quarta-feira, setembro 19, 2007

Tinha prometido isto há uns tempos - cá vai uma história que escrevi aos 18 anos.

OS PROSTITUTOS OU A SUCESSÃO
Usado. ”Toda a vida”. Estava irritado. Mas num momento de plena lucidez, apesar de apalpar já com os pés o limiar do desespero. Não sabia de que servira a sua vida, agora que se sentia velho e acabado. Agora que nenhuma linha de rota teria para ele qualquer utilidade. (O pesar da insignificância sem remédio tornara-se demasiado para ser suportado sem a ajuda do álcool.) Era essa clarividência tardia de que estavam distantes as estações em que podia provocar nascimentos à medida dos desejos; a certeza de que um destes dias a morte lhe bateria à porta tornava tudo demasiado irreversível. Já pouco elásticas, sentia que as narinas quase dilatavam perante o odor do medo que lhe provocava esse sentido do definitivo.
Foi com estes sentimentos que entrou na sala, onde encontrou em cima da mesa um estranho pacote. Tinha o carimbo da firma por cima, na tampa. Estranho ainda. Aparte o velho patrão, ninguém sabia que completava hoje meio século ao serviço da empresa - e sem faltas.”Coitado do velho patrão. Já lá está”. Nunca em vida Jean-Pierre havia sentido qualquer afecto da parte deste para com ele. Mas com a sua morte e a subida do filho ao assento mais alto da empresa, ainda soube reconhecer muito afecto nas austeras decisões do velho senhor.
“Talvez algum dos meus colegas mais antigos” e enquanto dizia isto examinava de trás para a frente o pacote cujas proporções, sendo quase diminutas, não eram especialmente fora do normal. Porém, será difícil de admitir essa hipótese, uma vez que também eles já haviam desaparecido - e a maior parte das vezes sem uma palavra de despedida. Jean-Pierre não conseguia explicar-se satisfatoriamente. “Como? agora isto”. E mais inquietantes eram os factos que antecediam estes tempos. A forma quase imediata como eram ocupados os postos deixados pelos referidos colegas. Por estranhos seres aparecidos não se sabia bem de onde. Era impossível falar com eles. Tinham dimensões incrivelmente grandes, o que lhes conferia uma certa superioridade e distância nas relações laborais da fábrica. Mesmo sobre os mais velhos. Eram no entanto eficientes. Chegavam a operar as doze horas do dia. E corriam rumores de que passavam a noite na fábrica. Sempre a laborar. Não obstante a dureza do trabalho. E o que também era incrível - quando no final de cada semana se juntavam infindáveis bichas do lado de fora da zona dos escritórios, com o frenesim habitual, a fim de se efectuarem os pagamentos, nunca eles viram nenhum deles à espera. Os outros operários chegaram a temer que montassem um qualquer esquema, mas todos os meses sucedia o mesmo e nunca ninguém teve até hoje razão de queixa. E as estranhas criaturas deviam estar contentes também, pois o seu número aumentava de semana para semana. Mas agora, tudo isto levava Jean-Pierre a desconfiar da aparição do embrulho em cima da mesa da sala. Se fosse na caixa do correio, ou à porta de casa. Mas logo ali, sem mais nem menos.
Por fim, desatou o primeiro cordão que suportava a pressão vinda do interior do pacote. Desconfiado, ainda o sacudiu de um lado para o outro várias vezes. Espreitou por uma pequena brecha que dir-se-ia estrategicamente colocada para aguçar a curiosidade, mas foi-lhe impossível de todo ver o que quer que fosse. Teve mesmo de o abrir. Depois de se livrar de todos os papéis que envolviam a caixa, ficou finalmente exposto o seu fundo. Aparentemente vazia. Apenas depois e à custa de muita atenção consegui reparar numa minúscula criatura. Esta tinha os olhos pregados em Jean-Pierre. Assustou-se. No momento seguinte, e de um pulo só, a criatura foi colocar-se no canto do outro extremo da sala. Ali permaneceu quieta. Mas sempre com os olhos fixos em Jean-Pierre. Este, entretanto, apoderou-se de um atiçador que estrategicamente colocara ao pé da porta que dava cara a cara com as traseiras, (nunca se sabe quando precisaria dele). Por alguns instantes, demasiado tempo talvez, ficou ali a encarar o bicho de frente. Da mesma maneira que se encara uma obsessão. Sem reacção. Sem poder para as destruir. O bicho também não se moveu. Havia de se transformar antes de entrar em acção.
Então, de um momento para o outro, começou a sofrer a estranha mutação. “Ai o diabo”. Não, não era propriamente uma mutação. Digamos antes uma ampliação. Isso, tornou-se mil vezes maior. Muito maior já do que Jean-Pierre. Este pode então reconhecer no bicho os seres que vinham ocupando em número cada vez maior as vagas na fábrica do novo patrão. Reconheceu então a estrutura mecânica da besta – algo que nunca percebera por debaixo dos uniformes azuis da companhia. As suas articulações eram roldanas perfeitas, os seus membros de aço puro, o peito revestido de amianto. E a cabeça – que outrora via coberta por máscaras e bonés - a sua cabeça assemelhava-se a um computador de filme futurista. Então, em nada mais Jean-Pierre pode reparar. O bicharoco já está a avançar para ele, dando-lhe apenas tempo para se refugiar atrás do sofá. De nada lhe serviu. Com um só arremesso o bicho livrou-se do velho sofá encardido e enquanto ele tentava e o atingia vezes consecutivas com o atiçador também de um só golpe o deixou quase inconsciente. Com a vista toldada pelo sangue, conseguiu ainda ver que a grande criatura vomitava agora qualquer coisa estranha. Eram pequenas criaturas, réplicas de si mesma. Saltaram-lhe para cima e começaram a sugar-lhe la sangre que vertia da zona posterior da orelha, onde lhe havia sido desferido o golpe único. Impotente e horrorizado assistia assim Jean-Pierre à silenciosa execução que lhe era aplicada. Notou com mais horror ainda as expressões de satisfação das criaturas. Sinistra alegria. E enquanto com as mandíbulas lhe abriam novos buracos na carne, para melhor o desproverem da seiva vital, dizia-lhe uma quase aos berros ”Nós só queremos o teu sangue”. E calou-se, quando outra lhe segredava já qualquer coisa ao ouvido. “Viemos despedir-nos de ti”, e continuou, quase íntima, “Já não és preciso. Viemos felicitar-te. Adeus”. No final do banquete, viu as criaturas serem engolidas, voltando de novo para o interior da primeira, que as acolheu com um sorriso. Retribuíram com um risinho mecânico.
Que terrível irmandade é esta que acabou comigo e eu nem sequer conheço? Falou então a criatura mais velha, que entretanto tirara um papel (espécie de bilhete) de uma bolsa que levava amarrada do seu lado direito, parecendo guiar-se por ele: É do nosso patrão, o patrão novo – “Caro Jean-Pierre. Vimos felicitá-lo pelo seu quinquagésimo aniversário ao serviço da empresa. Avisamo-lo também que desde já dispensamos os seus serviços. Parabéns e adeus.” – É tudo. E devorou o papel de seguida.
Jean-Pierre morria entretanto, pronunciando em tom baixo e muito calmo “Obrigado. Obrigado”.
A criatura dirigiu-se ao local onde ele estava estendido e tomou-lhe o pulso. Depois de verificar que estava morto, enterrou-lhe os dedos na carne e, partindo duas costelas, arrancou-lhe o coração para o devorar de seguida. Voltou então ao tamanho inicial enquanto se encaminhava para a porta das traseiras. A fábrica já iniciara o turno da noite.

Quando eu à noite vou beijar a minha filha e ela já dorme, sei que algures uma criança não receberá uma beijo. E não será apenas esta noite, e não será privada apenas do beijo, e não será apenas uma criança. E isso acaba por doer. Menos a mim do que a essa crianças.

quarta-feira, setembro 05, 2007

COISAS INCRÍVEIS QUE AINDA SE OUVEM
"Tenho saudades das ruínas do Afeganistão." - disse isto um dos atletas da equipa nacional de culturismo afegã.