o meu eu se transformou noutro eu. Tudo estava ainda por acontecer. Era a luz, aquela luz com que o velho se lavava todas as manhãs, que sabia a hora. Aquela luz iria abater-se sem piedade sobre os olhos que me vêem todos os dias no espelho grande da casa de banho. Eu não o sabia mas pressenti-o. Quando saí da casa de F. com a saliva de F. no meu pénis e o punho do marido no olho direito. F. foi uma verdadeira puta, como sempre. E o marido um homem. Como nunca, suponho. Eram duas ou três da manhã, a noite estava longe de acabar, e eu a calçar os sapatos sentado num relvado qualquer. Ainda não tinha acontecido o meu encontro com o velho, a lua conduziu o meu corpo pelas ruas e eu apenas tive de o seguir.

Quatro e tal da manhã. A noite é enorme mas a minha cidade é ainda maior. E aquela era, como diria o velho, uma noite por cumprir-se. Meia hora depois, estava à porta do único bar onde poderia ir parar naquele estado. GARFIL. O olho estava pior e a ficar cada vez pior. Praticamente já não o abria. Entrei. Eu não estava nem queria estar melhor do que o olho. O olho, meus senhores, onde tudo começou para mim. O direito. Compus as lapelas do Hugo Boss antracite e entrei. Objectivo: Bloody, 1 metro e 95, magro mas com anos de ginásio, cabelo oxigenado, o barman eleito pelo melhor do meu fígado, o único que me abria através das entranhas o impreciso caminho da alma. Do melhor do meu fígado para o pior da minha alma encavalitado no shaker de Bloody. Com um bilhete de ida, apenas.

Apesar de mui nobre, o objectivo que me levou a subir a Rua da Atalaia e abrir caminho nas Portas Largas entre dezenas de gajos indiferentes às minhas necessidades primárias foi abortado em trinta segundos. A mãe do Bloody, cinquenta e nove anos, alta, elegante nos seus cinquenta e nove anos, olhos negros e o cabelo sempre apanhado num carrapito, já andava mal há coisa de meio ano; naquela sexta-feira sentiu uns calores na cara, quebra de tensão com desmaios e passou a noite nas urgências. Bloody, apesar de matulão, ainda vivia aos trinta e seis com a mãe que adorava e não saiu de ao pé dela. Como não ia ter ninguém para cuidar de mim, amuei e decidi passar o resto da noite na casa-de-banho, longe dos decibéis assassinos que faziam pular toda a gente numa violência artificial.

De qualquer forma estava eufórico e nada podia impedir-me de sentir a minha alma ali ao lado, à espera. Peguei num rolo de papel higiénico, mergulhei-o em água, espremi-o e improvisei uma compressa. Estava decidido, passaria ali o resto da noite e beberia toda a cerveja que houvesse na máquina do lado esquerdo dos lavatórios. Graças a deus havia litros e litros de Guinness à disposição. Caso contrário teria de me arrastar até à porta do lado e nunca se sabe o que nos pode acontecer na casa-de-banho das meninas do GARFIL. Sentei-me num banco alto e iniciei o fim da noite.


Desculpem-me juntar assim dois inícios tão longos, mas é mesmo assim

um abraço, até logo

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