sexta-feira, dezembro 19, 2003

Cinco.


Problemas que assaltam Borges e ressuscitam Isabel



Os óculos. Se eu quisesse deixar-me de merdas, como diz o meu dicionário de vernáculo, os óculos não eram um problema. Logo nos dias que se seguiram os meus olhos adaptaram-se à semi-obscuridade do apartamento - um estúdio de cento e cinquenta metros quadrados de tábua corrida sobre a cidade, para ser mais correcto - e durante o fim-de-semana seguinte consegui trabalhar sem as luzes ligadas. Continuava a não sentir dores - embora sentisse o olho inchado e a latejar de dez em dez segundos - e as coisas filtradas começavam a agradar cada vez mais ao cérebro por detrás das lentes. Quanto à culpa, coisa que só se poderia passar na minha cabeça mas que eu queria sentir como algo que não meu, quando me expugnava nos lapsos da memória eu respondia-lhe redobrando esforços para compreender os passos dos ensaios de Borges e dizia para mim mesmo: estes gajos andaram a fazer rendas e tu vais retalhá-los e acabar com a nobre arte de alinhavar palavras.

Porém, lá no fundo, na minha condição irredutivelmente humana, era como se nada esperasse das minhas acções e de todas as milhares de recensões que pudesse escrever. Era como se nada pudesse apaziguar aquele sentimento. De qualquer forma, não estava à espera que um anjo viesse e me tomasse pela mão. Há um limite lógico para tudo e eu não desafiava esse limite. E até por isso os óculos não constituíam problema algum. Tudo estava dentro dos meus limites do impossível.

Entretanto, por essa altura, mais exactamente no domingo à tarde, cheguei a um problema que o era, pelo menos para Borges; era-o para ele apenas porque o tinha sido para outros e era-o agora para mim porque o tinha sido para ele. Como tudo no mundo comum ligado por interstícios culturais. O problema de Ugolino. Claro que assim à primeira impressão nos é difícil admitir um tal paradoxo da sobrevivência. Dirão os senhores: «Somos civilizados, não?». Mais ainda quando a carne é a nossa carne. Tudo isto parece simples, indiscutível, mas eu estava convencido, ainda estou, que ao corpo apenas interessa a sobrevivência, isto é, superar as situações extremas do seu limite biológico; e tirarmos conclusões sobre uma situação destas sem nos submetermos a ela (falo da fome - foi este o caso que levou Ugolino a, pressupostamente, aceitar a carne dos filhos moribundos), com o cérebro transformado em milhões de células famintas a devorarem-nos tudo o que resta da moral, penso eu, falar destas coisas depois de salmão regado a limão e batatas de cultura biológica com molho de manteiga pode levar-nos a tudo menos à nossa verdade impossível. A história do homem nem sempre é bonita. Só para os tipos que ensinam e nunca saíram das universidades. Só os sistemas teóricos possuem essa diáfana auréola da perfeição. Vejam o relato de Mórus. Numa Inglaterra distante os homens cometiam o simples furto para matar a fome sabendo que isso lhes podia custar a vida. Mais importante: havia quem lhes cortasse a cabeça no caso de serem apanhados. O que não impedia outros de repetirem a proeza. É verdade, nada como ter o estômago a roer-nos por dentro e a cabeça a rebentar para nos ensinar a lição. Eu não tinha essa experiência, também, confesso.

Que problema filho da puta. Em todos os sentidos. É que não tinha eu essa experiência nem tinha eu condições de a recriar. Tudo o que eu pudesse ter feito então não passaria de um simulacro, uma tragédia com dead-line definido. Seria como teorizar sobre a artificialidade.

Na altura, eu apenas tinha a vantagem de reconhecer as minhas limitações. Poucas vezes um problema me mostrara que a vida me tinha poupado às coisas mais obscuras. Nada como a própria fome para me ensinar a lição. Eu nada percebia de fome. Preocupava-me com a colecção de CDs e se algum dia teria um 911.

Mas tinha consciência disso. Eu tinha consciência das minhas limitações e daí iria escrever sobre o problema de Ugolino. Nem poderia ser outra coisa ou de outra forma. A uma coisa eu estava habituado - não falhar. Se o senhor editor, pai de uma filha que valia mais do que o ordenado todos os meses depositado com muitos zeros na minha conta, queria fornecer aos leitores um mapa para os Ensaios Dantescos de Borges, o senhor editor podia contar com ela em cima da secretária antes do fecho da edição.

Curioso foi, a partir daquele episódio da Comédia, lembrar-me de Isabel. Como de outra forma o seu corpo me alimentou meses a fio. A memória é das poucas coisas que eu não entendo e não controlo, é estranha e por vezes, imprudentemente, desenterra-me de segredos que tudo faço para não regressarem. Isabel. Isabel nada tinha que ver com Ugolino nem eu era um tirano para ela. Ugolino Della Gherardesca, gibelino que governou Pisa com mão-de-ferro. Pisa, a cidade da torre inclinada. Nem sequer era assim o meu amor por Isabel. Dói-me falar de Isabel. E os senhores, o que poderão os senhores compreender dum discurso sobre o meu amor? As palavras. As palavras e o seu alinhamento sucessivo. Nada. Como poderia eu expor-vos as marcas da alma que não fazem parte da memória? Que poderei eu dizer-vos desse breve reencontro com a vida? Antes de tudo, não que vos interesse ou mesmo ao episódio, devo declarar que na altura em que recebi a visita deste anjo a minha vida não exigia qualquer tipo de redenção. Não como eu viria a desejar nos dias que se seguirão no relato. Até então eu nada podia temer. Nenhum sinal me fora enviado para revelar a marca da mortalidade dos dias, dos dias já mortos e perdidos. A redenção era para mim uma coisa bíblica, imaterial, como de facto é, imaterial, um território desconhecido cujo sentido se encerrava numa geografia muda, sem voz, quase inoportuna. Que redenção? A minha inexperiência era uma fonte de poder. Tudo estava ao meu alcance. O único amor que conheci até aos vinte anos foi-me dado pelo meu pai e pela minha mãe e era quase filicida, o que de forma mecânica me impelia a encarar a afectividade com constrangimento e repugnância à mistura. Era-me mesmo fácil manter as meninas na distância que eu achava aconselhável. Casto. Até aos vinte anos não toquei com um dedo numa mulher. Castíssimo. Claro que me masturbava desalmadamente, desenvolvendo as minhas fantasias, acariciando-as, aperfeiçoando-as até aos limites do irrealizável a cada novo acto, quer dizer, diariamente - o suficiente para ser internado caso alguém viesse a descobrir a minha actividade favorita. Mas não descobriram e com cuidado conheci o prazer da solidão e a solidão do prazer. Essa maldição terrível que se viria a prolongar até à minha actual existência.




Seis.


O cântico dos cânticos



Isabel. Mais velha do que eu quinze anos, quando eu tinha apenas vinte, foi para mim como uma mãe. Uma outra mãe. Adorava-a como nunca adorei nada na vida. Escrevia-lhe poemas infantis que acabavam sempre da mesma forma:

Não morreria por ti
mas diz-me e
Morrerei contigo
Hoje.

Isabel foi para mim a materialização dos contos de Annais Nin. Uma história de carne com prazeres abertos à minha adolescência sublimadora. Por que me lembrei eu de Isabel a propósito de Ugolino? O infame pai Ugolino. Claro, Isabel era uma segunda mãe que me pariu para os prazeres da carne. Uma mãe e eu nunca tive problemas, comi-a, por vezes durante horas e horas em banquetes devassos e sem pausas sobre a cama assim que ela chegava a casa não sei donde. Nunca lhe fazia perguntas. Não interessava. Limitava-me a comê-la, devorando o seu amor como leite materno, morno e doce como o mel; doce e pleno como o mel. E ela dava-me todo o amor que eu poderia querer; e eu queria-o, finalmente, todo. Já de noite, depois de jantar o seu corpo de fêmea esculpido em fogo branco e depois de lhe devorar as energias com horas de sexo juvenil e beijos nos lábios, adormecia-lhe no colo nu, enrolando-lhe o cabelo negro nos meus dedos, inventando caracóis onde os não havia, suspenso nos seus olhos; nos reflexos das chamas da lareira a vibrarem-lhe o azul das pupilas. É claro que nada disto vos interessará, é apenas Isabel, a única história da minha vida.

Mas Isabel desapareceu e deixou-me lágrimas para sempre. Isabel. Ao fim da noite costumava pegar em mim e levava-me para a cama. Devia levar, porque era aí que eu acordava com os barulhos da cidade, com a cabeça dela no meu peito. Todos os dias começavam assim, com ela, na cama, e acabavam com ela, na cama. Eu dava-lhe tudo e ela dava-me o amor que tinha e protegia-me do mundo. Cada noite era única. Isabel, dominadora; Isabel, protectora; como as mulheres de Hoffmann, era para mim o centro vital de todos os compromissos.

Mas chega de literatura de cordel; falar de Isabel faz-me mal, falar de Isabel faz-me bem, por esta ordem. Como ler Beckett, o irlandês de cabelo espetado, mas aqui na ordem inversa. De qualquer forma, não vejo agora como lembrar o Paraíso tivesse podido ajudar-me a resolver o problema do Inferno. Fosse como fosse, eu precisava de outro tipo de conhecimentos. Precisava das teorias dos entendidos. Nessa altura tinha dez dias para entregar o artigo e urgia resolver o problema de Borges. Liguei o modem, confirmei uns títulos, e pedi à livraria B. que me enviasse com urgência umas quantas obras citadas pelo bibliotecário argentino e ainda outras de um biólogo que entretanto ficou famoso pelas pesquisas antropológicas realizadas há uns anos pela sua equipa no interior do Continente Africano. Enquanto esperava, ainda com a memória desperta por imagens de banquetes a dois, encomendei sushi e sakê. Naquele sábado, acabaria por jantar com Isabel. Mahler, nervoso e genial, também apareceu.

Meia hora depois tinha o estafeta à porta. Vestia um impermeável fluorescente, verde, talvez, ou amarelo. Pelo que pude perceber em breves segundos de conversa, fixou-me de forma estranha, mas também isso não posso garantir porque não consegui ver-lhe os olhos. A comida estava a arrefecer, despachei-o com cinco contos. A encomenda com os livros chegou pouco depois e repetiu-se, incompreensivelmente para mim, na altura, a estranheza estampada no rosto do jovem motociclista de capacete à tira colo. Três horas depois, eram duas da manhã, eu estava instalado na minha chaise-longue com um sorriso de sakê nos lábios e a cidade aos meus pés, chegavam mais livros que tinham ficado esquecidos no armazém da livraria. Livros esquecidos e estafetas assustados, como um título de Vernon Sullivan. Apaguei o cigarro. Enclinei-me mais para trás e deixei-me a olhar para a minha cidade, as luzes vermelhas das traseiras dos carros e os candeeiros misturados com Wynton Marsalis. A minha cidade é fantástica. Livros à porta às duas da manhã. O que podia eu querer mais? Talvez a felicidade acondicionada numa mala térmica.

Até ao dia seguinte andei às voltas com teorias que não eram minhas e que não se davam bem com aguardente de arroz. Já de manhã, antes de me deitar, encomendei provisões para uma semana. Era Domingo. O dia do senhor, diziam-me. Eu que pensava que o dia do senhor era o Sábado, o shabbath, quando não se pode fazer nada. Nada não é bem assim, quando dizem ‘nada’ referem-se a ‘nada desde que não prejudique o negócio’. Eles é que sabem, com certeza absoluta quem está errado sou eu. Fumei o último Lucky Strike do último maço e enquanto via a cidade quase acordada apalpei a cara, senti os olhos escurecidos no vidro da janela, examinei o sobrolho, apaguei o cigarro e fui deitar-me. Os óculos continuavam a fazer parte de mim.

Até logo

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