Breve conto de Natal para ser lido às criancinhas filhas de um qualquer porco capitalista nas vésperas da abertura de prendas que custem mais do que o necessário simbolismo da época não sendo de todo inútil lembrar que também qualquer criancinha ou já quase adulto fruto de um progenitor dedicado à política poderá em muito beneficiar desta leitura sobre a grande obra do dito papá ou mamã
É curioso como me ocorrem as coisas mais despropositadas no dia de Natal. Estou sentado ao meu computador que não é meu, é emprestado, e tenho os head-phones ligados à Lacrimosa de Mozart. Passou um dia depois do dia de Natal. A Filarmónica de Berlim percorre-me e é divina no meu cérebro. Não consigo libertar-me do Confutatis de Mozart e imagino-o moribundo a compor entre rasgos de suor pelos dedos. Ruanda. Etiópia, África inteira. Imagino que também aí deve ser Natal. Diz o confutatis, Gere curam mei finis, Ajuda-me nos meus momentos finais. Suponho que também por ali deve ser Natal. Claro, nem pode deixar de ser. Eu tive uma ceia de Natal razoável. Passei a noite com todas as pessoas que amo. Sim, absolutamente razoável. Ao fundo, no meu cérebro, movem-se ossudos, os cadáveres de crianças negras que já deram conta de que não vão chegar a velhos e que nunca ouvirão o Confutatis e a Lacrimosa do Mozart quando os altos dignitários de várias nações se levantarem a esses sons num qualquer serviço em sua memória. As crianças que insistem em estragar-me o Natal todos os anos têm e irão conservar até à morte um ar inocente e perdido no ecrãn do meu televisor e eu não posso deixar de os olhar com espanto. Vejo por detrás delas o pó que se levanta do apocalipse e a terra é seca e dura. As cores alaranjadas do sol que nasceu para elas apenas por engano deixa-as ocultas na paisagem dos meus piores sonhos.
Vamos lá ao conto de Natal. Eu até gosto de Coca-Cola. Era uma vez uma família composta, muito bem composta para dizer a verdade, por um marido, uma mulher, duas filhas, um filho, um cão, dois gatos que se davam bem, um peixe e uma avó rabugenta. No dia anterior ao dia de Natal tiveram uma consoada recheada com peru e batatas assadas, arroz de polvo e bacalhau cozido com batatas e couves e regado tudo isto com azeite virgem com 0,5º de acidez. Durante a refeição a mãe mudou o canal que estava a dar o telejornal para o que estava a dar a telenovela que hoje não era dia para ver coisas tristes. No fim da refeição, os petizes abriram as prendas sem esperar pela meia noite e os animais tiveram direito a um prato suplementar de biscoitos que estavam em promoção no hipermercado. É com uma alegria silenciosa que percebo que aquela lacrimosa e aquele confutatis não são para mim. Desde sempre foram para aquelas crianças que íam estragando o jantar àquela família de bem, ou não tivessem sido compostos por um moribundo. De pouco lhes servirá - mas, por elas, digo-lhe eu, obrigado senhor Amadeus e que as suas preces cheguem rápido aos céus que eles têm pressa de chegar a velhos.
Já fui mais extremista, agora que sou pai apenas me dói mais, muito mais
Até logo
É curioso como me ocorrem as coisas mais despropositadas no dia de Natal. Estou sentado ao meu computador que não é meu, é emprestado, e tenho os head-phones ligados à Lacrimosa de Mozart. Passou um dia depois do dia de Natal. A Filarmónica de Berlim percorre-me e é divina no meu cérebro. Não consigo libertar-me do Confutatis de Mozart e imagino-o moribundo a compor entre rasgos de suor pelos dedos. Ruanda. Etiópia, África inteira. Imagino que também aí deve ser Natal. Diz o confutatis, Gere curam mei finis, Ajuda-me nos meus momentos finais. Suponho que também por ali deve ser Natal. Claro, nem pode deixar de ser. Eu tive uma ceia de Natal razoável. Passei a noite com todas as pessoas que amo. Sim, absolutamente razoável. Ao fundo, no meu cérebro, movem-se ossudos, os cadáveres de crianças negras que já deram conta de que não vão chegar a velhos e que nunca ouvirão o Confutatis e a Lacrimosa do Mozart quando os altos dignitários de várias nações se levantarem a esses sons num qualquer serviço em sua memória. As crianças que insistem em estragar-me o Natal todos os anos têm e irão conservar até à morte um ar inocente e perdido no ecrãn do meu televisor e eu não posso deixar de os olhar com espanto. Vejo por detrás delas o pó que se levanta do apocalipse e a terra é seca e dura. As cores alaranjadas do sol que nasceu para elas apenas por engano deixa-as ocultas na paisagem dos meus piores sonhos.
Vamos lá ao conto de Natal. Eu até gosto de Coca-Cola. Era uma vez uma família composta, muito bem composta para dizer a verdade, por um marido, uma mulher, duas filhas, um filho, um cão, dois gatos que se davam bem, um peixe e uma avó rabugenta. No dia anterior ao dia de Natal tiveram uma consoada recheada com peru e batatas assadas, arroz de polvo e bacalhau cozido com batatas e couves e regado tudo isto com azeite virgem com 0,5º de acidez. Durante a refeição a mãe mudou o canal que estava a dar o telejornal para o que estava a dar a telenovela que hoje não era dia para ver coisas tristes. No fim da refeição, os petizes abriram as prendas sem esperar pela meia noite e os animais tiveram direito a um prato suplementar de biscoitos que estavam em promoção no hipermercado. É com uma alegria silenciosa que percebo que aquela lacrimosa e aquele confutatis não são para mim. Desde sempre foram para aquelas crianças que íam estragando o jantar àquela família de bem, ou não tivessem sido compostos por um moribundo. De pouco lhes servirá - mas, por elas, digo-lhe eu, obrigado senhor Amadeus e que as suas preces cheguem rápido aos céus que eles têm pressa de chegar a velhos.
Já fui mais extremista, agora que sou pai apenas me dói mais, muito mais
Até logo
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial