quarta-feira, dezembro 17, 2003

Dois.


O fim da noite...



Tipos que entravam e saíam. Não conseguia responder ao que me perguntavam. Estava a ficar cada vez mais bêbado. Demasiado bêbado. Eles também. Não lhes respondia mas ria-me com eles; ensaiava passos idiotas quando a música entrava com o movimento da porta. Dançava, cambaleava, ria-me com eles. Éramos todos camaradas sem o sermos. Já de saída, seis da manhã, passei pela pista onde quase enlouqueci com as luzes e as lolitas que dançavam como se estivessem a cumprir estágios para streapers do Crazy Horse. As mini-saias plissadas não cumpriam a função, ou cumpriam; há pais que deviam ser presos por incitamento à pedofilia. Em casa ainda lhes sabia as bocas e os corpos de mulher desenhados em pele de bébé. Os corpos, o resto nem por isso, não me lembro. Terríveis lolitas, de todas as cores e tamanhos. Até hoje, nunca mais o síndrome de Mason me abandonou. Como é que tudo começou para o pobre? Lo-li-ta: a ponta da língua faz uma viagem pelo céu da boca... Pornografia do melhor que já se fez.

Pois bem, seis horas; de saída, de novo a rua; nos olhos, o reflexo das luzes da pista, mais no esquerdo do que no direito, com as meninas no coração quase a saltar-me das calças. E depois o velho. Subtil. E depois tanta coisa que via e ouvia em off, sem interesse, e eu, ali, inexplicavelmente quase atento. Talvez a escutá-lo. "As coisas perdem o cheiro demasiado..." Qualquer coisa assim. Acendi um cigarro, afastei-me e deixei-o só, sentado no passeio com putas do outro lado. Tinha os olhos a arder. Era o Sol, a manhã já tinha nascido e eu preparava-me para renascer com ela. "Miúdo", era para mim, "tira aí duas cervejas e eu conto-te a noite que passei com uma tipa com idade para ser minha mulher e que acabou com o marido dela a apanhar-nos nus à lareira, a beber champanhe e a aquecermos o corpo com as melhores posições do Kamasutra." Cervejas, okay. Histórias, negativo. São as duas para ti, velhote. Eu já tenho que chegue. Conheço bem demais essa história e já tenho que chegue. E tinha.




Três.


...e um par de óculos



De qualquer forma, o sono foi à vida com o broche de F. e tinha em casa Jorge Luís Borges e o inferno de Dante à minha espera; o que a certa altura me pareceu impraticável. À medida que a manhã avançava contra mim, senti os olhos a piorarem e comecei a ir contra coisas e pessoas que saíam das esquinas obstinadas. Era a manhã de sábado e as ruas perdiam o cheiro da noite. Ao cruzar-me com uma mulher baixa e pesada, esta virou-me o ombro esquerdo para abrir caminho e, investindo com determinação, atirou-me para dentro de um supermercado contra os carrinhos das compras. Enquanto cambaleava, impecável no meu blazer de caxemira do Afeganistão, percebi que não iria ouvir qualquer explicação e só tive tempo de ver o rabo gordo que a seguia logo atrás e que fez questão em me apresentar. Não se podia exigir nada a semelhante criatura, que se movia a muitos quilómetros por hora, ocupando no seu movimento pendular toda a largura de um passeio de três metros. Estou atirado contra os carrinhos.

Perturbado pela súbita mudança de luz, voltei a cambalear entre as prateleiras das sopas Campbell e dos caldos Knorr. Enquanto obrigava o olho esquerdo a refocar as coisas, que não me pareciam fantásticas, a minha atenção parou num expositor vertical montado sobre uma cópia da Torre Eiffel com a bandeira tricolor; um expositor de óculos de sol. Eu estava mais bêbado do que pensava: a marca era Le Pen. Comprometi-me a voltar ao supermercado com mais sangue do que álcool a correr-me nas veias para confirmar o nome mas, como verão, nunca cheguei a tirar as dúvidas.

Fosse qual fosse a marca, acabei por encontrar a solução para enfrentar o Inferno de Borges. Ao acaso, como muitas outras coisas que me conteceram durante aquela sexta-feira. Estendi a mão, sem olhar, e tirei os primeiros que os meus dedos tocaram. Uma vez postos, assentavam como uma luva. Paguei e sai. A rua, de novo. Mas diferente. Tranquila, pouca gente, como um fim de tarde de Verão, com o Sol a meio gás, aquela rua que apenas os miúdos que jogam à bola conhecem, em cores de fogo de lareira através das brasas ao fundo da sala. Cores com cheiro. Havia qualquer coisa de poético que se podia respirar. Aproveitei e enchi os pulmões até à última costela. Lembro-me de chegar a casa a sentir-me bastante melhor.

Assim que despi tudo menos as calças peguei em vários tomates, esvaziei meia garrafa de Absolut, preparei uma jarra de bloody-mary e fui aliviar-me dos restos da cerveja. Foi na casa de banho que pela primeira vez vi o aspecto físico do milagre por cima do nariz. Iguais a dezenas de óculos que eu já vira antes em tendas de feira. As astes em plástico, os aros em metal escuro, as patilhas de apoio do nariz em borracha transparente e as lentes ovais e escuras. Muito escuras, para ser exacto. Nesse pormenor estava a razão da singularidade do objecto no seu todo. De facto, numa observação mais cuidada, estes não eram uns óculos vulgares. Mais parafuso menos parafuso, mais plástico menos metal, a estrutura era igual à de qualquer par de óculos de sol que os senhores possam imaginar. Mas as lentes eram barreiras que se erguiam entre o mundo e os meus olhos, ao ponto de se tornar impossível vislumbrá-los. E tudo me parecia diferente. A vida quase suportável.

Estava satisfeito com a compra e começava a encarar as aparências da realidade com novo ânimo quando me sentei em frente da Sony com o Inferno nas mãos. Lia "De magestade plenas, quatro sombras/ sem prazer ou tristeza no semblante.// E logo após do meu mestre ouvi:/ 'Aquele que na mão traz uma espada/ E à frente vem dos três, tal mago rei,// Homero é, dos poetas o maior...'...'', quando, sem modéstia nem vergonha (dou-me agora conta, que belo motivo para que a mão de Deus me acariciasse violentamente a face), me ocorreu a ideia de que a cegueira transpõe para a alma a pureza da luz das coisas e que talvez eu, semi-cego como me encontrava, estivesse nesse preciso momento, e justamente por meio das lentes, a metamorfosear-me num Homero ou num Borges. Tal foi o delírio que apenas me permiti um mísero 'talvez'. Mas a verdade é que no mais íntimo do que eu sou tinha sucumbido à tirania do mais sombrio dos desejos. Qual, perguntam os senhores, terá sido o desejo sombrio que acalentou o coração deste jovem no fim daquela noite de sexta-feira? Qual. Pois bem, sejamos honestos: o pior de todos. Da facilidade com que me ri do velho – que para mim era um sucedâneo desgastado do P. Lorre, um velho a destilar charme para poetas enquanto sorve vinho de pacote na beira dos passeios, perdido pela Primavera e pelas mulheres – o quão rapidamente encarei a probabilidade de vir, a partir dessa noite, a ser alguém, um iluminado, um eleito de trazer por casa. Mas não foi apenas a forma como encarei essa probabilidade. Ao sentir-me um cego como Borges e Homero e Milton admiti terríveis circunstâncias para a realização obscura do que já foi para mim uma obsessão – repetia o infortúnio dos mestres com a certeza da glória paga em adiantado. A facilidade. Sem juros. Sem prestações. A pronto. O pecado da inveja personificado no cuco de oitenta quilos que eu fui por breves momentos. O suficiente para me perder da mão de Virgílio e dar de caras com um leão esfaimado, como se pode ler na Comédia.

Para aquele que guarda para o pensamento o último reduto da consciência e de tudo o que ainda é honesto, este foi o momento que desencadeou o processo de que vos é dado conhecimento. Arrependido pela barbaridade, deixei-me cair nos pesadelos que me aguardavam ali mesmo, no sofá, com o livro de Borges no peito, pensando no velho, na luz que lhe faltava e na luz que eu não mais teria.

Obrigado pela paciência, até logo

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