quarta-feira, dezembro 31, 2003

Catorze.


"Como Eric também se perdeu"



Terá sido assim: "Deviam ser umas oito da noite e eu vinha da praia. Tinha combinado qualquer coisa com duas miúdas que conheci da parte da manhã na piscina do hotel e estava atrasado. Como uns tipos locais me tinham falado de um caminho mais curto através das montanhas, decidi arriscar. Durante quinze minutos atravessei o verde das encostas absolutamente sozinho sem que um único carro se cruzasse comigo e eu comecei a achar que ou me tinha enganado no caminho ou era alguma brincadeira dos nativos com os turistas. Ou mesmo qualquer coisa pior, qualquer intenção criminosa que se escondia por detrás da informação que me haviam dado. Entretanto, a estrada começou a apresentar-se-me em pior estado, piorando a cada quilómetro. A paisagem não era desagradável. A situação era." Nós líamos aquilo atentamente e ninguém se atrevia a interrompê-lo.

"Ao fim de uma hora eu continuava na montanha e sem perspectivas de sair dali. De repente, numa curva, apareceu-me, ao longe, uma grande quantidade de luz que eu não reconheci imediatamente. Andei mais alguns quilómetros, parei o carro e, com a ajuda de binóculos, reconheci tratar-se da cidade onde eu estava hospedado. Calculei que, apesar do tempo que já havia perdido, quinze minutos pôr-me-iam no lugar que eu queria. Ora, estando as montanhas à minha esquerda, e a cidade à minha direita, vendo-me constantemente a curvar no sentido contrário a esta, embrenhando-me cada vez mais na serra, aproveitei, quando me apareceu uma estrada nova à minha direita, para mudar de direcção. Durante uns dez minutos rolei entre o pó e a bruma. Continuava a descortinar as luzes da cidade ao longe mas, por mais atalhos que eu tomasse, não havia maneira de me pôr na estrada principal que me era familiar. Umas duas horas e meia depois, aconteceu o pior. Gasolina, zero. Sai do carro, dei três pinotes e amaldiçoei os tipos que me tinham aconselhado o trajecto. Eram praticamente onze da noite. Estava cheio de fome, tinha a certeza de que as miúdas não estavam à minha espera e não fazia ideia de como ia sair daquilo. Encostei-me ao carro e, com uma emissora local sintonizada, comecei a beber um pacote de leite. Imaginam o que aconteceu então? Saiu-me ao caminho um velhote a cantarolar a mesma canção do folclore local que saía da porta do Jeep. 'Eh lá!', interpelou-me ele placidamente, monocórdico. ("Interpelou era um termo típico do Eric. Tique de advogado.) Puxava uma espécie de carripana com duas rodas atulhada de ferramentas e outras coisas que eu não pude distinguir. 'Allah hu acbar.' - foi a primeira coisa que me saiu entre dentes. Uma coisa que aprendi com um cliente árabe que não parava de ma repetir depois de ganharmos uma causa perdida. Qualquer coisa acerca de uma francesa que ele tinha comprado para o filho."

Nós continuávamos a ouvi-lo atentamente. Nessa altura, como agora, éramos um grupo de cinco e encontrávamo-nos umas duas ou três vezes por semana. Além de mim, da Kate e do Eric, havia ainda o Johny Boy, era assim que ele gostava que o tratássemos, que tanto nos falava de Nova Iorque como de Londres - às vezes vinha acompanhado de uma rapariga ruiva e alta, modelo, pelos vistos - e, em Osaka, o Songo-Han. Na altura, foi o único que notou que alguma coisa não estava bem. Comigo. Depois, há sempre aqueles que vão e vêm. É com este grupo que eu liberto as minhas vergonhas mais inconfessáveis, nem todas. Mas ouçamos o resto da história do Eric.

"Pela explicação do velho, rapidamente percebi que nunca, por mim, voltaria a encontrar o rumo certo. A estrada principal, a marginal, estava ali mesmo ao lado, mas grande parte destes caminhos onde nos encontrávamos eram particulares e conduziam a velhas minas arruinadas e sombrias. Foi isto mesmo que ele me disse. Ele próprio que era, ainda, o proprietário da única mina em funcionamento. Apenas ele a trabalhava e, dir-se-ia, pelo seu aspecto e pela forma como transportava o material de trabalho, que a mina, mais do que a sua felicidade constituía para ele fonte de miséria e de frustração. Eu não podia estar mais enganado, como mais tarde constatei. Aquele velho era absolutamente feliz. Feliz. Notem bem, eu digo feliz na inteireza do termo. Estou a dizer-vos, feliz. Algo para nós completamente desconhecido. No extremo da miséria, algures em nenhures, nas latitudes do fantástico, do essencial, ele não guardava em si qualquer mágoa pela vida.

Tudo isto, eu fui-o sabendo enquanto subíamos um carreiro até à sua casa. Era assim que ele chamava um barracão pré-fabricado com a fibra de vidro já a mostrar-se entre as placas retorcidas pelo sol e pela chuva. Apenas um candeeiro iluminava a cena quando chegámos ao pátio onde deixou o carro com as ferramentas. Eu acompanhei-o confiante na promessa de uns litros de gasolina que, aparentemente, eram, aparte um velho rádio de pilhas, os únicos resquícios de civilização que guardava. A gasolina, pelo que me explicou, servia um motor que em tempos utilizara na mina para puxar o vagão. Mas agora apenas se servia da sua própria força e cada pepita era duplamente compensadora. A promessa incluía também um percurso guiado até às raias da civilização. Que eu desconfiava significar coisas opostas para ambos. Estávamos na cabana, ou como lhe queiram chamar, onde ele tinha a chave de uma pequena arrecadação onde guardava as ‘alfaias’. Mandou-me entrar e saiu 'por la gasolina'. Eu sentei-me numa poltrona velha que me indicou e, durante breves instantes, examinei a habitação escassamente iluminada por uma gambiarra. Aquilo era como um estúdio, uma única divisão com a cama a um canto, uma espécie de cozinha a outro e, por fim, o que seria a sala a ocupar dois terços do espaço. Aí pusera a poltrona onde eu me sentara, uma mesa e duas cadeiras. Duas cadeiras; estaria ele à minha espera? Só mais tarde me apercebi de um pormenor curioso. Entretanto, o velhote apareceu na ombreira da porta, com a lata na mão. Já não estava tisnado e trazia roupa lavada. Um par de minutos depois tínhamos regressado ao local onde eu deixara o carro. Fizemos todo o percurso em silêncio. Quando esvaziei a lata para dentro do depósito perguntei-lhe quanto lhe devia. Ele riu-se. 'Por agora, nada. Talvez um dia.', respondeu-me. 'Gostava de ser desprendido como o senhor.', disse-lhe. 'A matéria não é tudo. Não se deixe apanhar por isso. Não faz bem à saúde.', tornou-me, com um sorriso fechado; fiz-lhe um sinal afirmativo com a cabeça. Então, inesperadamente, quando nos preparávamos para partir, perguntou-me se eu não queria jantar com ele. Eu disse-lhe que se fazia tarde e que não queria incomodar, mas ele insistiu. Percebi que não poderia dizer-lhe que não. Voltámos à cabana. Assim que entrámos ele sintonizou o rádio. A música era agradável e dava um aspecto estranho à cena. O velhote preparava o jantar no outro canto da casa, assobiando descontraidamente a melodia que saía do aparelho, como se lhe fosse já familiar. Só então me apercebi do pormenor estranho de que vos falei há pouco e que me teria escapado completamente se eu estivesse naquele momento a caminho da marginal. À esquerda de quem entrava, quase em toda a extensão da parede, na penumbra, uma biblioteca distribuía-se pelas prateleiras de um móvel de pinho escuro. Eram centenas de livros, se não milhares, aquilo que os meus olhos acabavam de descobrir. Levantei-me. Eram livros de filosofia, de história, de música, de direito, romances, ensaios, poesia. Até uma banda desenhada do Corto Maltese, não sei se conhecem. O velho voltou-se, viu-me de pé junto ao móvel e sorriu. Não disse nada. Ou disse, sim, disse. "Não pude desfazer-me disso."

Veio depois até ao pé de mim e estivemos em silêncio a ouvir música enquanto o jantar cozia. O mais surpreendente aconteceu depois. Dispostos os pratos e os talheres, o velhote trouxe a panela para a mesa. Antes de me servir pediu-me desculpa. Pediu-me desculpa porque apenas tinha batatas cozidas para me oferecer. Servimo-nos e jantámos em silêncio. Não me perguntem porquê, foi a melhor refeição que eu já tive. Nunca para mim uma refeição foi assim completa.

"Quando nos despedíamos, já na marginal, eu voltei a agradecer-lhe por tudo, tomando-lhe ambas as mãos nas minhas. Ele voltou a desculpar-se pelo jantar e, então, eu senti os olhos húmidos, apertei-lhe mais as mãos entre as minhas e corri para dentro do carro. Ainda hoje sinto o coração enternecido ao pensar nisto e apenas me atrevi a contá-lo a vocês."

Tudo isto nos foi narrado em poucos minutos à velocidade dos dedos do Eric, deixando-nos sem ar e sem vontade de dizer mais nada. Confesso que nunca esperaria que tal história viesse a passar-se com o Eric. Que na verdade não era história. Tinha sucedido justamente ao Eric.



Votos de bom ano novo para os meus leitores, até para o ano

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