domingo, fevereiro 17, 2013


A Piscina era a Vida


Em inglês seria: the pool was life, mas o velho Ismael não falava inglês, das muitas competências que reuniu desde que saiu do útero materno não constava a língua que Beckett renegaria nas últimas peças. Por isso era em português que 

A piscina era vida. Com os seus vermelhos azuis e brancos. As bóias separadoras das pistas a boiarem nas águas agitadas, travessas das crianças que chapinhavam. De vez em quando, à sexta-feira, ia sentar-me para os lados das Olaias num banco de plástico no meio da neblina quente que chegava da piscina de um clube selecto. Sentava-me ao lado dos pais e dos avós que esperavam pelas crianças. Como se também eu esperasse alguém. Depois de tantas vezes já conhecia os pequenos atletas, e os mais velhos também, melhor talvez. Como dois irmãos, um par que me chama particularmente a atenção. São deficientes mentais. Atrasados mentais – como já não se diz. Nadam e quando vêm à tona têm a boca aberta, sempre, como se estivessem numa eterna contemplação da terra prometida. Um espanto que não se pode medir. Abrem a boca e olham em volta como se algo estivesse errado, mas sem saberem o quê. Gostava de poder gritar-lhes que não há nada de errado ali. Está tudo bem, nadem rapazes, nadem. Mas não me é permitido. Se eu me sento naquelas cadeiras de plástico é por mim, porque a piscina é vida e às vezes, à sexta-feira, preciso de sentir que alguma coisa vale a pena, com as bandeiras a levitarem sobre a água presas por fios que era escusado. Os mais pequenos chapinham com graça, mas há aqueles que já dão um jeito de nadador. Chegam aos fim das pistas com alegria e tiram aqueles óculos que usa, puxam-nos para cima das toucas coloridas e começam a tagarelar uns com os outros até que o apito do professor os lança em mais uma série de braçadas desenfreadas como se nada os pudesse parar. A um canto um grupo de idosos como eu, mas diferentes de mim, fazem exercícios de ginástica ao som ruidoso mas agradável que pulsa de umas colunas por trás do monitor que faz os mesmos gestos em posições engraçadas, com o cabelo a dar pequeninos saltos. A piscina é vida. Já não posso de ir ali nas sexta-feiras em que me sinto mais em baixo. Nem que fosse para sentir o ar de cadelas com cio com que algumas mães se aproximam dos monitores a despirem as camisolas antes de entrarem na água. Mas não, já não pode ser isso.


terça-feira, fevereiro 05, 2013


Um copo de café, um copo de plástico que lhe queima os dedos, a fumegar na espiral que se levanta acima do líquido negro. Esgota os minutos com parcimónia. Senta-se nas escadas e perscruta esse lugar onde um dia assentaram raízes verdes álamos. Uma paisagem vaga através das córneas gastas, a lembrar acrílico riscado. Populus nigra. Verde, um arranha-céus verde. Ouro no Outono. É verdade que estava velho, mas nem tantos anos de arquivo alteram a sensibilidade de um agricultor. Sabia de álamos, não por si mas por almanaques de folhas amarelas que havia no escritório. Álamo, uma árvore que podia ter bela envergadura, se calhasse a esticar bem os ramos, de tronco hirto e uma copa densa. Folhas em serra. O que poucos sabem é que elas se dividem em machos e fêmeas, como os animais. Mas as flores que dá são quase nada, miudezas, a contrastar com o espírito de conquista das raízes. Não era nenhum saloio. Sabia uma ou duas coisas, aos 75 anos. Setentaecinco. Uma vida. Morrer na alameda. De preferência, mas morrer durante o caminho para a universidade também era aceitável, nunca a caminho de casa. Ou num lar, arrumado numa gaveta com cheiros a bexigas que vertem sem parar.

Os álamos. Uma torrente escurece o Sol. De Sul aproxima-se um enxame de pássaros, talvez estorninhos. Se estivesse na sua aldeia natal diria estorninhos, são estorninhos de certeza. Aqui não sabe, podem ser ou não. Sobrevoam-no a partir de Sul e escurecem por momentos as escadas onde estava sentado com um copo de plástico em que trepava um fio de borra na mão. Se estivesse na terra eram estorninhos. A estoirar nas Fontainhas. Na Rebolada. Menos nos Lameiros. Mas também na Regada, uma revoada negra a gingar nos ares, eu, um jovem eu de olhos para cima e boca aberta. Há tantos anos, mais nas Fontaínhas, onde havia uma imensa horta e a seguir a um declive, masi em baixo, se cultivavam batatas. Também gostava da Rebolada, com a árvore onde minha mãe deitava uma manta para que me sentasse sossegado. Mas nos Lameiros havia morangos e um poço à volta do qual as burras puxavam os caldeiros. Não tinha falta de nada, mesmo só. Um estorninho perdido vagabunda em volta. Quando o pássaro pousou a dois metros percebeu que ainda trazia restos de Sol nas asas. Quis esganá-lo.