domingo, novembro 15, 2009

erro comum

palavras desbaratadas
ou reunidas à pazada como flocos de neve
puras
e que isso bastasse

mas não não basta
vistos enfileirados em boas capas
assim parece
e contudo a massa de que se fazem é só
a pasta do papel

Três.

OS ÍNDICES EXACTOS

Tomásc passou a tarde a esgrimir neurónios com comunicados da agência de notícias oficial sobre relatórios económicos, primeiro, e com os próprios relatórios, depois. Foram duas horas para sacar um texto insípido sem uma única tirada de ironia e cujo único sucesso foi o de o deprimir na exacta medida em que a população em geral veria aumentar o conhecimento sobre o estado das contas do Estado e os problemas que aí vinham e os que já aí estavam. Quando acabou a licenciatura de Sociologia estava longe de imaginar que um dia acabaria sentado num gabinete de um vereador da cidade a escrever sobre todas as coisas que passara a vida a contornar. Quando o pai lhe telefona a meio da tarde e depois de lhe perguntar então estás trabalhando com uma espécie de gozo escondido no gerúndio arcaico e ele lhe responde com um sim enfastiado e o pai volta com um que falta de gosto lembrava-se sempre desse dia solitário em que descia a avenida das universidades a ser varrida pelo Sol com um diploma no bolso que o atestava como homem das ciências sociais. Mas nessa tarde o nariz vibrou-lhe quando passou de raspão por um despacho do gabinete do chefe já tardio para ele, que estava a segundos de abandonar o edifício da câmara. Leu as primeiras linhas, o lead quase à pressa e depois toda a notícia, em velocidade de cruzeiro. O termo supressão não lhe assentou bem e atribuiu-o a um estagiário maçarico da equipa do vereador que tenha arriscado pôr a jogo um léxico arrojado. Mas foi a olhar de lado para a folha de papel que agarrou no casaco enquanto mastigava a frase que juntava supressão não com postos de trabalho mas com trabalhadores: supressão de trabalhadores.

Quando entraram no carro, naquele final de dia de final de Abril, nem Andrés nem Tomásc sabiam que estavam prestes a tomar em mãos a decisão capital. Sobre a vida ela própria.

sábado, novembro 14, 2009

Dois.

JANTARES DE QUARTA-FEIRA

A noite iniciava-se com uma dose de serenidade que tresandava a falso por todos os poros. O tempo descia sobre as ruas num manto de grão antigo e os elementos perdiam a imperfeição diurna, as sombras a disfarçar pedaços de tinta que estalavam num prédio ou os remendos da estrada que se tornavam pardos e uniformes com o alcatrão, e ali uma árvore escanzelada que era agora à luz de candeeiros uma fantástica silhueta espectral de El Greco e um par de velhos que arrastava os pés longe do Sol revelador e estava agora em perfeita sintonia com o entardecer dos relógios. Um cão de cinco quilos rodeados de pêlo que rodopiava no ar entretido com uma borboleta noctívaga. A harmonia que descia generosa sobre a vida, quando os raios fugidios do último sol da tarde contornavam a última esquina a caminho do poente. Ah a harmonia com que podíamos contar todas as noites na medida de um H maior. Quando Tomásc apareceu à porta, Andrés enterrava-se no carro até meio do banco, alavancado com um joelho no tablier. Gotículas de melancolia escorriam no ar em volta a fazer dançar as luzes que se instalavam dos candeeiros. Vultos apareciam para desaparecer nas suas vidas ao virar da rua, primeiro de frente, depois no retrovisor e a dobrar uma esquina de pedra. Uma tristeza sem sentido, era uma tristeza que nos dilacerava por dentro. Foi neste palco que Tomásc apareceu à porta, com um aceno triste e abalado. Nada daquilo lhe parecia certo e uma súbita angústia atou-lhe uma ponta da vesícula a meio do duodeno a meio caminho da boca do estômago. Não estava aprumado. A barba de dois dias não colhia as bênçãos da noite. Olhos afundados abaixo da testa. Aquela noite era um mau começo.

Há anos que todas as quartas-feiras se reuniam para jantar em casa de Joaquim – só um acontecimento extraordinário determinava que se encontrassem dispersos por outras coordenadas. Os outros que hão-de aparecer à mesa são Joaquim e Jean-Pierre. Nunca durante esses jantares havia uma agenda particular, quer dizer – não conspiravam. “Nós não somos aquele tipo especial de pessoas com potencialidades, quer dizer, motivados para alterar linhas de rumo; não passamos de quatro tipos que se juntam para experimentar receitas do Pantagruel e do Keith Floyd” – explicou um dia Tomásc a um gajo da vereação que via nos manjares a quatro uma actividade subversiva. Não imaginava o tal tipo como todos se tinham em tão má conta nesses capítulos da diplomacia subterrânea. Numa contabilidade dos valores capitais para assumir as rédeas da urbe, assunto que de vez em quando aparecia entre o prato principal e a sobremesa, estava comummente aceite pelo grupo que apesar das funções que desempenhavam, nos lugares em que as desempenhavam, era quase vergonhoso a total inabilidade que manifestavam para se envolver no andamento da engrenagem. Não tinham nem a paciência nem a motivação. Se um dia lhes atirassem que eram aquele tipo de indivíduos a quem os sociólogos atribuem a básica função de sustentar a engrenagem, seja ela qual for, nada mais lhes restaria do que baixar a cabeça e verter uma ou outra lágrima a contornar um sorriso calado. Pois, era um lumpenproletariat que vai fingindo as vitórias do dia. Mas estavam bem, ou mal, ou qualquer coisa, e não tinham motivos para proceder a alterações de rota no perfeitamente esférico mundo – nada mais do que o indispensável era arrancado àquelas carcaças. Até essa noite.

domingo, novembro 08, 2009

Um.

ANDRÉS

“Não fomos feitos para durar”. A ideia tomava todos os recantos internos do crânio de Andrés enquanto conduzia, cigarro ao canto da boca, braço esquerdo de fora e mão direita no volante, em direcção a casa. A noite estava quente ou amena ou qualquer coisa assim. Uma brisa entrava pela janela e atirava-lhe o cabelo contra os olhos. Não fomos feitos para durar. Às nove, encontrava-se com Tomásc e iam depois para casa de Joaquim onde há anos jantavam todas as quartas-feiras. Enquanto conduzia, procurou esse momento, desde os primeiros minutos da alvorada, desde que se levantara, esse momento que havia desencadeado a epifania que agora o entretinha. Que quieta violência teria sido essa que com pezinhos de lã o levou ao que agora lhe parecia a consciência última das coisas. Uma verdade primordial que lhe ocupava todos os sentidos já como um aborrecimento. Foi rolando pela cidade enquanto o GPS interno procurava as coordenadas da epifania derradeira: reviu o dia desde que se levantou mas nada lhe parecia digno de sentenças ou oráculos ou outras artes de xamanismo. Parado num sinal, veio-lhe apenas à cabeça esse pormenor, uma coisa insignificante, a frase surgira-lhe primeiro na forma de uma tirada em inglês We were not made to last, como uma deixa de filme bom com gente má; um ensinamento juvenil que se ouve numa canção em moda. À primeira vista aquilo era nada, um verso de canção que se insinuava das rádios com o Verão que aí vinha. Uma merda daquelas que todos os anos se anunciava para os dias quentes com esplanadas e gajas na praia. Mas esta era uma explicação escassa que não satisfazia Andrés. Aquelas palavras todas juntas, com a harmonia de uma frase para fagote a anunciar um requiem sofrido com batidas meladas, assumiam a forma de uma sentença para ele próprio, ele que temia essas esconjurações do acaso que ajudam a germinar num homem prenúncios de catástrofe, os cenários ideais para despertarem a desordem obsessiva compulsiva que cada vez mais lhe tomava conta de pequenos gestos que se esforçava por padronizar num derradeiro esforço de controle do bem e do mal. Por isso, plantado nas fronteiras do mais bem guardado dos seus segredos, um ditame organizado daquela forma não podia ser uma coisa desprovida de significado, via-o mas era já como uma manigância do caos. Qual reminiscência anunciada em programas manhosos da televisão que madruga qual quê. Nah! Aquele pensamento já estava a afectar a clarividência de Andrés. Não fomos feitos para durar. Todo o dia escoltado pela mais esquerda das ideias. À mesa de trabalho aplicou considerável energia em esquadrias perfeitas entre as canetas e as folhas e o teclado do computador e até do próprio monitor mas foi em vão que procurou acalmar a besta que lhe trauteava ao ouvido entre o martelo e a bigorna. Quando virou da António Maria do Bocage e começou a procurar um lugar para deixar o carro estava pálido, com as mãos húmidas. A frase formara-se já perfeita no seu cérebro, sem intervenção humana, ditada aos próprios neurónios. A ordem das palavras só de si bastava-lhe para saber que não se tratava de uma mera tautologia: não - aquele era um princípio poderoso que iria fazer sentido a qualquer momento, que o iria apanhar de surpresa mesmo no seu estado de alerta.

Procurava ainda a saída do labirinto quando pegou no telemóvel. Tomásc, estou aqui em baixo à tua espera. Sobe. Não quero, despacha-te. Tomásc abotoou as calças enquanto enfiava os pés nos sapatos de couro avermelhado que comprou nos saldos. Apertado o último botão das calças, deu-se conta de que tinha perdido quilos a mais. E não tinha sido nas corridas de fim de tarde. A vida, com a sua normalidade aparente, quase doentia, não lhe corria na medida do que era exibido pelos índices exactos. Apoiado no lavatório da casa de banho, pressionado pelas buzinadelas de Andrés, hesitou em aparecer escanhoado nesse jantar dessa quarta-feira. Voltou-se para a esquerda, direita, esticou o queixo para cima. Os restos do dia não iriam incomodar os amigos porque não era por eles que sentia esse estranho dever da aparência de uma saúde perfeita. Era por ele, sentia-se dez anos mais velho dos que os trintaeseis e fazer a barba tirava-lhe a década de cima e com sorte era ainda capaz de lhe dar um bónus, como por vezes desejava, quando de sorte se via entre meninas de liceu, coisas que lhe aconteciam e que sem necessidade de prodígios o podiam deitar de costas mas no calabouço mais próximo. “Fuck it” – no que lhe saiu entre dentes num inglês ouvido e reouvido em cenas de filme cabotinas e sem imaginação. Agarrou nos cremes e passou-os pela pele como se acabasse de aparar os restos do dia. Sentiu-se fresco e pronto. “Que se fôda” – não conseguiu impedir-se de traduzir o que lhe passara pela cabeça.

No carro, Andrés congeminava contra nada, um libreto que cantado a solo era sempre imbatível. Quando voltou a buzinar para o sexto frente não imaginava que um homem estivesse já a fazer o caminho para o cadafalso.

sábado, novembro 07, 2009

PULVIS ES

4 do 4 de 2009, cemitério de v. Caminho só com a mão direita pousada no féretro que envolve o meu pai. O caminho é feito ao longo de uma espécie de vereda que leva a uma capela. Atrás de mim vêm todos os outros. Não há um som, o mundo inteiro fez silêncio às 18 da tarde desse dia porque ia a sepultar um Homem. Dezassete anos antes fiz o caminho entre v. e os HUC numa ambulância em que meu pai ía a caminho de uma operação ao cérebro e foram 80 quilómetros em que não lhe larguei a mão, de maneiras que no dia 4 de Abril não podia deixá-lo fazer sozinho aquela última caminhada. Vinte e três horas antes entrei na unidade de cuidados intensivos de um hospital, disseram-me que o seu estado era grave, que era bom que tivesse alguém da família com ele. Quando entrei encontrei o meu pai com olhar vago e a máscara de oxigénio que para mim não era estranha. Tinha sido reanimado pela quinta vez na sua vida. Pela quinta vez foram chamá-lo ao outro lado. Segurei-lhe na mão e falei com ele. Disse-lhe pai já passámos por muitas coisas antes e vamos passar por isto. Na máscara repousavam restos de sangue, o que fiz notar ao enfermeiro. Pouco depois ele limpou a máscara com um desvelo inusitado. Meu pai continuava de olhar vago para o fundo da cama, mas era como se olhasse alguém. Continuava a segurar-lhe a mão, falava com ele. O meu pai era um protegido, como dissera 50 anos antes uma senhora que sabia coisas e pediu à minha avó - depois de uma figura entrar em contacto com meu pai - "levante-lhe a camisa, veja se no antónio tem uma folha de oliveira desenhada por debaixo do coração, ELE ESTÁ PROTEGIDO". 4 de Abril, largo a mão direita de meu pai, rodo a cama, pego na sua mão esquerda e puxo o lençol. A folha de oliveira está lá mas agora mal delineada e sei então que o meu pai, o meu querido pai , vai morrer. Digo-lhe ao ouvido: o pai foi a minha referência, obrigado pai obrigado obrigado pai obrigado obrigado por tudo. Quando me ergui procurei os seus olhos - os olhos do meu pai eram habéis - mas já estavam fechados. Afastei-me do leito de morte e percebi: um Homem tinha morrido. Às 16 da tarde do dia seguinte eu fiz a derradeira caminhada com um homem com o qual não estava à altura. A última vez que o olhei vi-o imponente, antes de ser descido sobre o que era já a morada do meu primo Fernando e eu temo não ser digno deles, mas deixei de temer a morte, porque do outro lado sei que me esperam homens bons.
Viver é tão cansativo.

quinta-feira, novembro 05, 2009

(depois da quarta revisão isto vai, ou vai ou fodo tudo pela frente)


Zero.
TOMÁSC CORRE PELA VIDA

Aqueci ligeiramente os músculos antes de sair do prédio. Fiz depois alongamentos para não rebentar com as pernas nos primeiros metros. A porta estava a fechar-se por detrás de mim enquanto escolhia a música para o itinerário desta tarde quando uma ninfeta de calças descaídas e pernas compridas se prepara para virar a esquina. Perfeita, não te vires, não te vires. Desaparece no azimute da aresta de pedra suja e imagino traços de Botticeli a cinzelar-lhe a pele. Perfeita. A porta fecha-se com estrondo. Encaixo os óculos de lentes amarelas e carrego no play. O Movement dos New Order ali à mão há-de servir. O Sol está a escapar-se e o fim da tarde parece-me mais frio do que estava há espera e tenho a impressão de que tenho pele demais à vista. Aos primeiros acordes de Dreams Never End já estou em passo de corrida, um trote ligeiro para averiguar lesões antigas. A música dá-me um certo ânimo e começo a acelerar em direcção à sede da Caixa Geral de Depósitos. Ânimo de änima em português, mas no estado de atleta é mais com estamina que eu me sinto agora enquanto escapo a um carro que não estava à espera que eu atravessasse ali a estrada junto às bombas de gasolina. A música está a andar e já não há maneira de voltar a casa se bem que é o que mais me apetece agora que contorno o edifício de pedra pela esquerda a pedalar pela Avenida João XXI acima. Olho para o relógio e vejo que estou a 175 rotações, pobre coração. Em breve estarei a descer é só o que me passa pela cabeça. Cruzo-me com dois tipos que me olham nos olhos. Estou de lentes amarelas, é a merda de não poder correr de óculos escuros à noite. Do nariz para cima devo parecer uma puta de uma drag queen mal amanhada. Só há uma coisa a fazer, seguir em frente. O cruzamento da João XXI com a Avenida de Roma é sempre um problema. Costumo descer pelo passeio da direita e depois controlo os semáforos para decidir se sigo em frente ou se passo para o lado esquerdo e tento ganhar espaço entre os carros para seguir em direcção ao Areeiro. Está vermelho. Aproveito que os carros também estão parados e passo para o outro lado, mas a fila de carros é interminável e tenho de continuar pela Avenida de Roma em direcção ao Júlio de Matos. Por fim aproveito uma brecha e faço um pequeno sprint até ao passeio do outro lado que me levou às 178 pulsações e queimou meia dúzia de bolinhas de colesterol. Foi o cabrão do colesterol que me atirou para as ruas a horas impróprias no início do Inverno. Já sabe, ou deixa de fumar ou deixa de beber café ou toma estes comprimidinhos para o resto da vida. Eu estava a abotoar a camisa e pouco absorvia do que me era entregue em papel de compêndio com aquele sotaque de professora de primária, quando o menino se porta mal e já está a a ser posto ao corrente de que não vai ter recreio até ir para a universidade. E vir de família com homens que morrem até aos cinquenta de problemas cardíacos não ajuda, sabe, são três factores de risco e tem que eliminar um. Sei, olhe, então doutora, risque-me aí dessa árvore genealógica e temos o problema resolvido. Você é muito engraçado mas não pode ser, mas olhe, pode fazer exercício, ainda que eu ache que não vai escapar a uma medicação para o resto da vida. Acha?, enganou-se que isto desceu para metade com um ano de correrias a inalar escapes pelas ruas e avenidas da nossa querida capital. Estou a cinquenta metros da Rotunda do Areeiro e começam a doer-me as canelas. A corrida vai com uns míseros cinco minutos e as dores nas canelas chegaram inevitavelmente para abalarem quando tiver acabado de contornar o Técnico. Mas estou a respirar bem. Depois dos primeiros minutos em que uma meia dúzia de gatos entoava música minimal num recanto do meu esófago, mas sem fagotes, começo a absorver as partículas de humidade que pairam do ar à minha frente com leve fragrância a Galp, talvez Repsol. Sim, definitivamente um toque espanhol. Lembro-me de quando aos 15 anos visitei Paris ter logo, romanticamente, reparado que os escapes franceses produziam uma fragrância muito mais citadina, cosmopolita do que a pesada gasolina com chumbo a que estava acostumado numa cidade de província perdida entre serranias. Tiro o MP3 de dentro dos calções de aquecimento e salto músicas. Hymn. Corto a toda a velocidade pela Almirante Reis abaixo para voltar a cortar logo de seguida à direita para a Avenida Paris. É então que a imagem de um miúdo mal-amanhado com a mãe que pelo aspecto pode ser avó ou mãe ou avó e mãe apanha o meu cérebro desprevenido e tudo desaparece para me transportar para um canto esconso não sei onde com três bebés alinhados, um tem a cabeça ligada, parece que dormem mas não, estão mortos, e há um homem que se aproxima do bebé que tem a cabeça ligada e o beija repetidamente e a cabeça do bebé move-se a cada toque dos lábios do homem mas nada mais mexe allah uh akbar os pequeninos dedos rechonchudos continuam esticados das mãos esticadas dos braços ao longo do corpo minúsculo e lembro-me que hoje não posso deixar de odiar os israelitas. Estou nisto quando à minha frente já tenho a igreja da Praça de Londres e sem querer levanto os olhos para a cruz. Passo a avenida com dificuldade. Queria interrogar Deus mas tenho de me preocupar com os carros à minha esquerda que eu sei que não vão parar nem que eu esteja estatelado no alcatrão. Tenho as canelas a arder e umas mulheres olham-me de uma paragem de autocarro. Olham-me e eu não posso esconder o que me vai nos olhos. Estou quase a parar e desistir. Nas escadas da igreja costuma estar um tipo esfarrapado a quem à saída da homilia deve haver gente a contornar. Procuro-o com os olhos semicerrados e encontro-o meio reclinado sobre o cotovelo a organizar sacos de plástico. Está ali mesmo às portas do Senhor mas nunca o vi dar um passo para dentro ou gritar sanctuarium, que talvez de pouco lhe servisse e ele o saberá. Fica-se pelas portas do Senhor até que um dia tarde demais alguém lhe diga do alto de um púlpito que era para ele apenas que aquela porta se entreabria. Onde teriam sido assassinados aqueles três bebés. Não quero desistir mas quando entro na Avenida Manuel da Maia sinto os olhos húmidos e basta-me virar à direita e estou a dois minutos do meu sofá. Tenho os olhos húmidos e não os posso esconder. Tenho os olhos húmidos. Quero pensar que é aquele vento que me apanha sempre ali, um vento frio que, apesar dos óculos, me ataca sempre do flanco direito enquanto varre a intersecção da Avenida do México por ali abaixo. Quero pensar que é isso mas temo que não. Temo não ser suficientemente forte para estes tempos. Suficientemente frio. Não sou cold sou cool, que mais, sou membro do Clube do Jogging Nocturno. O Sol está a escapar-se de vez e deixo de me mover como uma sombra. Um taxista quase me pisa o pé com a roda da frente. O cabrão deve ser daltónico porque o sinal estava verde para mim. Que idades teriam aqueles bebés? Já passei a Alameda e estou a contornar o Técnico pela esquerda. Vai ser sempre a subir. Passo pelas meninas que iniciaram o turno das 10 e já estão ao ataque. Também eu estou ao ataque àquela puta daquela subida que quando a faço de carro parece menos íngreme do que realmente é. Dos auscultadores entram agora os The Sound que me dão sempre pica para os últimos vinte minutos. From The Lions Mouth é um álbum excelente. É a banda mais maltratada dos anos 80. Não admira que o Adrian se tenha atirado há uns anos para debaixo de um comboio. Filha da mãe de subida. Não raras vezes, aqui, chego a intercalar com marcha por uns trinta segundos para depois retomar na descida. Pulsação a 178. Have to be strong man. Aprender a ser duro, tipo erva daninha. Tipo erva daninha. Acabo de contornar o Técnico e já vejo o Pingo Doce. Deixaram de me doer as canelas. Agora vai ser um autêntico passeio até ao Campo Pequeno. Esqueço tudo. Estou leve. As pulsações baixaram para 155 e começo a ganhar velocidade. Já não há muitos carros por aqui. Os suburbanos estão a caminho de duas horas de caminho até casa. A cidade começa a ser minha enquanto faço um bocado da Avenida da República até à Praça do Saldanha depois de passar pela esplanada do Galeto, hoje sem turistas. Atravesso a praça ao som de Silent Air. Continuo a saltar músicas: you showed me that silence that hunts this troubled world. Faço a Praia da Vitória e começo a descer a 5 de Outubro sabendo que a embaixada de Israel está por ali à minha esquerda. Que merda, passei anos a convencer-me de que era biologicamente judeu, um metro e setenta e um, um metro de nariz, família de comerciantes, às vezes um génio apesar de uma belíssima merda a maior parte do tempo, todos os meus apelidos, os apelidos da família chegada e afastada, a geografia, vinha seguramente das doze tribos, o povo de D-us. E agora isto. Foda-se. Quase tropeço numa tampa de saneamento. A avenida está sem movimento e estou completamente acelerado mas tento recuperar a atenção. Há dias quase fui atropelado na Miguel Bombarda porque pensava estar na João Crisóstomo, que tinha passado um quarteirão atrás, e olhei para a esquerda à procura de carros quando a rua é de sentido único mas da direita e quase passei do jogging para o kite-surf por mãos de um tipo que também devia andar a treinar mas para as 24 Horas de Le Mans. Mas agora - tudo sob controle. Ainda passei por uns almofadinhas tardios. Tenho a pulsação a 145. À esquerda e à direita embaixadas e ministérios. Viro à direita para a Avenida Júlio Dinis e vejo no crescente do Campo Pequeno a meta dos cinco quilómetros e meio. Volto a cruzar sobre a República já em passo lento. Paro junto às fontes, molho a cara abundantemente. Que idade teriam aqueles bebés. Povo escolhido o caralho. D-us não se engana dessa maneira.


Entre o ZERO e o UM.
Desaperto os ténis e encaminho-me a respirar em golfadas generosas. Encho-me de oxigénio nos duzentos metros que me separam de casa. Dava tudo por um cigarro e deixar de me sentir tão saudável. Não aguento este bem-estar. Dentro de duas horas estarei a discutir a vida de um homem que nem conheço. Ainda não o sei, mas a vida de um tipo reles e com todas as qualidades que se adquirem nas melhores academias para vencer nesta merda vai estar nas minhas mãos e de outros três amigos. Naquela noite um homem começou a morrer às minhas mãos. Eu ainda não o sabia e muito menos ele, que – imagino - continuava a esconjurar as acções do dia com obrigações caseiras de um homem de bem.
E tudo era cansativo, a vidinha diária, irremediavelmente cansativa.

segunda-feira, novembro 02, 2009

So long, ANTÓNIO SÉRGIO





Alguém da Radar dizia no velório: Quem é que não estudou enquanto ouvia António Sérgio?

Certamente que toda a gente deveria ter estudado a ouvir António Sérgio - era uma garantia de que o tempo não estava totalmente perdido.