terça-feira, junho 30, 2009

Nove.

O sonho de Andrés depois do jantar em casa de Joaquim


Em casa, Andrés remoía as dúvidas à força de kompensans de sabor acre e desagradável. Deitou-se sem grande disposição. A meio da noite, esteve para acordar meia dúzia de vezes com partes do pato à pimenta a migrar para longitudes proibidas. As imagens também não eram muito claras na passagem de neurónio para neurónio, mas a meio da consciência voltou a adormecer. Até que no seu sono se formou uma cena obscura.

Tinham acabado de jantar e regressavam a casa. Jean Pierre parecia irritado. Dizia-lhes que não sabia de que servira a sua vida e eles falavam-lhe no cargo importante que tinha mas a ele parecia-lhe que nenhuma linha de rota teria qualquer utilidade. Com o cérebro a ensaiar apenas um tosco esboço do que seria a casa de Jean , entraram para de seguida estarem já a beber de copos altos e cilíndricos com Joaquim a espremer uma garrafa cujo vidro se tornava maleável e cedia às mãos do amigo. De um momento para o outro, viu como estavam todos reunidos na mesa da sala grande, sem outras peças de mobiliário, à volta de um pacote com o carimbo da empresa de Jean na tampa. “Talvez algum dos meus colegas” afirmou Jean com um gesto apaneleirado e enquanto dizia isto examinava de trás para a frente o pacote, acrescentando como esses colegas tinham vindo a desaparecer da empresa sendo de imediato substituídos por estranhos seres aparecidos não se sabia bem de onde e com os quais era impossível falar. “São incrivelmente grandes”, adiantou Jean, “estão sempre à parte e há tardes em que ficam ali de um dia para o outro, sempre a trabalhar”. Continuavam a beber enquanto Jean explicava que os funcionários mais velhos chegaram a temer por algum estratagema. Ma, disse, não havia razão palpável de queixa a não ser o crescimento semanal daquele contingente à medida que outros funcionários se reformavam. Começaram então a esgadanhar o embrulho até expor o interior do pacote. Com o fundo exposto, a caixa estava aparentemente vazia. Apenas depois e à custa de muita atenção conseguiram notar uma minúscula criatura. Esta tinha os olhos pregados em Jean. No momento seguinte, e de um pulo só, a criatura foi colocar-se no canto do outro extremo da sala. Ali permaneceu quieta enquanto eles avançavam para ela. Por alguns instantes ficaram ali a encarar o bicho de frente. O bicho também não se moveu. Então, de um momento para o outro, começou a sofrer a estranha mutação. “Ai o diabo”, soltou Joaquim mas no que poderia ser a voz de Tomás ou a sua própria. Não foi propriamente uma mutação mas uma ampliação, tornando-se mil vezes maior do bichinho que era, o que levou Jean a gritar “É um deles, é um dos novos tipos lá da empresa”, reconhecendo então a estrutura mecânica da besta – algo que nunca percebera por debaixo dos fatos de duas peças. As articulações eram roldanas perfeitas, os membros de aço, o peito uma espécie de plasma a debitar gráficos. Entretanto Jean Pierre estava só na sua sala que era agora uma espécie de casa de montanha, revestida a madeira. O bicharoco já está a avançar para ele, dando-lhe apenas tempo para se refugiar atrás de um cadeirão e Jean grita pelos amigos. Então, com um só arremesso, o bicho livrou-se do que era agora um velho sofá encardido e enquanto Jean tenta atingi-lo com um guarda-chuva, de um só golpe, o bicho deixa-o quase inconsciente. Jean tem a vista toldada pelo sangue e é através dos seu olhos que Andrés, que parece tomar de facto o lugar do amigo, vê a grande criatura a vomitar outras pequenas criaturas, réplicas de si mesma. Saltam-lhe para cima e começaram a sugar-lhe o sangue e ele está deitado numa praia com as ondas a rebentar ali perto. Tem o cabelo quente do jorro vermelho que lhe sai por detrás da orelha e luta por cobrir o golpe com a mão. Assiste impotente à silenciosa execução que lhe era aplicada. Enquanto com as mandíbulas lhe abriam novos buracos na carne, para melhor o desproverem da seiva vital, dizia-lhe uma quase aos berros ”Nós só queremos o teu sangue”. E calou-se, quando parecia que os amigos batiam a uma porta e chamavam por ele. Outra criatura segreda-lhe então ao ouvido “Viemos despedir-nos de ti. Adeus”. No final do banquete, as criaturas regressam ao interior da primeira, que as acolhe com um sorriso cordial, enquanto tira uma folha branca de uma bolsa amarrada do seu lado direito “Caro colaborador. Vimos felicitá-lo pelo seu quinquagésimo aniversário ao serviço da companhia. Notificamo-lo também que desde já dispensamos os seus serviços. Parabéns e adeus”. Era de novo Jean Pierre que morria entretanto, pronunciando em tom baixo e muito calmo “Obrigado. Obrigado”. A criatura dirige-se ao amigo que está estendido no chão, com a perna a esquerda a fazer um quatro. Toma-lhe o pulso, enterra-lhe os dedos na carne e, partindo algumas costelas, arranca-lhe o coração para o devorar de seguida.

Acordou a repetir obrigado obrigado e com pânico de voltar a adormecer enquanto massajava o peito que lhe ardia como se tivesse sido trespassado pelos dedos metálicos do verdugo tecnológico. Andrés desconfiava que nada daí em diante seria como foi até aí. Os dias não teriam uma brisa sossegada que fosse. Só emigrando.
Oito.

Snake.


Jean Pierre não atendeu e também não houve mensagem na sua caixa.

A noite não acabou com o jantar. Aquelas noites nunca acabavam com o jantar. De início um para cada lado um pouco embutidos em si próprios, como um caracol dentro da casca. Mas vê bem Tomás compreendes agora o tipo quer aplicar aquilo o chefe do Jean o tipo quer testar o plano e quer pôr o Jean à frente do projecto-piloto e como ele se recusa despede-o o que é que achas disso achas normal. Tomás era como um Muezin a metralhá-los com o imperativo moral que exigiu que o chefe de Jean Pierre morresse.

- Mas não pode ser que seja assim – sustentava Tomás.

- Ah. Mas é, por isso vos digo que o tipo deve morrer. Está a colocar o Jean numa posição insustentável e ameaça despedi-lo. Por ISSO deve morrer.

- Amanhã vou tirar isso a limpo com um gajo da outra vereação. Falo com ele e decidimos as coisas a sério. Não acredito que exista um plano tão macabro.

Joaquim levanta-se e pede silêncio com as mãos.

Espera, vocês pensam que eu estou preocupado com a merda da supressão de trabalhadores – não, não - também tu, Tomás. Não. Sabes que a filantropia não é a minha especialidade. Porra, não perceberam que é o Jean que me preocupa. Pararam o que estavam a fazer. Não se podia dizer que Joaquim os tivesse surpreendido, afinal era de Joaquim que se tratava. Mas por meia hora convenceram-se de que ele estava verdadeiramente empenhado em colocar o mundo nos eixos certos, que tinha nas mãos os corações de viúvas e de viúvos e de pequeninos órfãos de uma guerra sem quartel que aí vinha.

Vamos ver se vocês percebem uma coisa: o mundo há-de sempre tentar aniquilar-se de uma maneira ou de outra e nós não vamos poder fazer nada acerca disso. (colocou um indicador nos lábios) Mas há uma coisa que nós a que estamos obrigados: defender-nos uns aos outros. Os olhos de Joaquim eram agora como os de uma cobra e, advento do vinho ou não, o seu corpo parecia-lhes ondular no meio da sala. Quando o deixaram e foram para casa as ideias que os acompanharam tinham um escasso sentido, uma coisa de conto de fadas.

sexta-feira, junho 26, 2009

Sete.

ALEA JACTA EST


Estão sentados à mesa e arrancam para o jantar, Andrés e Tomás deixaram para trás o mau humor do final da tarde. Joaquim, que esteve por um segundo com o olhar fixado em nada, levantou-se, agarrou num garfo grande e uma colher à medida e começou a servi-los, até que os quatro pratos ficaram compostos num misto de gula portuguesa com a esquadria da nouvelle cuisine. “Vamos a isto”. Começaram a comer em silêncio, cada um remoía os seus medos e nem Joaquim parecia engolir com determinação. Tinha passado todos os sessenta minutos entre as seis e meia e as sete e meia da tarde na cozinha; raspou o caule de uma dúzia de espargos, retirou as extremidades rijas; lavou-os, cortou-os ao meio, cozeu-os em água a ferver; temperou-os com sal e escorreu a água; depois, numa frigideira quente, levou ao lume dois peitos de pato com a parte gorda virada para baixo e temperou o outro lado com sal e pimenta em grão acabada de moer; deixou a carne fritar dos dois lados, mas em lume vivo, para formar uma crosta e não deixar sair o sangue; retirou os peitos de pato ainda mal passados por dentro e cortou-os em fatias; levou a frigideira de novo ao lume, juntou grãos de pimenta verde, vinho do Porto – só um cálice – e água na mesma medida: deixou ferver enquanto raspava o fundo da frigideira com uma colher de pau. Por isso, acabava agora de os servir, generoso a regar a carne com molho, os pratos compostos com os espargos e decorados com grãos de pimenta e ramos de tomilho fresco. Joaquim comia mais brasas do que refeições quentes, mas era hábito começar assim a cozinhar essas outras delicatesses. Por sorte que, sendo assim, apenas uma conjuntura severa impediria Joaquim de mastigar e engolir com determinação. De repente, do nada:

- Vocês são cruéis. Vão matar um homem e não sabem porquê – sorriu, encostou-se para trás. – Nem querem saber. Vocês são cruéis. Tomás riu, Andrés também riu. Jean nem por isso.

Entretanto, o pato era degustado com total gratidão para com os trêmileseiscentos segundos contados a passos curtos de lá para cá na cozinha ali do lado. Os mililitros disto a ganharem luz nuns gramas daquilo, tudo era sopesado pelo palato dos convivas. Como sempre, era um jantar que se passeava goela abaixo com as boas graças de restos de Cabernet Sauvignon e Sagres Preta saído da prateleira de cima do frigorífico.

Já com os pratos quase limpos e com uma espécie de mancha de Rorschac desenhadas a molho de Porto, Andrés pousou os talheres e voltou-se para Joaquim. – Talvez queiras dizer-nos porquê. Imagina que vamos matar esse gajo, porque é que é que vamos de férias. Que porra é que vamos fazer para Isla Cristina.

- Não é Isla Cristina, é Isla Antilla, e não, eu não – disse Joaquim a sorrir. – O Tomás vai contar-vos tudo.

- Eu? – Tomás endireitou-se.

- Claro – assinalou Joaquim, impassível – Alea jacta est. Não és tu o assessor do senhor vereador do comércio? Tu, my friend, sabes tudo.

Tomás levantou-se e apontou-lhe o dedo: Ah não, isso não senhor Joaquim. Sem o querer ficou branco e a luz subiu-lhe ao rosto por debaixo com um esgar, os olhos escuros. - Até imagino que este seja um projecto viável, mas não me ponhas na ponte de comando. E uma súbita e inusitada tensão desceu sobre a sala.

- Vocês pensam que eu estou a brincar. - De uma vez Joaquim levantou-se e gritou aos céus - Por que não nos explicas o que é esse programa que está para arrancar da supressão selectiva de trabalhadores. E de súbito, só para Tomás, de súbito ganhava sentido o texto lido à pressa já com o casaco no antebraço. Suprimir. Extinguir. Não os postos de trabalho mas os trabalhadores. Não era um erro de maçarico encantado com palavras. Era um programa que estava para arrancar.
“E o mecanismo da coisa vai ser posto em experiência na empresa do Jean”, declarou Joaquim perante Tomás, lívido, incrédulo. E Jean Pierre, que se levantara, deixou-se cair no sofá branco sujo, a acenar que sim com a cabeça.

- Mas como? – interroga Andrés, que se esforçava por contemplar o futuro da administração.

- Com snipers, Andrés, sei lá - atira Joaquim – É absurdo.

Tomás levantou-se, andou até ao fundo da sala, voltou-se: E nós com isso?

Às 10 e vinteesete tocou o telemóvel de Jean Pierre. Era o tipo que iam matar.
Seis.

JOAQUIM CHUTA DÚVIDAS PARA CANTO


- Foda-se. Ouve, vai lá buscar uma preta. Estou farto do vinho, está a adormecer-me.

- Excelent – Joaquim levantou-se de um salto. – Não quero ninguém a dormir. Quatro pretas bem fresquinhas.

Ninguém disse “não”. Nunca ali ninguém dizia que não a uma cerveja preta. Mesmo com um homem que estava para morrer. E que no coração grande mas cru de Joaquim já estava morto. Quando chegou com as cervejas na mão vinha com outras ideias.

- E se fôssemos de férias.

Estávamos em Abril. Ninguém vai de férias em Abril. Não interessa o ano. Ninguém vai de férias em Abril. Aquilo foram palavras que chicotearam o ar. Férias? Nah. Mas ele repetiu – Vamos de férias. Temos de pensar. Muito para pensar. E esboçou um sorriso sinistro, um esgar que lhe cortava a boca num traço oblíquo. A olhá-los assim, a sala quase gelou na noite quente e os corações aceleraram num vórtice que tragava todas as resistências. Que se dane, vamos de férias. Era isto Joaquim. Implacável. Por assim o ouvirem falar, sem saberem porquê, Andrés e Tomás perceberam que a sua vida morna e indiferente poderia agora transformar-se numa jornada um tanto diferente e nem os olhos de Jean Pierre os impediam de assentir aos desejos de Joaquim. - Jean, o que é que o tipo te fez? – perguntou Andrés, desinteressado na resposta e ainda a tentar apalpar a ideia de tomar a vida de um homem com as suas próprias mãos.

Jean Pierre, sentado no sofá, enterrado com a cabeça nos joelhos, não respondeu, nada disse, apenas levantou as mãos com as palmas para cima. Joaquim e Tomás estavam parados, no meio da sala. Joaquim não desfazia o sorriso. Iam matar um tipo qualquer. Ou não: iam matar um homem. A ideia não deixava de ser surpreendente, até mesmo para o implacável Joaquim.

segunda-feira, junho 22, 2009

Cinco.

A MORTE SERVIDA EM VISTA ALEGRE DE REFUGO


- Vou buscar o resto das coisas – disse Joaquim, mas quando ia a passar pela porta, Andrés agarrou-o por um braço: Ouve lá, o que é que se passa? É verdade, queres mesmo matar um gajo?

- É, e vamos fazê-lo todos – respondeu, quase indiferente. – Vem ajudar-me. Depois falamos.

Jean Pierre começou a fazer uns barulhos estranhos, como se estivesse a ter um ataque de asma, mas na alma. Eles eram um grupo de quatro tipos indiferentes que não aspirava a assumir as rédeas da urbe; que manifestavam total inabilidade para se envolverem no andamento da engrenagem; aquele tipo de pessoas a quem não era arrancado nada além do indispensável, pelo que este intróito que anunciava decisões graves parecia estar de facto a perturbar Jean Pierre.

- Ouve – disse-lhe Joaquim – é escusado ficares assim. Andrés, põe qualquer coisa a tocar. Olha, tens aí o último dos Massive.

Um aroma agradável passeava-se entre a cozinha e a sala. Como se o mundo estivesse como nunca esteve, perfeitamente “nos seus carris”. Tomás pegou nos talheres e nuns copos ocos que levavam o líquido pelo pé abaixo enquanto Joaquim agarrava em duas travessas com peito de pato à pimenta e completava o malabarismo com uma terrina de metal mas com salada de pimentos acabada de sair do frigorífico. - Já levas o vinho? – Tomás deixou sair um som que sim. Durante a refeição, Joaquim manteria o à-vontade de uma conversa normal. Sobre matar um homem não iria ser pronunciada uma única palavra que o cheuf impusera esse voto de silêncio sobre o prato principal.

Eram 10 e vinteesete, tocou o telemóvel de Jean Pierre.

- Oh merde, é do escritório.

- Não atendes – gritou-lhe Joaquim – dá-me essa merda.

Jean Pierre levantou-se: Vou atender.

- Foda-se, não atendes coisa nenhuma – ordenou-lhe Joaquim com os olhos a sublinhar o “não atendes coisa nenhuma”. Jean Pierre continuava a olhar para o visor verde. O telemóvel calou-se. Era ele, tenho a certeza.

- Ele quem – perguntou André.

- O gajo que ele quer matar – fez uma pausa muito curta. – O meu chefe.

Ainda mal se refizera o silêncio; ainda os olhos se voltavam para Joaquim para depois se perderem pela sala comprida, pousando no sofá, levantados para o fundo à direita, para a mesa rectangular e baixa com rodas e a televisão por cima; ainda eles procuravam luz que já não havia na janela na parede oposta com prateleiras e livros e plantas – as plantas de Joaquim – por cima; quando Joaquim, depois de engolir um pouco de cerveja, sentenciava com a singeleza dos justos na voz:
- Ele vai morrer. Vai morrer e nós vamos fazê-lo. Os quatro.

Andrés, com Cabernet Sauvignon a injectar as válvulas internas, começou a rir em gargalhadas soluçantes, abafando uma canção dos Gus Gus que saía da Voxx.

E nós vamos fazê-lo. Os quatro. Mais do que “vai morrer”, foram aquelas palavras que vibraram nos pratos ainda vazios naquela quarta-feira quente de finais de Abril. E nós vamos fazê-lo. Todos. Mas Andrés ainda não se havia apercebido de como aquelas palavras mudariam tudo.

- Ouve – começou – eu não estava nada bem disposto. Andei mal a tarde toda. – riu-se – Bem, o que eu não sabia era que ia sair hoje daqui um assassino em potência. Assassino de um gajo que não conheço e de quem só ouvi falar.

- Só isso já deveria ser mais do que suficiente – atirou-lhe Joaquim. – Já esqueceste todas as histórias do Jean Pierre. Lembras-te daquele sórdido episódio da caneta? – virou-se para Jean Pierre – contaste-lhe, não?

- Sim, contei – respondeu, quase indiferente. – Então? – Joaquim volta à carga – Ouve man, conta-lhes o que se está a passar.

- Foda-se – Jean Pierre estava em total ausência de sintonia, definitivamente estava mal. Quando o polido do franciu dizia “foda-se” a questão tornava-se séria, o que lhes ficava totalmente fora de mão. – Vou buscar uma preta. Estou farto do vinho, está a adormecer-me.

Quem é Jean Pierre? O melhor de todos eles. Era assim que o tinham os outros três. Um filho de franceses que se perderam um dia pela capital. Jean Pierre era o melhor de todos eles. Bom demais, nas palavras de Joaquim, que se revoltava contra os brandos. Sim, Jean Pierre era o melhor de todos eles. Há dois anos, Dezembro, mudou-se de casa. Enquanto arrumava as coisas em caixas de cartão decidiu que tinha roupa a mais. Roupa e sapatos. Um terço das coisas saltou dos roupeiros e foi parar a um saco de plástico gigante e negro. Um dia apareceu em casa do Andrés para um dos jantares de quarta-feira com o saco às costas, virou-se para eles com o sorriso fino como ele tem, abriu os braços e disse: É tudo vosso. Vou entrar para os franciscanos, não me quiseram nas carmelitas descalças. Tomás sacou uns Nike Waffle azuis com a lista em amarelo. Já antigos. Nike a sério que já não se fazem. Andrés e Joaquim tiraram cara ou coroa por uns Hush & Pupies quase por usar. Coroa para o Andrés mas acabou por ser Joaquim a ficar com eles, não se sabe bem porquê. O Joaquim tinha aquela terrível qualidade que por vezes os levava a perguntarem-se se ele seria realmente o grande amigo que eles acreditavam que ele era. Dúvidas que ele afastava com os gestos largos de que só ele era capaz, como quem afasta o fumo de cigarros. Mas ficava lá, apesar de tudo, aquela mazela, uma sombra que o seguia e que eles sabiam ser vital para o não-condescendente Joaquim; o amigo que por eles saltaria a terreiro com a própria vida; o imprevisível Joaquim, o irascível, o quase selvagem que por feitio os trazia debaixo das suas asas. E Jean Pierre, o brando? Nessa mesma noite de início de Dezembro, pôs o saco às costas e desafiou os amigos a fazerem de Pai Natal antes do jantar ser servido. Andrés foi com ele. Cinco minutos depois chegavam a um beco escuro, à beira das linhas dos comboios que acabavam em Entrecampos. Saiu do carro à pressa, deu uma pequena corrida, desapareceu no retrovisor e voltou a aparecer com a mesma rapidez, como se o saco encerrasse um corpo e tivesse acabado de o lançar a um rio a coberto da escuridão. Entrou no carro e de cabeça baixa disse Vamos sem se voltar. Quase imperceptível, disse só: Vamos. Andrés interrogou-o. Numa altura em que Jean queria que tudo corresse como nos filmes, sem diálogo, dois amigos, uma mão no ombro e o carro a arrancar, sem diálogo até ao destino, Andrés perguntou: Já está? O saco? Foste rápido. Ele tentou não responder, mas Andrés insistiu.

- Já está? Falaste com ele?

Quis não responder mas o carro não arrancava. – Com ele, quem?

- Entregaste o saco a alguém. O que é que te disse? Ficou contente? Agradeceu-te.

Era responder. Mesmo com a voz que não saía, era responder ou dar-lhe um berro e Jean Pierre sabia que não iria dar-lhe um berro. As explosões eram incompatíveis com o seu hardware. Joaquim iria dizer-lhe isso mesmo, nestas palavras, nessa noite em que decidiam matar um homem: Jean, tu és demasiado brando. Ainda te vão tirar tudo. Por isso voltou a perguntar:

- Mas quem?

- O tipo a quem entregaste o saco. O que é que ele te disse?

- Não disse nada – continuava a olhar em frente e a falar baixo, a voz embargada, com o cabelo louro e liso, ligeiramente comprido, tombado para a frente.

Andrés continua a metralhá-lo contra o Muro das Lamentações onde encostava a cabeça: Tu dás-lhe aquilo tudo e o gajo nem te agradece? – Jean Pierre sentiu que os olhos humedeciam.

- Eu não me encontrei com ninguém.

- Mas porquê? Não estava? – o carro começou a andar e a tortura tornou-se mais suportável.

- Não, não sei, talvez, acho que não. Ouve – já não suportava mais aquilo - não tive coragem de falar com ele.

André começou a rir-se. – O quê, não tiveste coragem de quê?

- De ir lá. De o obrigar a agradecer-me. Tive medo de poder estar a dizer-lhe que eu sou tão bom; que tenho o direito de lhe oferecer coisas e de em troca o obrigar a agradecer-me por isso.

Andrés já tinha parado de rir. – Por isso, deixaste-lhe o saco à porta, foi isso?

- Foi – não lhe saiu bem, foi mais um “oi” a passar-lhe entre as traves do coração.

Continuaram a rodar, agora com Andrés a cerrar os lábios entre os dentes. Antes de saírem do carro, pôs-lhe a mão no ombro, como se faz nos filmes, e disse-lhe: Tu és bom.

Jean Pierre era assim: bom. Tudo o resto é acessório, como o cargo de director de Recursos Humanos numa empresa pública.

domingo, junho 21, 2009

Even protesters have heart. Protect an injured riot policeman... on TwitpicManifestantes iranianos protegem um polícia anti-motim ferido. Now what, Mr. Ahmadinejad?
Quatro.

JOAQUIM DECIDIU QUE UM HOMEM DEVE MORRER


Quando Tomás e Andrés arrancaram rumo à Baixa naquela noite quente de Abril não desconfiavam que estavam a escassas horas de decidir a morte de um homem. Pudessem rebobinar a vida e teriam notado que Joaquim lhes ligara para os lembrar do jantar dessa noite. Com uma voz parda, quase de fundo, mas telefonou. O que era estranho. Havia anos que jantavam juntos. Porquê lembrá-los. Tomás entrou no carro e deixou-se cair pesado, enterrando-se no banco. Andrés está a informar Tomás de que vai tirar a capota. Tomás torce o nariz e acena negativamente com a cabeça. - Estão trinta graus – mas Tomás continuava enterrado no banco de couro escuro e entrelaçava agora os dedos entre as pernas. De vez em quando passava a mão pelo queixo. Olhou para a barba no espelho. Uma velha foi à janela. Andrés, que acaba de bater com a tampa do porta-bagagens acena-lhe um adeus largo. Andrés é um escheriano, gosta da ambiguidade e cultiva-a nestas situações. Pecados de quando a universidade o obrigava a horas a fio de estações de autocarros. Só, como se sentia nesses momentos de abraços e beijos alheios, pousava a mochila, voltava-se para trás e acenava para os autocarros que partiam, colhendo depois lágrimas e beijos entre a névoa de dióxido de carbono que levava um homem à alucinação. Dos autocarros levantavam-se braços com um destino definido ao lado, mas não fazia diferença que ele não constasse do caderno de encargos daqueles corações embalados e prontos a partir. Como um exemplar onanista que também era interessava-lhe apenas colher a dádiva, um beijo carinhoso que devolvia de olhos semi-brancos, todo perfeição, sem reverso, sem penas, um adeus lacrimoso que ele podia guardar por dez longos segundos, talvez rematado com um lenço branco a colher as pérolas da saudade. Fechado o capítulo dos autocarros, tem agora os prédios da cidade. A pobre senhora gesticula a pequenos impulsos com a mão direita, enquanto se debruça e aconchega os óculos com a esquerda. Encarquilha a boca e o nariz num ponto de interrogação e estica o pescoço, mas entretanto já Andrés entra no carro e arranca, com um carrancudo adiós que retumbou de parede a parede nas torres que se enfrentavam. Ligou o rádio. Baixinho, ouviram uns acordes de guitarra. Era música de pacote. Não obrigado – pediu Tomás. Numa reacção pavloviana um dedo mudou de estação para a Voxx. – Põe na Radar, a esta hora na Voxx são muito sorumbáticos – tentou Andrés, mas um gesto curto de Tomás fê-lo dar a aposta por perdida e já começavam a rodar pela Defensores de Chaves, rua de afamadas putas sem interesse. E às vezes sem dentes. Subiram a Casal Ribeiro para o Saldanha e meteram pela Fontes Pereira de Melo abaixo. Sem dizer palavra. Ao som dos Bent.

A noite continuava quente, para quem isso interesse. A Avenida da Liberdade a pulsar de electricidade era um insulto para o estado de alma em que se encontravam. Leste o que disse o cabrão do ministro? Li, o cabrão. Eram dois tipos perdidos quem percorria agora a longa avenida em direcção aos Restauradores num roadster que se impunha antigo na sua carcaça corroída de tinta a estalar mas sem idade para ser um clássico. No stand o vendedor manhoso atirou-lhe com um green very british. Respondeu com uma esquerda ao longo; verde azeitona encarquilhada. Continuaram a descer a avenida escurecida pelo Sol e acesa pelas luzes da iluminação de centenas de candeeiros que por breves minutos se misturavam com aquela luz da tarde, a luz da tarde que nesta cidade é quente ao fim do dia, que se embrulha até ao estômago e se pretende potente para interditar todas as agonias. Aquela luz que só ali, quando a cidade se ausenta.

Chegam a casa de Joaquim, vira-se Andrés, o único que ainda transmitia - Tens a chave? – Tomás tinha a chave. Ter as chaves de casa uns dos outros era um elemento do domínio da modernidade mas também era coisa de quem não tinha mais ninguém. Como se lhes coubesse um dia a tarefa de entrar à pressa na casa de qualquer deles para o encontrar meio-morto ou morto e impedisse que o corpo em decomposição empestasse todo o prédio, o que poderia tornar os vizinhos irritadiços, e com razão. Subiram. A pé, três andares, nove lanços de escada, que Joaquim insistiu na poupança de cinquenta mil a comprar casa sem elevador. Andrés tocou três vezes e meteu a chave à porta. Antes que a pudesse rodar, Joaquim abriu sem os cumprimentar. A coisa estava bonita. Voltou-lhes as costas da camisa de linho preto amarrotada por fora das calças de ganga azul rafadas. Descalço, Crockett and Jones na mão direita, o equivalente a uma semana de salário de qualquer um deles. Dos dois juntos. Tinha feito a barba. Joaquim era o playboy do grupo. Um daqueles tipos que passavam mais tempo a comer brasas do que almoços e jantares. Talvez por isso fosse magro e ligeiramente musculado – não lhe faltavam oportunidades para queimar energias. Ainda Tomás e Andrés não tinham dito “então?” e já lhes tinha virado as costas. Acabado de levantar do sofá de pele branco sujo, Jean Pierre: Vocês têm que o parar. Ele está doido.

- Então, o que se passa? – perguntou Tomás, mais do que desinteressado – Estamos todos com o período, é?

- Vão todos bardamerda – atirou Andrés a caminho da cozinha e da colecção dos Cabernet Sauvignon de Joaquim, que continuava a dizer nada e se sentava na mesa escura, ao fundo da sala, onde já estavam postos os quatro pratos. Volta a pôr-se de pé e numa expiração profunda soltou Vamos jantar. Tenho fome.

Jean Pierre, num salto, ele estava enterrado no sofá, com a cabeça entre as mãos: Vamos jantar, diz ele. Está doido.

Tomás e Andrés olham-se e olham-nos. Tomás muito sério. Andrés quase a rir.

- Não olhem assim para mim. Ele quer matar um homem – atirou-lhes Jean Pierre.

- O que – André não aguenta e interrompe-se em gargalhadas. Começava finalmente a reencontrar o caminho para a boa disposição.

Jean Pierre olhou-os num relance e, voltado para Joaquim e a apontar para Joaquim, diz: Ele quer matar um homem.

A forma solene como pronunciou as palavras e o ar grave desenhado por olheiras afundadas e cinzentas atalharam o riso de Andrés e Tomás perguntou “Como assim?”; Jean Pierre e Joaquim olharam-se por um segundo e baixaram os olhos para o chão. Eles já sabiam do que era capaz Joaquim, pelo que algo de verdade havia naquele ele quer matar um homem.

Joaquim levantou-se:
- Vamos jantar.

FRANKIE GOES TO HOLLYWOOD - DO YOU KNOW THE WAY TO SAN JOSE (((STEREO)))

Três.

OS ÍNDICES EXACTOS


Tomás passou a tarde a esgrimir neurónios com comunicados da agência de notícias oficial sobre os últimos relatórios económicos, primeiro, e com os próprios relatórios, depois. Foram duas horas para sacar um texto insípido sem uma única tirada de ironia para informar a população em geral sobre o estado das contas do Estado e os problemas que aí vinham e os que já aí estavam. Quando acabou a licenciatura de Sociologia estava longe de imaginar que um dia acabaria sentado num gabinete de um vereador da cidade a escrever sobre todas as coisas que passara a vida a contornar. Quando o pai lhe telefona a meio da tarde e depois de lhe perguntar então estás trabalhando com uma espécie de gozo escondido no gerúndio arcaico e ele lhe responde com um sim enfastiado e o pai volta com um que falta de gosto lembrava-se sempre desse dia solitário em que descia a avenida das universidades a ser varrida pelo Sol com um diploma no bolso que o atestava como homem das ciências sociais. Mas nessa tarde o nariz vibrou-lhe quando passou de raspão por um despacho tardio para ele que estava a segundos de abandonar o edifício da câmara. Leu as primeiras linhas, o lead quase à pressa e depois toda a notícia, sempre à pressa. O termo supressão não lhe assentou bem e atribuiu-o a um estagiário maçarico da agência de notícias que quis pôr a jogo um léxico arrojado. Mas foi a olhar de lado que agarrou no casaco enquanto mastigava a frase que juntava supressão não com postos de trabalho mas com trabalhadores: supressão de trabalhadores.

Quando entraram no carro, naquele final de dia de final de Abril, nem Andrés nem Tomás sabiam que estavam prestes a tomar uma decisão sobre a vida ela própria.
Dois.

JANTARES DE QUARTA-FEIRA


A noite iniciava-se. O tempo descia sobre as ruas num manto de grão antigo na tela toda em volta e os elementos perdiam a imperfeição diurna, as sombras a disfarçar pedaços de tinta que estalavam num prédio ou os remendos da estrada que se tornavam pardos e uniformes com o alcatrão, e ali uma árvore escanzelada que era agora à luz de candeeiros uma silhueta do espectral El Greco e um par de velhos que arrastava os pés longe do Sol revelador e estava agora em perfeita sintonia com o entardecer dos relógios. Um cão de cinco quilos rodeados de pêlo que rodopiava no ar entretido com uma borboleta noctívaga. A harmonia que descia sobre a vida quando os raios fugidios do astro maior contornavam a última esquina a caminho do Poente. Ah a harmonia com que podíamos contar todas as noites à conta de um H maior. Quando Tomás apareceu à porta, Andrés enterrava-se no carro até meio do banco, com um joelho alavancado no tablier. Gotículas de melancolia escorriam no ar em volta a fazer dançar as luzes que se instalavam dos candeeiros. Vultos apareciam para desaparecer nas suas vidas ao virar da rua, primeiro de frente, depois no retrovisor, depois numa esquina de pedra. Uma tristeza sem sentido, era uma tristeza que nos dilacerava os sentidos. Foi neste palco que Tomás apareceu à porta, com um aceno triste e abalado. Nada daquilo lhe parecia certo e uma súbita angústia atou-lhe uma ponta da vesícula a meio do duodeno a meio caminho da boca do estômago. Não estava aprumado. A barba de dois dias não colhia as bênçãos da noite. Olhos afundados abaixo da testa. Aquela noite era um mau começo.

Há anos que todas as quartas-feiras se reuniam para jantar em casa de Joaquim – só um acontecimento extraordinário determinava que as coordenadas fossem outras. Os restantes que hão-de aparecer à mesa são Joaquim e Jean-Pierre. Nunca durante esses jantares havia uma agenda particular, quer dizer – não conspiravam. “Nós não somos aquele tipo especial de pessoas com potencialidades, quer dizer, motivados para alterar linhas de rumo; não passamos de quatro tipos que se juntam para experimentar receitas do Pantagruel e do Keith Floyd” – explicou um dia Tomás a um gajo da vereação que via nos manjares a quatro uma actividade subversiva. Não imaginava o tal tipo como todos se tinham em tão má conta nesses capítulos da diplomacia subterrânea. Numa contabilidade dos valores capitais para assumir as rédeas da urbe, assunto que de vez em quando aparecia entre o prato principal e a sobremesa, estava comummente aceite pelo grupo que apesar das funções que desempenhavam, nos lugares em que as desempenhavam, era quase vergonhoso a total inabilidade que manifestavam para se envolver no andamento da engrenagem. Se um dia lhes atirassem que eram aquele tipo de indivíduos a quem os sociólogos atribuem a básica função de sustentar a engrenagem, seja ela qual for, nada mais lhes restaria do que baixar a cabeça e verter uma ou outra lágrima acompanhada de um sorriso silencioso. Pois, era um lumpenproletariat que vai fingindo as vitórias do dia. Mas estavam bem, ou mal, ou qualquer coisa, e não tinham motivos para proceder a alterações de rota no perfeitamente esférico mundo – nada mais do que o indispensável era arrancado àquelas carcaças. Até essa noite.

sexta-feira, junho 19, 2009

Um.

ANDRÉS


“Não fomos feitos para durar”. Esta ideia ocupava toda a cabeça de Andrés enquanto conduzia, cigarro ao canto da boca, braço esquerdo de fora e mão direita no volante, em direcção a casa. A noite estava quente ou amena ou qualquer coisa assim. Uma brisa entrava pela janela e atirava-lhe o cabelo contra os olhos. Não fomos feitos para durar. Às nove, encontrava-se com Tomás e iam depois para casa de Joaquim onde há anos jantavam todas as quartas-feiras. Enquanto conduzia, procurou esse momento, desde os primeiros minutos da alvorada, desde que se levantara, esse momento que havia desencadeado tal frase no seu cérebro. Que quieta violência teria sido essa que o levou ao que agora lhe parecia a consciência última das coisas. Uma verdade primordial que agora lhe ocupava todos os sentidos. Foi rolando pela cidade enquanto o GPS interno buscava a epifania derradeira: reviu o dia desde que se levantou e nada lhe parecia digno de sentenças ou oráculos ou outras artes de xamanismo. Parado num sinal, veio-lhe apenas à cabeça esse pormenor, uma coisa insignificante, a frase surgira-lhe primeiro como uma tirada em inglês “We were not made to last”, como uma deixa de filme bom com gente má; um ensinamento juvenil que se ouve numa canção em moda. À primeira vista aquilo era nada, uma coisa que se insinuava com o Verão que aí vinha. Uma merda daquelas que todos os anos se anunciava para os dias quentes com esplanadas e gajas na praia. Mas era ma explicação escassa que não satisfazia Andrés. Aquelas palavras todas juntas, com a harmonia de uma frase para fagote a anunciar um requiem sofrido, assumiam a forma de uma sentença para ele próprio, ele que temia essas esconjurações do acaso que ajudam a germinar num homem prenúncios de catástrofe, os cenários ideais para despertarem a desordem obsessiva compulsiva que cada vez lhe tomava conta de pequenos gestos que se esforçava por padronizar num derradeiro esforço de controle do bem e do mal. Por isso, plantado no interior das fronteiras do mais bem guardado dos seus segredos, um pensamento organizado daquela forma não podia ser uma coisa desprovida de significado, uma manigância do acaso. Dessas reminiscências epifânicas anunciadas em programas manhosos da televisão que madruga. Nah! Aquele pensamento já estava a afectar a clarividência de Andrés. Não fomos feitos para durar. Todo o dia escoltado pela mais esquerda das ideias. À mesa de trabalho aplicou considerável energia em esquadrias perfeitas entre as canetas e as folhas e o teclado do computador e até do próprio monitor mas foi em vão que procurou acalmar a besta que lhe trauteava aos ouvidos entre o martelo e a bigorna. Quando virou da António Maria do Bocage e começou a procurar um lugar para deixar o carro estava pálido, com as mãos húmidas. A frase formara-se já perfeita no seu cérebro, sem intervenção humana, ditada aos próprios neurónios. A ordem das palavras só de si bastava-lhe para saber que não se tratava de uma mera tautologia: não - aquele era um princípio poderoso que iria fazer sentido a qualquer momento, que o iria apanhar de surpresa mesmo no seu estado de alerta. Talvez ter passado de ânimo leve por tantas páginas da sua própria vida não estivesse agora a ser uma grande ajuda.

Do que podemos saber sobre Andrés, vinte e sete anos. A família é do interior. De uma cidade pequena que só por acidente está no mapa. Depois de uma juventude apagada, contra todas as suas expectativas mas em linha com os analistas da família, acaba o liceu e muda-se para a capital. Universidade acabada contra as suas expectativas mas em linha com os oráculos locais era devido regressar à terra mas era então tarde demais. Como disse um dia o tipo da pala que fazia filmes únicos, já não era possível regressar a casa. Impõe-se à tutela, solta as amarras de uma infância quase feliz e fica-se pela capital, onde tudo é possível. Até que nada do que é suposto acontecer acontece. Para trás o futuro mais do que certo, as lojas do pai, os dias que custam a passar. Os anos que se repetem até tornarem cansativas as caras familiares que desfilam, uma após outra, nas ruas iguais, sem sinais de futuro. Uma pequena cidade de interior, um ponto no mapa patrulhado por irmandades que esconjuram os ventos que dobram a árvore mais alta. Os quotidianos decalcados em trajectos que se querem sem mácula, onde os desvios são atalhados pela horda vigilante que todas as semanas se asperge de água benta e passagens do Livro Sagrado. A escola de gestão tinha sido uma encomenda do pai, como se encomendasse colecções de fatos de Inverno, em lã quente mas não muito grossa. Coisa de burguês abastado sem estirpe nem nervo. Coisa de quem repete à exaustão bom dia sotôr, como está sotôr, obrigado sotôr. Com o futuro traçado a alinhavos do algodão mais branco, foi com inocência que escolheu a capital para prosseguir o sonho. Aos dezoito anos não lhe cabia ainda dizer não. Vê-se mais tarde. Oráculo tremendo o que guardara junto ao peito. Um dia de Verão quente parou o carro à porta da vivenda nos arredores da cidade pequena onde à porta já o esperavam os pais. A mãe com um sorriso largo, o pai de cara cerrada e um tique nervoso no lábio. Ele – o pai – já o sabia. Beijos e abraços desfeitos com Andrés a entregar-lhes a moldura pesada, o papel pardo rasgado a desvendar Andrés… licenciou-se… Graças a favores especiais que atalharam anos de espera, a encomenda acabara de sair das melhores fornadas dos serviços administrativos da faculdade que visitou de vez em quando durante cinco anos. Há três Verões que o pai não lhe fala mas à mãe telefona todos os dias: “Não te preocupes filho, isto um dia destes passa-lhe”. Há três anos que é assim. Não tem namoradas nem vai às putas mas é provido de amigas. O que faz Andrés para se manter? É o que como tudo menos importa. Ganha para a renda e maus vícios que apanhou com boas companhias: um carro a cair e quase descapotável pago com o empréstimo que alguém por erro identificou de habitação – quando assinou os papéis tomou o erro como do banco e não perdeu tempo com explicações inúteis - e um sótão recauchutado com vista para o rio e de onde procura na cidade em baixo as ruas que primeiro o receberam quando era apenas um recém-chegado. O que faz Andrés. Um obscuro editor de uma revista para adolescentes. Um obscuro jornalista. O resto virá por acréscimo.

Procurava ainda a saída do labirinto quando pegou no telemóvel. Tomás, estou aqui em baixo à tua espera. Sobe. Não quero, despacha-te. Tomás abotoou as calças enquanto enfiava os pés nos sapatos de couro avermelhado que comprou nos saldos. Apertado o último botão das calças, deu-se conta de que tinha perdido quilos a mais. E não tinha sido nas corridas de fim de tarde. A vida, com a sua normalidade aparente, quase doentia, não lhe corria na medida do que era exibido pelos índices exactos. Apoiado no lavatório da casa de banho, pressionado pelas buzinadelas de Andrés, hesitou em aparecer escanhoado nesse jantar dessa quarta-feira. Voltou-se para a esquerda, direita, esticou o queixo para cima. Sabia que os restos do dia não iam incomodar os amigos porque não era por eles que deveria manter a aparência da saúde perfeita exigida no dia-a-dia do escritório infestado de tipos impolutos e de boas famílias. Era por ele, sentia-se dez anos mais velho dos que os trintaeseis que tinha e fazer a barba tirava-lhe a década de cima e com sorte era ainda capaz de lhe dar um bónus, como por vezes desejava, quando de sorte se via entre meninas de liceu, coisas que lhe aconteciam e que sem necessidade de prodígios o podiam deitar de costas mas no calabouço mais próximo. “Fuck it” – no que lhe saiu entre dentes num inglês ouvido e reouvido em cenas de filme cabotinas e sem imaginação. Agarrou nos cremes e passou-os pela pele como se acabasse o escanhoado. Sentiu-se fresco e pronto. “Que se fôda” – não conseguiu impedir-se de traduzir o que lhe passara pela cabeça.

No carro, Andrés congeminava agora contra a pátria, como se tudo para ele fosse conflito. Arrumava argumentos intermediados de we are not made to last. Argumentos de que pudesse socorrer-se se a conversa dessa noite versasse o estado da pátria. Assim cantado a solo, era já um libreto imbatível o que tinha entre mãos. Quando voltou a buzinar para o sexto frente não imaginava que a conversa iria versar um tema absolutamente diferente. O mesmo, mas inteiramente diferente.
Vamos a isto

Zero.

TOMÁS CORRE PELA VIDA


Aqueci ligeiramente os músculos antes de sair do prédio. Fiz depois alongamentos para não rebentar com as pernas nos primeiros metros. A porta estava a fechar-se por detrás de mim enquanto escolhia a música para o itinerário desta tarde. Ponho os óculos de lentes amarelas e carrego em play. O Movement dos New Order há-de servir. O Sol está a escapar-se e o fim da tarde parece-me mais frio do que estava há espera e tenho a impressão de que tenho pele demais à vista. Aos primeiros acordes de Dreams Never End já estou em passo de corrida, um trote ligeiro para averiguar lesões antigas. A música dá-me um certo ânimo e começo a acelerar em direcção à sede da Caixa Geral de Depósitos. Ânimo de änima em português, mas no estado de atleta sinto-me mais com estamina. A música está a andar e não há maneira de voltar a casa se bem que é o que mais me apetece agora que contorno o edifício de pedra pela esquerda já a pedalar pela Avenida João XXI acima. Olho para o relógio e vejo que estou a 175 rotações, pobre coração. Em breve estarei a descer é só o que me passa pela cabeça. Dois tipos passam por mim e olham-me nos olhos. Estou de lentes amarelas, é a merda de não poder correr de óculos escuros à noite. Do nariz para cima devo parecer uma puta de uma drag queen mal amanhada. Só há uma coisa a fazer, seguir em frente. O cruzamento da João XXI com a Avenida de Roma é sempre um problema. Costumo descer pelo passeio da direita e depois controlo os semáforos para decidir se sigo em frente ou se passo para o lado esquerdo e tento ganhar espaço entre os carros para seguir em direcção ao Areeiro. Está vermelho. Aproveito que os carros também estão parados e passo para o outro lado, mas a fila de carros é interminável e tenho de continuar pela Avenida de Roma em direcção ao Júlio de Matos. Por fim aproveito uma brecha e faço um pequeno sprint até ao passeio do outro lado que me levou às 178 pulsações e queimou meia dúzia de bolinhas de colesterol. Foi o cabrão do colesterol que me atirou para as ruas a horas impróprias no início do Inverno. Já sabe, ou deixa de fumar ou deixa de beber café ou toma estes comprimidinhos para o resto da vida. E vir de família com homens que morrem até aos cinquenta de problemas cardíacos não ajuda, sabe, são três factores de risco e tem que eliminar um. Sei, olhe, então é assim doutora, risque-me aí dessa árvore genealógica e temos o problema resolvido. Você é muito engraçado mas não pode ser, mas olhe, pode fazer exercício, ainda que eu ache que não vai escapar a uma medicação para o resto da vida. Acha?, enganou-se que isto desceu para metade com um ano de correrias a inalar escapes pelas ruas e avenidas da nossa querida capital. Estou a cinquenta metros da Rotunda do Areeiro e começam a doer-me as canelas. Estou a correr há pouco mais de cinco minutos e as dores nas canelas chegaram inevitavelmente para abalarem quando tiver acabado de contornar o Técnico. Mas estou a respirar bem. Depois dos primeiros minutos em que uma meia dúzia de gatos entoava música minimal a partir do meu esófago mas sem fagotes começo a absorver as partículas de humidade que pairam do ar à minha frente com leve fragrância a Galp, talvez Repsol. Sim, definitivamente um toque espanhol. Tiro o MP3 de dentro dos calções de aquecimento e salto músicas. Hymn. Corto a toda a velocidade pela Almirante Reis abaixo para voltar a cortar logo de seguida à direita para a Avenida Paris. É então que a imagem de um miúdo mal-amanhado com a mãe que pelo aspecto pode ser avó ou mãe ou avó e mãe apanha o meu cérebro desprevenido e tudo desaparece para me transportar para um canto esconso não sei onde com três bebés alinhados, um tem a cabeça ligada, parece que dormem mas não, estão mortos e há um homem que se aproxima do bebé que tem a cabeça ligada e o beija repetidamente e a cabeça do bebé move-se a cada toque do homem mas nada mais mexe allah uh akbar os pequeninos dedos continuam esticados das mãos esticadas dos braços ao longo daquele corpo minúsculo e lembro-me que hoje não posso deixar de odiar os israelitas. Estou nisto quando à minha frente já tenho a igreja da Praça de Londres e sem querer levanto olhos para a cruz. Passo a avenida com dificuldade. Tenho as canelas a arder e umas mulheres olham-me de uma paragem de autocarro. Olham-me e eu não posso esconder o que me vai nos olhos. Estou quase a parar e desistir. Nas escadas da igreja costuma estar um tipo esfarrapado a quem à saída da homilia deve haver gente a contornar. Procuro-o com os olhos e encontro-o semi-reclinado sobre o cotovelo a organizar sacos de plástico. Está ali mesmo às portas do Senhor mas nunca o vi dar um passo para dentro ou gritar sanctuarium que talvez de pouco lhe servisse. Fica-se pelas portas do Senhor. Onde teriam sido assassinados aqueles três bebés. Não quero desistir mas quando entro na Avenida Manuel da Maia sinto os olhos húmidos e basta-me virar à direita e estou a dois minutos do conforto da casa. Tenho os olhos húmidos e não os posso esconder. Tenho os olhos húmidos. Quero pensar que é aquele vento que me apanha sempre ali, um vento frio que, apesar dos óculos, me ataca sempre do flanco direito enquanto varre a intersecção da Avenida do México por ali abaixo. Quero pensar que é isso mas temo que não. Temo não ser suficientemente forte para estes tempos. Suficientemente frio. Não sou cold sou cool , que mais, sou membro do jogging nocturno. O Sol está a escapar-se de vez e deixo de me mover como uma sombra. Um taxista quase me pisa o pé com a roda da frente. O cabrão deve ser daltónico porque o sinal estava verde para mim. Que idades teriam aqueles bebés? Por falar nisso, já passei a Alameda e estou a contornar o Técnico pela esquerda. Vai ser sempre a subir. Passo pelas meninas que já estão ao ataque. Também eu estou ao ataque àquela puta daquela subida que parece menos íngreme do que realmente é. Dos auscultadores entram agora os The Sound que me dão sempre pica para os últimos vinte minutos. From The Lions Mouth é um álbum excelente. É a banda mais maltratada dos anos 80. Não admira que o Adrian se tenha atirado há uns anos para debaixo de um comboio. Filha da mãe de subida. Não raras vezes chego a parar aqui por uns trinta segundos para depois retomar na descida. Pulsação a 178. Have to be strong man. Aprender a ser fodido, tipo erva daninha. Aprender a foder os outros como eles me querem foder a mim. Tipo erva daninha. Acabo de contornar o Técnico e já vejo o Pingo Doce. Deixaram de me doer as canelas. Agora vai ser um autêntico passeio até ao Campo Pequeno. Esqueço tudo. Estou leve. As pulsações baixaram para 155 e começo a ganhar velocidade. Já não há muitos carros por aqui. Os suburbanos estão a caminho de duas horas de caminho até casa. A cidade começa a ser minha enquanto faço um bocado da Avenida da República até à Praça do Saldanha depois de passar pela esplanada do Galeto. Atravesso a praça ao som de Silent Air. Continuo a saltar músicas: you showed me that silence that hunts this troubled world. Faço a Praia da Vitória e começo a descer a 5 de Outubro sabendo que a embaixada de Israel está por ali à minha esquerda. Foda-se, passei anos a convencer-me de que era biologicamente judeu, um metro e setenta e um, um metro de nariz, família de comerciantes, às vezes um génio apesar de uma belíssima merda a maior parte do tempo, todos os meus apelidos, os apelidos da família chegada e afastada, a geografia, vinha seguramente das doze tribos, o povo de D-us. E agora isto. Grande merda. Quase tropeço numa tampa de saneamento. A avenida está sem movimento e estou completamente acelerado mas procuro manter a atenção. Há dias quase fui atropelado na Miguel Bombarda porque pensava que estava na João Crisóstomo, que tinha acabo de passar, e olhei para a esquerda à procura de carros quando a rua é de sentido único mas da direita e quase passei do jogging para o kite-surf por mãos de um tipo que também devia andar a treinar mas para as 24 Horas de Le Mans. Hoje, tudo sob controle. Ainda passei por uns almofadinhas tardios. Tenho a pulsação a 145. À esquerda e à direita embaixadas e ministérios. Viro à direita para a Avenida Júlio Dinis e vejo no crescente do Campo Pequeno a meta dos cinco quilómetros e meio. Volto a cruzar sobre a República já em passo mais lento. Paro junto às fontes, molho a cara. Que idade teriam aqueles bebés. Povo escolhido o caralho. D-us não se engana dessa maneira.

terça-feira, junho 09, 2009

Tom Waits Waltzing Matilda live 1977