terça-feira, maio 31, 2011

Da Renegociação da Dívida e Desobediência financeira - Boaventura de Sou...

quarta-feira, maio 25, 2011

Astor Piazzolla - Libertango

Jim Morrison & The Doors - A Feast Of Friends

terça-feira, maio 24, 2011

Três.

JANTARES DE QUARTA-FEIRA


Almoço, jantar, as mós a subir e descer umas vinte ou trinta vezes e goela abaixo. Não há muito a dizer, um acto social: matéria para alimentar as fornalhas da carcaça. Horários, interacção. Aqui, no terceiro andar que se elevava nove lanços de escadas acima da rua, estes eram jantares em que não havia uma agenda particular, não conspiravam: “Nós não somos aquele tipo especial de pessoas com potencialidades, quer dizer, motivados para alterar linhas de rumo; não passamos de quatro tipos que se juntam para cruzar receitas do Pantagruel com Keith Floyd” explicou um dia Tomás a um gajo da vereação da câmara – onde era remunerado por uma função entre assessor e ‘faz tudo para que a coisa não corra mal’, uma espécie de homem do lixo - que via naqueles manjares em quarteto uma actividade subversiva, incapaz de perceber a que ponto esse quarteto se tinha em má conta nos capítulos da diplomacia subterrânea. Numa aritmética dos valores capitais para assumir as rédeas da urbe, questão que por mais de uma vez lhes serviu para aclarar o palato entre o prato principal e a sobremesa, de uma coisa não tinham dúvidas: era vergonhoso que após anos a percorrer as plataformas da capital tivessem reunido tal inabilidade para se envolverem no andamento da engrenagem. Visto de fora dir-se-ia que tinham o que era preciso para pertencer a essa esfera onde se moldam as paisagens. Tinham tudo, tudo menos paciência. Ainda nos trintas (Joaquim andaria nos quarentas mas era coisa que ninguém queria saber), não tinham paciência, nem a paciência nem a motivação - eis. Eram aquele tipo de indivíduos que os sociólogos definem como peões com a função básica de sustentar a máquina, um lumpenproletariat das classes médias – diferente daquele que se aprende nos livros da primeira teoria social – um lumpenproletariat que finge as vitórias do dia, e por isso estavam bem, ou mal, era indiferente, andavam por ali camuflados entre gente a que se pode chamar cinzenta, gente que pela roupa, pela cara, pelo cabelo e pelos olhos têm uma aparência turva, cinza, como nos dias em que no céu não há nem tempestade nem sol, era o que lhes dizia a aritmética e não tinham motivos para proceder a alterações de rota num mundo ao qual nada exigiam e que em troca nada lhes pedia. Nada mais do que o indispensável era arrancado àquelas carcaças – foi sempre assim, até essa noite.

Para Tomás o dia começou a meio da manhã. Na praça do município passou horas a esgrimir neurónios com comunicados sobre relatórios económicos do banco central mas nunca chegou a pôr os olhos nos relatórios propriamente ditos, talvez por isso a frase possa ser e será seguramente mais correcta com uma ligeira troca na ordem das palavras:

passou a tarde a esgrimir neurónios com comunicados do banco central sobre relatórios económicos – um truque ranhoso mas cada vez mais habitual; fez uma pausa e foi sentar-se cinco minutos no pelourinho em frente do edifício-sede do executivo da cidade, fumou um cigarro contra todas as promessas da véspera e perdeu tempo a procurar um padrão na turba que se afadigava em peregrinações ao vagomestre de serviço: a entrada acelerada, a saída a passo, papéis na mão ou sacos para dentro dos quais deitavam os olhos de pé ou ajoelhados para melhor remexerem o interior, uma mão que hesita suspensa do antebraço, um ensaio de voltar para trás, reentrar no edifício, um pensamento a praguejar por todos os orifícios, a face que se toma de um rubor e o gesto abandonado quando logo após voltavam a sair, o passo a ganhar embalo, uma última espreitadela para os papéis, uma linha aproximada dos olhos, o nariz que encolhia até às pálpebras, e desistir, é desistir, porque aquilo era tudo o que podiam querer. E todos os dias era assim, voltou ao gabinete do vereador, respirou fundo e mergulhou até ao peito em papéis, voltou a respirar e afundou-se até ao queixo nos últimos indicadores da urbe, nada daquilo para que os cinco anos a caminhar para a escola de sociologia o tivessem preparado. Chegou a pensar que a vida pudesse ser outra coisa. Foram duas horas para sacar um texto insípido sem um único ponto de fuga, apenas capaz de o deprimir na exacta medida em que os cordeirinhos listados na taxação dos esgotos sentiriam crescer um falso conhecimento da contabilidade do município. Iluminados sobre os problemas que aí vinham e os que já aí estavam. Ninguém o preparou para ser aquilo, o muezzin que anuncia os versos da contabilidade. Pensava que a vida pudesse não ser triste. A mola real da vida, por que lhe repetia o pai tantas vezes isto? A mola real da vida eram meninos e meninas do papá a secarem o orçamento, sobrinhos, cunhados, sempre uma empresa à disposição, cartões de crédito numa roda-viva que ninguém controlava, estes e aquelas que todos os dias tinham agendadas idas aos paços do concelho para saírem com envelopes na carteira, sacos com mordomias que desdenhavam por acharem magras mas às quais se agarravam com força, gente que à noite, em noticiários amanhados à pressa, aparecia com o ar grave de quem entrega as energias à causa pública e mentia com uma capacidade inata, ludibriando a verdade com a convicção de um eleito. O pai nunca o chamou à parte para lhe explicar que a vida era isto, só aquele sinal de aviso atirado entre sorrisos: o dinheiro é a mola real da vida. Quando acabou a licenciatura de sociologia estava longe de imaginar que um dia acabaria sentado num gabinete de vereador a escrever sobre todas as coisas que passara a vida a contornar, sempre à distância, como quem atravessa um campo de cultivo nos arrabaldes de uma aldeia pequena e evita o monte de estrume na extrema do terreno. Quando o pai lhe telefonava logo após o almoço “boa tarde, amigo” e depois de lhe perguntar então estás trabalhando com uma espécie de gozo escondido no gerúndio arcaico e ele lhe respondia com um sim enfastiado e o pai voltava com um que falta de gosto lembrava-se sempre desse dia solitário em que desceu a avenida das universidades varrida pelo Sol frio de Inverno com um papel no bolso que o atestava doutor, foi uma manhã em que pôs fim ao percurso iniciado numa manhã longínqua numa escola pequena de dois pisos, eram quatro salas de aula e um recreio que separava o edifício rectangular da estrada, e que dava para esfolar os joelhos em jogatanas durante os intervalos, foi um caminho que lhe levou duas décadas, e duas décadas depois discutiu uma tese que durante meses lhe alimentou o instinto da dúvida, agora tão arredio que se admirava ter construído em tempos um espírito de tal modo crítico que só uma ideia incorrecta na conjugação gramatical lhe eriçava todos os neurónios de uma assentada. Vinte anos. Na manhã em que desceu aquela avenida pela última vez todos os sonhos se afundavam. Descia a avenida doutor e nunca se sentira tão só, perdido por ali abaixo onde antes passeou angústias académicas entre gajas e cervejas. Descia a avenida tomado por uma súbita tristeza - uma melancolia que se abatia como uma brisa quente contra o gelo de Fevereiro -, com a memória desse primeiro dia de escola, perdido num vai-e-vem entre as duas salas da primeira classe e uma senhora que era para ele velha e o recusou por três vezes mas a quem passaria a chamar de professora. Mas esta tarde, nesta quarta-feira, os pelos da nuca eriçaram-se de novo e o nariz voltou a vibrar-lhe quando passou de raspão por um despacho do gabinete do seu vereador, um despacho tardio, já com o casaco debaixo do braço e a segundos de abandonar o edifício. Leu as primeiras linhas quase à pressa e depois todo o texto em velocidade de cruzeiro. Algures, alguma coisa escapava à mecânica dos elementos. Supressão, o termo não soava bem, era um conceito que ali lhe soava a estranho e retiniu-lhe nos ouvidos, mas quis atribui-lo a um estagiário maçarico da equipa do vereador que tivesse arriscado pôr a jogo um léxico mais arrojado, pobre mas arrojado. Ainda a olhar de lado para a folha de papel agarrou na pasta enquanto mastigava a frase que juntava supressão não com postos de trabalho mas com trabalhadores: supressão de trabalhadores.

Quando entraram no carro, nem Andrés nem Tomás sabiam do que era a vida nos seus limites, dos compromissos vitais da sobrevivência, do sistema de predação que trazíamos connosco desde os primeiros dias em que um projecto de homem assentou os pés na terra de uma savana africana e levantou as mãos do chão, primeiro talvez com a postura desajeitada de um suricata, para depois erguer também os olhos no que culminaria numa caçada eterna e sem limites. Morus disse há uns anos dos homens que se se trata de conquistar novos territórios, todos os meios se lhes afiguram bons: nada os detém, nem o sagrado, nem o profano, nem o crime, nem o sangue. Não sabiam – àquela hora – ainda não sabiam nada sobre o que a vida também podia ser. Tudo era uma brincadeira de crianças grandes com dinheiro nos bolsos e uma chave para entrar em casa. Andrés e Tomás preparavam-se apenas para arrancar em direcção à Baixa. Pudessem rebobinar os acontecimentos do dia e teriam notado que Joaquim lhes ligara para os lembrar do jantar, com uma voz parda, quase de fundo, mas telefonou, logo pela manhã; pudessem eles rebobinar a vida e não estivessem tão absorvidos pelos nadas da tarde e haveriam de assentir que era estranho e o teriam mandado a algum sítio. Há anos que jantavam juntos em casa de Joaquim. Por quê lembrá-los?


* * *

Tomás entrou no carro e deixou-se cair no banco, com todos os oitenta quilos de uma assentada, enterrando-se na pele clara e gasta. Andrés está a informar Tomás vou tirar a capota mas ele torce o nariz e acena que não com a cabeça e murmura qualquer coisa “… frio”. Ouve, preciso deste ar húmido nas trombas – mas Tomás continua enterrado no banco de couro. Passa os dedos pelo queixo e coça as costas da mão nos pêlos ásperos. Olha para a barba no espelho. Uma velha vai à janela. Andrés, que acaba de desistir da ideia e bate com a porta da mala acena-lhe um adeus largo, abraçando a ambiguidade de que tanto gosta. Andrés gosta dessa ambiguidade, cultiva-a, traços que mantém desde que a universidade o obrigava a horas a fio de estações de autocarros. (Só, em momentos pródigos de cenas de ternura alheia, pousava a mochila e fazia a sua cena: voltava-se para trás e acenava para os autocarros que partiam, colhendo beijos entre a névoa de gasóleo queimado. Dos autocarros levantavam-se braços ligados pelas artérias a corações embalados em ponto morto e prestes a arrancar. Interessavam-lhe esses beijos que partiam das mãos em concha e que devolvia de olhos semi-brancos, gestos da perfeição, sem reverso, sem penas, um adeus lacrimoso que guardava por segundos, talvez rematado com um lenço branco a colher pérolas de saudade já insuportável.) Fechado o capítulo dos autocarros, dedica-se sempre que pode às janelas da capital. A pobre senhora gesticula a pequenos impulsos com a mão direita, enquanto se debruça e aconchega os óculos com a esquerda. Encarquilha a boca e o nariz, que conjugam um ponto de interrogação, e estica o pescoço, estica-se toda “mas… mas…” engelhada, estica-se sobre o parapeito mas entretanto já Andrés entra no carro e mete primeira com um sonoro adiós que retumba de parede a parede nos prédios que se enfrentam. Ligou o rádio. Baixinho, ouviram uns acordes de guitarras de play list, o que origina uma reacção pavloviana e um dedo a mudar de estação para a Radar. – Põe na Voxx, a esta hora na Radar são muito sorumbáticos – tentou Andrés, mas um gesto curto de Tomás, acompanhado da notícia o António Sérgio morreu a sair dos 97.8 fê-lo dar a aposta por perdida e já soavam os samplers de Neil Tolliday & Simon Mills quando começaram a rodar pela Defensores de Chaves, rua de afamadas putas sem interesse. E às vezes sem dentes. Subiram a Casal Ribeiro para o Saldanha e meteram pela Fontes Pereira de Melo abaixo. Sem dizer palavra.

Ao som dos Bent. António Sérgio morreu esta noite. Não fomos feitos para durar. A selva continua a ceifar-nos como tordos.

Subitamente, a quarta-feira fica quente. As avenidas que levam à Baixa pulsam de electricidade – sabe-se lá porquê - ainda com as luzes de Natal. Famílias inteiras enchem os passeios. “Leste o que disse o cabrão do vereador?”; um vereador do município declarara a um jornal qualquer coisa sobre o último estertor do estado social, foi este o termo que utilizou: estertor. “Li, o cabrão.” Eram duas almas penadas que percorriam agora a longa avenida em direcção aos Restauradores num roadster que se impunha antigo na carcaça corroída de tinta a estalar mas sem idade para ser um clássico. No stand o vendedor manhoso esticou a barriga para Andrés e atirou-lhe com um green very british. Respondeu com um passing-shot; verde azeitona encarquilhada, pode embrulhar, é para levar. Continuaram a descer a avenida escurecida pelo Sol ausente e acesa pelos milhares de pequenas luzinhas que se misturavam com o azul-da-prússia que donde estavam cobria o rio logo acima da iluminação dos armazéns nos terminais da doca. Já não era aquela luz quente, dos restos de Sol, que na capital, ao fim do dia, se embrulha até ao estômago, uma luz que só ali, quando a cidade se ausenta; era apenas outra luz. (Andrés:) Chateei-me com a Ana. Acho que isto não vai até ao casamento. (Tomás:) Já sabia. (Andrés:) Vou ter que falar com ela. (Tomás:) Chatearam-se porquê? (Andrés:) Sei lá, não me lembro. Nada mais foi dito, só os Bent continuaram a soar. Por um momento a avenida apagou-se e ficaram submersos na escuridão, um negro que chupava todas as forças e os deixou por segundos à deriva, até que desembocaram na Praça dos Restauradores.

Chegam a casa de Joaquim. Andrés, o único que ainda transmite: Tens aí a chave? – Tomás tinha a chave. Ter as chaves de casa uns dos outros era um elemento do domínio da modernidade mas também era coisa de quem não tinha mais ninguém. Com aquela chave na mão estavam investidos de um dia entrarem à pressa no quarto de uma certa casa para encontrarem o amigo sem vida e impedirem que o corpo em decomposição empestasse todo o prédio, o que seguramente tornaria os vizinhos irritadiços. E com razão. Subiram a pé, três andares, nove lanços, setentaeduas escadas. Andrés tocou três vezes e meteu a chave à porta. Antes que a pudesse rodar, Joaquim abriu sem um olá, boa noite ou entrem ou eia, nada. Voltou-lhes as costas, uma camisa de linho preto, amarrotada, na mão esquerda. Descalço, Crockett and Jones na direita, o equivalente a uma semana dos salários de qualquer um deles. Dos dois juntos. Joaquim era o playboy do grupo. Quase um metro e noventa, um daqueles tipos que quando chegam aos casamentos os querubins voltam-se das paredes e sopram as suas cornetas, um sedutor que passa mais tempo a comer brasas do que ração para o corpo. Talvez por isso fosse magro e musculado – não lhe faltavam oportunidades para queimar calorias. Ainda Tomás e Andrés não tinham dito “então?” e já lhes tinha virado as costas. (Andrés:) Tens uma mancha esquisita nas costas. (Joaquim, de mau humor:) Deve ser uma osculação. (Pára a meio do corredor, estica a omoplata para Andrés:) Vê, vê. (Andrés:) É uma osculação, é. E ri-se. Joaquim corta à esquerda para o quarto, eles seguiram para a direita rumo à sala. Jean Pierre acaba de se levantar do sofá, vem ao encontro deles: Ele está doido. Grande novidade.

- Então, o que é que se passa? – Perguntou Tomás – Estamos com o período, é?

- Vão dar uma volta – atirou Andrés, a caminho da cozinha e da colecção dos Cabernet Sauvignon franceses de Joaquim, que se cruzou com ele e entrava na sala para se sentar à mesa escura, ao fundo, posta com os quatro pratos, e calçava os sapatos castanho-escuro e apertava os atacadores. Faz um gesto vago com a mão “Tenho fome. Vamos jantar”.

Jean Pierre está há um minuto a mastigar sílabas que saem moídas: “Tenho fome, diz ele”. Tomás e Andrés olham JP. Tomás sério, Andrés quase a rir. “Não olhem assim para mim. Ele quer matar um homem” – geme baixinho Jean Pierre, para que ninguém o oiça, provocando uma gargalhada em Andrés, que parece reencontrar o caminho para a boa disposição. “Como assim?” perguntou enquanto trincava qualquer coisa. Joaquim levantou-se: Assim. Eles sabiam do que, com a motivação certa, o dono da casa era capaz, pelo que alguma verdade devia haver naquele ele quer matar um homem, mas não era coisa que quisessem para já elevar à categoria de assuntos importantes. Eu não – corrige Joaquim - nós. Eles eram um grupo de quatro tipos indiferentes que não aspirava a assumir fosse o que fosse; que manifestavam total inabilidade para se envolverem no andamento da engrenagem; aquele tipo de pessoas cinzentas na motivação e a quem nada era possível arrancar além do indispensável; por isso, este intróito que anunciava decisões graves apenas parecia perturbar JP. Raramente levavam alguma coisa a sério, pelo que os recém-chegados tinham como certo que o assunto deveria morrer por si.

Joaquim: Vamos jantar. Vou buscar o resto das coisas.

Jean Pierre começa a fazer uns barulhos estranhos, como se estivesse a ter um ataque de asma, mas na alma. - Ouve – gritou-lhe Joaquim – é escusado ficares assim, parece que estás em trabalho de parto. Andrés, põe qualquer coisa a tocar e desliga a merda das World Series, não sei o que vês nuns gajos a bater com uns paus numa bola pequenina. Tira essa merda.
Um aroma agradável passeia-se entre a cozinha e a sala e dá cor à neblina que se abate do lado de fora das janelas, o H maior, como se o mundo estivesse como nunca esteve, perfeitamente nos seus carris. Andrés está aos pinotes com o trip-hop mais antigo dos Massive. Tomás pegou nos talheres e nuns copos ocos, que logravam o prodígio de levar o líquido pé abaixo, enquanto Joaquim agarrava em duas travessas com peito de pato à pimenta e completava o malabarismo a endireitar na cabeça uma terrina de metal com salada de pimentos acabada de sair do frigorífico. - Já levas o vinho?, ri-se – Tomás vê-o de Carmen Miranda, ri e deixa sair um som que sim. Era um falso equilíbrio que impelia os movimentos entre a cozinha e a sala, entre o sofá e a mesa. “Agora vamos comer que eu estive duas horas na cozinha por vossa causa”. Os assuntos de JP eram tão frescos que Tomás e Andrés não tiveram qualquer problema em assinar de cruz e apesar do seu estado de inquietação acreditavam que – conheciam como ninguém a natureza de Joaquim – tudo não passava da exacerbação de um problema menor, um empolgamento que a mente frágil de Jean deixava escorregar para os esconsos de um baldio com um homem meio-morto a agarrar-se-lhes às biqueiras dos sapatos, uma geografia de sangue desenhada em areias claras. Eram tão raros os momentos em que se deixavam levar pelas formalidades da vida que não era menos do que uma certeza que a má disposição de JP estaria já exangue entre o prato principal e as aguardentes.

Nove e vinteecinco, toca o telemóvel de Jean Pierre.

- Oh merde, é do escritório.

- Não atendes – gritou-lhe Joaquim – dá-me essa merda.

Jean Pierre levantou-se: Vou atender.

- Foda-se, não atendes coisa nenhuma – Joaquim carrega com os olhos o “não atendes coisa nenhuma”. Jean Pierre continuava a olhar para o visor verde. O telemóvel calou-se. Era ele, tenho a certeza.

- Ele, quem? – quis saber Andrés, entretido com um amendoim.

- O gajo que ele quer matar – fez uma pausa curta. – O meu chefe.

Silêncio; procuram ordenar o pouco que foi dito; Joaquim – os olhos na parede oposta com prateleiras e livros e plantas, as plantas de Joaquim, um vaso com uma meia dúzia de folhagens raquíticas e amarelecidas que o bibliotecário insistia, de fé inabalável, regar a cada sete dias – sentenciou: Deviamos pensar nisso. Os quatro.

Andrés, com Cabernet Sauvignon a injectar as válvulas internas, irrompeu em nova gargalhada soluçante, abafando a canção dos Gus Gus que saía da Sony.

Deviamos pensar nisso. O quê, matá-lo? Os quatro? (Andrés ainda ensaiou Não chegas para ele? mas não lhe saiu) Os quatro. Que Joaquim era capaz de arrancar a vida de dentro de um gajo com as próprias mãos ninguém ali tinha dúvidas de que, com a motivação certa, era um cenário possível. Mas – todos? Os quatro? Os irmãos Dalton versão série b? Andrés ria, sem perceber como tudo mudara antes de arrancar a janta.

- Ouve – disse-lhe – eu não andei bem a tarde toda – volta a rir-se – agora queres que eu vá esganar um gajo que não conheço, de quem só ouvi falar. O que é isto?

Joaquim: Lembras-te daquele sórdido episódio da caneta? – virou-se para Jean Pierre – contaste-lhe? Vá lá, o Andrés quer saber coisas.

JP está próximo da miséria total, reúne forças, assente: Sim. Joaquim aproveita o balanço: Okay, então conta-lhes o que está a ser preparado lá na tua empresa. Conta-lhes como vai ser sanada a questão da contabilidade falida. E aproveita e diz-lhes que estás a ser empurrado pelo Rodrigues para assinares a certidão de óbito de um monte de desgraçados. (pausa) Conta-lhes tudo.

- Foda-se – na boca de Jean Pierre esta conjugação prenunciava cataclismos, a Terra deixava de rodar nos seus eixos. – Vou buscar uma preta. Estou quase a dormir com o vinho.

domingo, maio 22, 2011

Dois.

ANDRÉS

Rodou um pouco pela cidade a fazer tempo para passar por casa de Tomás. Mentiu a Ana, tinha mais do que tempo para o que fosse. Combinaram o jantar para as dez mas tinha arrancado do Restelo eram umas oitoemeia. Disse a Ana que tinha de se encontrar com Tomás mas não lhe disse que tinha todas aquelas horas. Só queria deixar para trás a moradia com vista para o Tejo. “Não fomos feitos para durar”. Esta ideia incómoda surgira-lhe pela manhã mas ardia-lhe ainda nos sentidos como um ferro em brasa enquanto conduzia, cigarro ao canto da boca, braço esquerdo de fora e mão direita no volante. A brisa fresca a entrar pela janela alterava-lhe o cabelo contra os olhos. Às noveemeia encontra-se com Tomás para rumarem a casa de Joaquim, onde jantam todas as quartas-feiras. Não fomos feitos para durar. Com uma mão no volante de pele cozida pelo Sol procurou esse momento, desde os primeiros minutos da alvorada, o momento catalisador da epifania com que os neurónios bailavam que nem doidos, um golpe aplicado com pezinhos de lã e que abria portas ao que lhe parecia a consciência última das coisas: uma frase talhada nas tábuas da lei primordial. Foi rolando pela cidade com o GPS interno em busca das coordenadas da fonte que jorrara o que poderia vir um dia a ser o seu próprio epitáfio (por muito que gostasse daquele “Eu bem vos disse que estava doente”), reviu o dia desde que se levantou, mas quase chegado a casa de Tomás não tinha um sinal sequer de oráculos ou artes de xamanismo. Parado num semáforo em frente à Praça de Touros vem-lhe à cabeça o pormenor, coisa insignificante, a frase surgiu-lhe na forma de uma tirada em inglês, we were not made to last, como uma deixa de filme bom com gente má. Pior, um ensinamento juvenil que se ouve numa canção em moda. À primeira vista aquilo era nada, soou-lhe como um verso que fica solto desses êxitos que se insinuam ano após ano nas ondas da rádio, um daqueles slogans que todos os verões se anunciam para os dias quentes. Uma explicação escassa para Andrés, que vinha de uma maratona de sexo e se sentia acabado. Aquelas palavras que se juntaram com a harmonia de uma frase de música para fagote a anunciar um requiem sofrido com batidas meladas eram, ouvidas a capella, uma sentença de morte que tomou para si próprio, ele que temia esconjurações do acaso que ajudam a germinar num homem prenúncios de catástrofe.

O dia montou-lhe o cenário ideal para despertar a desordem obsessiva que cada vez mais lhe tomava conta dos pequenos gestos – não gestos mas tiques que se esforçava por organizar num derradeiro e inglório esforço de controlo das singularidades do dia, como um funâmbulo maniqueísta -, o vórtice derradeiro que lhe sorvia as energias num prenúncio de caos. O caos que lhe minava a clarividência.

Para quem vive nesta fronteira, mortificado por três inglórios quilómetros em que se arrastou por lençóis de algodão agridoce, um ditame com as palavras certas não podia ser coisa desprovida de significado e via-o mais como uma artimanha capaz de fazer murchar orquídeas cuidadas a Perrier. Não fomos feitos para durar. Continua às voltas, deambula por trajectos desnecessários, inventados na hora, contorna rotundas verdes. Todo o dia com a escolta da mais esquerda das ideias. À mesa de trabalho, na revista de música para adolescentes onde encalhou há um par de anos, aplicou as calorias do dia em esquadrias perfeitas entre canetas e folhas e o teclado do computador e o monitor, mas estas foram tentativas que se desmoronavam nos azimutes do destino, incapazes de apaziguar a besta que lhe trauteava ao ouvido entre o martelo e a bigorna. Quando finalmente virou da António Maria do Bocage e começou a procurar um lugar para deixar o carro estava pálido, com as mãos húmidas. A frase formara-se já perfeita no seu cérebro, sem intervenção humana e ditada aos próprios neurónios. A ordem das palavras só por si bastava-lhe para saber que não se tratava de uma mera tautologia.

Ainda buscava o clic que lhe aliviasse a tensão quando pegou no telemóvel. Tom, estou aqui em baixo à tua espera. Sobe. Não quero, despacha-te. Tomás acabara de tomar banho mas ainda se ocupava com um pormenor da corrida dessa tarde: a tampa do esgoto. Deixar-se apanhar pelos alçapões da escória marcava o estado dos mecanismos da própria sobrevivência. Devia estar entre a criança que corre, tropeça, cai, levanta-se e não dá importância ao caso e o velho que teme as saliências do trajecto como ameaças terminais. Devia estar ali, a meio caminho, capaz por natureza de evitar os esconsos do trajecto, como quem desvia uma silva que tolhe o caminho a seguir à curva da estrada, um gesto rápido de cabeça, um golpe de coluna que abre de novo o horizonte limpo. Mas a experiência dessa tarde foi outra: caiu, hesitou a levantar-se, preocupa-se pela possibilidade de olvido na próxima vez que cruze os primeiros metros da 5 de Outubro. Colesterol aparte é cada vez mais perdido que se atira para as ruas, a precipitar o fim da corrida, cada vez mais perdido.

Abotoou as calças enquanto enfiava os pés nuns sapatos de vela de couro avermelhado comprados nos saldos. Sente dor nesse dedo que bateu na tampa mas não tem tempo para gelo. Quase mecanicamente descalça-se e muda para uns ténis em malha preta. Apertado o último botão das calças dá-se conta de que tinha perdido quilos a mais. E não tinha sido no jogging nocturno, muito menos debaixo de um dossel no Restelo. A vida, numa normalidade aparente, quase doentia, não lhe corria na medida do que era exibido pelos índices exactos. Apoiado no lavatório da casa de banho, os cremes com as letras desfocadas. Lê umas palavras. Desfocadas outra vez, aperta os dedos contra a louça branca, pressionado pelas buzinadelas de Andrés, raios Andrés, hesita ainda em desfazer a barba de quatro dias. Esquerda, direita, estica o queixo para cima. Os pêlos raros e cinzentos não iriam incomodar os amigos, não era por eles que vingaria na juventude eterna, que apesar dos trintaeseis anos lhe era ainda favorável quando de sorte se via entre meninas de liceu, coisas que lhe aconteciam e que sem necessidade de prodígios o podiam deitar de costas no calabouço da esquadra mais próxima. “Fuck it” – no que lhe saiu entre dentes num inglês ouvido e reouvido em cenas de filmes cabotinos e sem imaginação. Agarrou nos cremes e passou-os pela pele como se tivesse acabado de ceifar os restos do dia. “Que se fôda” – não conseguiu impedir-se de traduzir o que lhe ia na alma.

No carro, Andrés ainda congeminava contra a frase bem amanhada que o destino lhe colocara à frente. Quando buzinou uma última vez para o sexto frente não imaginava que horas depois perceberia perfeitamente que não fomos feitos para durar e um homem estava já a fazer o caminho para o cadafalso.

O tempo descera a neblina sobre as ruas, num manto de grão antigo, e os elementos perdiam a imperfeição diurna. Aquela era uma noite de quarta-feira que arrancava com uma dose de serenidade a tresandar a placebo por todos os poros. Sombras a disfarçar pedaços de tinta que estalavam num prédio, remendos da estrada que se tornavam pardos e uniformes com o resto do alcatrão, ali uma árvore escanzelada pelo dia mas que era, à luz dos candeeiros, uma magnífica silhueta espectral e um par de velhos que arrastavam os pés longe do Sol revelador e seguiam agora em perfeita sintonia com o entardecer dos relógios. São oblíquos os edifícios ao início da noite. Um cão que se adivinhava um monte de ossos mas que era envolto de caracóis platinados rodopiava no ar, entretido com uma borboleta. Longe que estavam os raios do último sol da tarde, a harmonia descia generosa sobre a vida. A harmonia com que podíamos contar todas as noites na medida de um H maior, um H falso como Judas, mas não deixando de ser uma harmonia superlativa, porque é o que temos, isso é tudo o que temos.

Quando Tomás apareceu à porta, Andrés estava enterrado até meio do banco, alavancado com um joelho no tablier, gotículas de melancolia escorrem no ar em volta a fazer dançar as luzes que se instalavam dos candeeiros. Andrés não se mexe. Vultos aparecem para desaparecer nas suas vidas ao virar da esquina, primeiro de frente, flanqueiam o carro, depois no retrovisor e a dobrar um edifício de cimento. Uma tristeza sem sentido, era uma tristeza que dilacerava por dentro. Foi à boca desta cena que Tomás surgiu, a acenar com um gesto abatido. Nada daquilo parecia certo a Andrés e uma angústia atou-lhe a ponta da vesícula ao duodeno a meio caminho da boca do estômago. Tomás não estava aprumado. A barba de dias não colhia as bênçãos da noite: sublinhava os olhos afundados abaixo da testa.

Aquele fim de dia era um mau começo, rebentava pelas costuras de maus augúrios, mas nada impediria que fosse celebrado mais um jantar de quarta-feira. Há anos que todas as quartas-feiras jantam em casa de Joaquim – só um acontecimento extraordinário determina que a meio da semana se encontrem dispersos por outras coordenadas. À mesa há-de aparecer Jean Pierre, esse ser benévolo e muitas das vezes amorfo, o director de pessoal louro que sonhou em garoto que era escritor, ser que apesar de benévolo e amorfo determinou a sequência de acontecimentos dispostos ainda antes de ser servido o peito de pato preparado por Joaquim. Feroz e implacável, Joaquim, o dono da mesa.

sábado, maio 21, 2011

Um.

TRÊS SEMANAS ANTES - TOMÁS CORRE PELA VIDA

Aqueci ligeiramente os músculos antes de sair do prédio. O átrio ao fundo das escadas tem um vaso de louça gigante com uma planta que de certeza está nos conhecimentos do Joaquim, apoiei os pés no rebordo e fiz uns alongamentos para não rebentar com as pernas nos primeiros metros. A porta está a fechar-se atrás de mim, escolho a música para a corrida, uma ninfeta com calças de cintura descaída e pernas compridas prepara-se para virar a esquina. Não te vires, não te vires. Isso. Desaparece no azimute da aresta de pedra suja do prédio da esquina e fantasio com Botticeli à mistura. A porta fecha-se com estrondo. Encaixo os óculos de lentes amarelas. Play. O Movement dos New Order está aqui à mão e há-de servir. O fim da tarde parece-me mais frio do que estava à espera. Tenho a impressão de que vou sentir o vento gelado na camisola suada lá mais para a frente. Antes de deixar para trás o edifício da câmara, quando encostei a porta do gabinete, pareceu-me outra a temperatura que entrava pela janela alta da minha sala, promessa que se rasgou assim que pus pé na rua, é verdade, mas ainda assim diferente desta humidade fria, quase asséptica. Aos primeiros acordes de Dreams Never End já estou em passo de corrida, um trote ligeiro, sempre atento a lesões antigas, dores que me lembram que estou vivo, a música dá-me um certo ânimo e começo a acelerar em direcção à sede da Caixa Geral de Depósitos, ânimo, änima, estamina acabada de descarregar nas veias enquanto escapava a um carro que não contava comigo a atravessar ali junto às bombas de gasolina, a música avança, já não posso voltar a casa, agora que contorno o edifício de pedra branca pela esquerda e começo a pedalar pela João XXI acima já só quero voltar a casa e perder-me seja com o que for mas não posso, estou a todo o gás entre vultos desfocados pelo vapor nas lentes, confiro no relógio que cheguei às 175 rotações, 175 bpm é o que me diz o leitor azulado, bpm para batidas por minuto, pobre coração, em breve estarei a descer, agarro-me a isso na parte final da subida, corro que nem um desgraçado, cruzo-me com um par unido pelas mãos que me olha nos olhos, através do amarelo das lentes, é isto sempre que me cruzo com alguém, olham-me nos olhos, do nariz para cima pareço uma drag queen mal amanhada, lamentei-o ainda antes de sair, no espelho ao lado da porta, só há uma saída para isto: seguir em frente, o cruzamento da João XXI com a Avenida de Roma é um problema, nos dias bons desço pelo passeio da direita junto da loja dos peixes, o bazar de roupas, do café, a evitar os carros que saem das garagens e a gente decente desta parte da cidade que sobe sobre calçada portuguesa, vigio o vermelho-verde-laranja-vermelho dos semáforos no cruzamento com a Avenida de Roma, encontrar o momento para atravessar sem diminuir a passada é em si uma ciência, a merda do mp3 encravou, vermelho, tudo parado, tento ganhar espaço entre os carros para seguir em direcção ao Areeiro, passo para o outro lado mas é uma fila interminável que enche a Avenida de Roma, carros a dez à hora, continuo pendurado nesta margem, numa berma de passeio na direcção do Júlio de Matos, é agora, enfio-me por uma brecha e faço um pequeno sprint até ao outro lado, estou outra vez nas 175 pulsações e queimo mais meia dúzia de bolinhas de colesterol, foi o colesterol que me atirou para isto a horas impróprias no início do Inverno, já sabe ou deixa de fumar ou deixa o café ou toma isto para o resto da vida, foi na medicina do trabalho, uma médica a acenar-me com uma lamela de comprimidos de Sinvastatina à frente do nariz, eu estava a abotoar a camisa e pouco ouvia, é uma das minhas habilidades, olhar nos olhos dos outros sem ouvir uma palavra do que me dizem, e vir de família com homens que morrem até aos cinquenta de válvulas do miocárdio entupidas, foi o que me disse, não foi?, não ajuda, sabe, são três factores de risco e tem que eliminar um, sei, ouça, enxerte-me aí noutra árvore genealógica que esta só me dá problemas e temos o problema resolvido, você é muito engraçado, mas olhe, diz-me já sentada atrás da secretária azul claro, pode fazer exercício, mas é dia-sim dia-não, sem desculpas, ainda que eu ache que não vai escapar a uma medicação vitalícia de estatinas, volta a acenar com a merda dos comprimidos que são capazes de derreter sangue, rins e fígado, tudo de uma assentada, acha? está enganada querida, isto caiu para metade com um ano de correrias a inalar escapes pelas artérias da nossa bela capital, estou a uns cinquenta metros da Rotunda do Areeiro e começam a doer-me as canelas, a corrida vai com uns míseros cinco minutos e era inevitável, as dores nas canelas tinham de chegar para só abalarem quando tiver acabado de contornar os muros do Técnico, mas estou a respirar bem, depois daqueles primeiros minutos com uma ninhada de gatos a entoar música minimal a meio caminho entre a traqueia e os pulmões estou a respirar bem, nem sei porque é que me preocupo com o colesterol, se não me preocupo com a vida, que importância é esta que a dos agentes da morte? não há prole, que eu saiba, ah! o colesterol como catalisador filosófico, a doutora não chegou a dizer nada sobre o colesterol como combustível vital, fonte vital, tudo o contrário do que lhe ensinaram a ela, ser robusto chegado das Índias via Moçambique, os compêndios ordenados por detrás da secretária azul claro, ordenados numa cristaleira de médico, amostras como bibelôs, são para a vida toda, nem que lhe pare um rim para a semana, começo a absorver as partículas de humidade que pairam do ar com leve fragrância a Galp, talvez Repsol, BP, definitivamente um toque francês, um toque que desencadeia rememorações de juventude, férias de Verão em Paris num Verão quente, a memória sem substância dos escapes franceses que produziam essa fragrância, um odor mais cosmopolita do que a gasolina com chumbo a que estava acostumado, ainda a respirar acanhamentos, resquícios dos anos antes da revolução, inspiro, uma duas três passadas, expiro, um dois três quatro, tiro o MP3 de dentro dos calções térmicos, a caixinha branca está húmida e a escapar-se-me entre os dedos, esteve a patinar durante duas músicas, salto para o Hymn, a direito e a toda a velocidade pela Almirante Reis abaixo para voltar a cortar logo de seguida à direita e entrar na Avenida Paris, cruzo-me com um miúdo enfezado que vai pela mão de uma mulher, pode ser avó ou mãe, avó e mãe, um pela mão do outro, apanham-me à saída dos estaleiros que escondem uma obra no passeio que não sei se vai abrir mais uma entrada de metro, apanham-me desprevenido, tudo se desvanece - a rua com esplanadas meio animadas pelos funcionários que acabam de descer dos escritórios, as árvores alinhadas e carros mal parados que põem outros carros a serpentear pelo meio da estrada - tudo se apaga com aquele pequeno pela mão, entro num canto esconso não sei onde: estão três bebés alinhados, são imagens que as televisões não passam à hora de jantar mas eu testemunhei-as um destes dias noite adentro, são três corpos pequenos postos juntos, um tem a cabeça ligada, parece que dormem mas não, há um homem que se aproxima daquele que tem a cabeça ligada, beija-o uma vez e outra, a cabeça move-se a cada toque dos lábios escuros do homem, nada mais responde no seu corpo, ouve-se allah uh akbar da porta onde se apertam árabes com os keffiyeh, pequenos dedos esticados das mãos, dos braços ao longo do corpo pequeno, já sem qualquer esforço para encontrar sentido nos bombardeamentos contra Gaza conformava-me há dois dias sentado frente à televisão com uma sandes de atum numa mão e um copo com cerveja Guinness na outra, não vi temíveis membros das brigadas palestinianas de al-Aqsa, do Hamas, nada daqueles milicianos que aprendem desde cedo a arte de lançar foguetes artesanais contra em direcção à terra prometida, não eram eles que se alinhavam no mármore branco, só os três bebés, conformo-me com esta repulsa pelo Estado herdeiro de Auschwitz-Birkenau, não espero nada de ninguém, os corpos estão alinhados em cima do que parecem recipientes de metal usados pelos pasteleiros para levar a massa ao forno, três corpos pequenos inertes vestidos de corres garridas, ou é talvez do sangue, repousados na chapa brilhante contra uma pedra de granito pardo, desligo a televisão e sinto-me na alma de um estropiado, terá a ver com um qualquer código de honra, o código da Cosa Nostra: apagar um adversário é não deixar ninguém para trás, fazem-no para libertar as crianças de vendettas futuras, pelo que chacinam famílias por atacado, por respeito, deve ser também essa a cartilha do Tsahal, matar a eito para desobrigar as proles palestinianas, é uma estranha idiossincrasia a que guia mancebos de todo o mundo à terra prometida para sopesarem os vizinhos na mira de uma Uzi, estou nisto de buscar as coordenadas da Torah e à minha frente já tenho a igreja da Praça de Londres, hebreus não pensem que me falta estofo para odiar as brigadas de shahids que vos levam as crianças, só que hoje não, falta-me a força, levanto os olhos para a cruz, passo a avenida com dificuldade, queria interrogar Deus mas tenho de me haver com os carros à minha esquerda, ardem-me as canelas, tenho de comprar outros ténis, de uma paragem de autocarro quatro mulheres espreitam-me e eu quero dizer-lhes queridas não tenho esperança nenhuma mas não há qualquer problema nisso, fixam-me, por momentos imagino-as a moverem os lábios como carpideiras, um autocarro aproxima-se, torcem os pescoços e desviam os olhos, não posso esconder o que me vai cá dentro, a igreja a desaparecer à minha direita, Adonai, Adonai

Do outro lado da cidade, neste preciso minuto, Andrés está em cima da noiva num terceiro quilómetro penoso, o terceiro quilómetro, foi a única coisa com espírito que lhe ouviu em anos: uma tarde anunciou que se juntava a Tomás nas corridas nocturnas pela cidade; podes fazer esses quilómetros em cima de mim, respondeu-lhe ela. Por isso o assessor esfalfa-se a solo pelas avenidas novas e ele está do outro lado da cidade, numa moradia do Restelo, no piso dos quartos, a transpirar como um velocista em cima do peito de Ana, está no terceiro quilómetro, já queimou uma caixa de preservativos mas só pensa em sair dali. Não pode mais. Desce pelo pescoço, não passa de um cão, põe a língua a correr os ossos do externo que sobe e desce como um fole fora de ordem, está encurralado no cheiro a sexo, vai à volta do umbigo, faltam uns centímetros, isto acaba-se, doem-lhe os maxilares, não pode parar, falta pouco, todo o sistema de veias a afluir às orelhas, ouve as batidas cadenciadas do próprio coração, esgotado, shuff - shuff - shuff - shuff - shuff - shuff - shuff - shuff - shuff - shuff – shuff, ela aperta-o ainda mais a cada espasmo entre as pernas, cada vez mais, ouve os gemidos longínquos mas é o sangue que chega cada vez mais claro cada vez mais forte cada vez mais sozinho, perdido entre a pernas dela, a pequena coquete que se abandona e o deixa cada vez mais sozinho, a noiva que neste êxtase está a deixar de o ser, com as coxas a estrangulá-lo, só pensa em livrar-se daquele abraço, sair dali, tenho de passar pelo Tomás, adeus Ana.

Adonai, estou por um fio, nas últimas semanas as escadas da igreja têm sido habitadas por um homem esfarrapado a quem à saída da homilia deve haver gente a contornar, olho para trás procuro com a vista ainda turva até o encontrar sentado no lajedo com as pernas cobertas por uma espécie de edredão fino rasgado meio reclinado sobre o cotovelo enquanto junta e separa e vira do avesso e sacode e depois dobra sacos de plástico e sacode também os cabelos como quem exorciza maus pensamentos ou adventos, está ali mesmo às portas do Senhor mas nunca o vi dar um passo igreja adentro ou gritar sanctuarium talvez de pouco lhe servisse e ele o saberá, fica-se deste lado da portada austera até que um dia tarde demais alguém ainda a descer do alto de um púlpito lhe diga que era para ele apenas que aquela porta pesada se entreabria sempre que multidões aflitas por contrição a transpunham

Não vás já, os meus pais chegam tarde, ainda temos tempo.

Não posso mais, percebe, não aguento.

Fica.

(Ana, não fomos feitos para durar. Não te posso dizer isto mas não aguento mais, fodi-te com tudo o que tinha e fiquei sem nada para te dar.) Desculpa, tenho de ir.

Mais um bocadinho.

(Mais o quê, não tenho o que tu queres.) Tenho de ir. (Não sabia exactamente o que lhe queria dizer.)

quem foi o animal que roubou aquelas três vidas, que com dedo determinado apertou o gatilho depois de mirar, meu deus não sou digno que entreis na minha morada mas dizei uma palavra e serei salvo, transpiro muito talvez seja do Redbull talvez de mim, ninguém me dá o braço corro em sentido contrário às mulheres distraídas que agora gritam para o condutor do autocarro que cerra os dentes antes de fechar as portas, os olhos negros brilham-lhe e arranca com uma felicidade que me faz estremecer, indiferente aos gestos abandonados das funcionárias ainda com as batas da empresa de limpezas e que estão a pé desde madrugada e estancam com as mãos nas ancas, não quero desistir mas quando entro na Avenida Manuel da Maia sinto que não posso mais sei que me basta virar à direita, estou a dois minutos de casa, transpiro transpiro demais, as imagens que um operador de câmara recolheu naquela cidade do antigo testamento escorrem-me dos olhos, tenho a vida turvada sinto-me outra vez aquele estropiado, quero voltar para casa estou perdido, Pol diz à mãe que já vou, quero voltar para casa quero pensar que é aquele vento que me apanha sempre ali vento frio que apesar dos óculos me ataca sempre ali do flanco direito quando varre a intersecção com a Avenida do México, os olhos húmidos é do vento, estou só comigo, porque é que minto? a verdade é que não sou suficientemente forte, o Sol já se foi, a música acelera eu com ela, deixo de me mover como uma sombra um taxista treina tangentes comigo mas era só para mim este sinal verde, que idades tinham os bebés, passei a Alameda, contorno o Técnico pela esquerda, continuo a empurrar-me contra todos os limites, três anos no máximo, morro, vai ser sempre a subir enquanto passo pelas meninas eslavas que iniciaram o turno das oito, estão ao ataque, inspiro-me com estas modelos de saias curtas e ataco também mas a subida daquele bocado penoso de rua que quando faço de carro me parece menos íngreme do que realmente é, nos auscultadores uma polifonia dos The Sound que me espicaça para os últimos vinte minutos, haverá banda mais maltratada? não admira que o Adrian Borland se tenha atirado para debaixo de um comboio, filha da mãe de subida que em tempos já chegou a obrigar-me a intercalar corrida com marcha para depois retomar na descida mas não hoje corro à força de ódios antigos, pulsação a 178, é agora que ganho forças nas pernas, acabo de contornar o Técnico já vejo o Pingo Doce, deixaram de me doer as canelas vai ser um passeio até ao Campo Pequeno mas estou moído, as pulsações baixaram para 140 ganho velocidade, poucos carros, os suburbanos estão encaminhados para duas horas de rodagem lenta até casa, a cidade é minha para fazer dela o que quiser, a esplanada do Galeto está sem turistas, atravesso a praça do Saldanha ao som de Silent Air continuo a saltar músicas you showed me that silence that hunts this troubled world, falta pouco, é só descer faço a 5 de Outubro a embaixada de Israel está por ali à esquerda, durante anos a procurar os indícios das doze tribos no genoma uma única peça entre milhões delas que me traduziam num descendente de cristãos novos um metro de nariz adunco matriz de comerciantes todos os apelidos os apelidos da família chegada e afastada uma geografia sefardita a pôr-me na linhagem do povo de D-us um marrano feito cristão-novo, anos a encontrar-me e agora isto, desconcentro-me estou perdido tropeço numa tampa de esgotos que consigo evitar três dias por semana, estou por terra tenho de controlar a respiração, levanto-me sacudo as palmas das mãos, inspirar uma duas três passadas, expirar um dois, a avenida não tem movimento e estou completamente acelerado, tenho de manter-me alerta - há tempos quase me vi debaixo de um carro na Miguel Bombarda porque pensava estar na João Crisóstomo que corre da esquerda para a direita e olhei para a esquerda à procura de carros quando a Miguel Bombarda corre da direita, a minha vida esteve para se cruzar com a chapa de um bólide -, continuo a transpirar mais do que quero mas estou leve, passo por uns almofadinhas tardios, pulsação a 145 enquanto passo embaixadas e ministérios à esquerda e à direita, Israel ficaste para trás mas sei que estás aí que queres tu Israel mostrar que matas bem um dia estarás só Israel, viro à direita para a Júlio Dinis e vejo no crescente do Campo Pequeno a meta das três milhas. O cronómetro diz-me que corri a cinco minutos o quilómetro, cruzo sobre a Avenida da República já em passo lento. Paro junto às fontes e faço-me aspergir abundantemente. Que idades tinham? Três, quatro, cinco? Povo escolhido, o caralho.

Sento-me num dos bancos de granito que ladeiam a água a nascer de uma grade de metal ao nível do chão, dói-me o pé direito, um aleijão que volta de quando em vez dos tempos em que me agarrava a kimonos como se fossem a última réstia de vida voltou hoje para me atormentar, desaperto os atacadores. Estico-me como posso e sinto-me a estalar, a caminho de casa vou a respirar em golfadas generosas com as minhas contas de oxigénio, inspiro, três passos, expiro, três passos. Ar pleno de uma vitalidade que na verdade já não existe, um dois três expira meu, expira antes que seja tarde demais. Dava tudo por um cigarro. Eu não sou isto. Não aguento, liberto um grito surdo, não há ninguém em volta. Eu não sou bom, não é para mim a aspersão das águas bentas, a purificação não é um fato à minha medida: a prova é que em duas horas estarei a decidir a vida de um homem que nem conheço. Antes de acabar esta quarta-feira de fins de Janeiro, antes de a noite acabar, estarei implicado numa irmandade que se vai atirar ao pescoço de um engenheiro e acabar-lhe com a vida, sem um frémito, com as mãos cálidas, acabar-lhe com a vida, uma vida reles, vão dizer-me, escondida entre qualidades que se adquirem nas melhores misturas de genes e são depois aperfeiçoadas em colégios caros de religiosas dos quais, nós, comuns mortais, apenas ouviremos falar. Essa vida vai estar nas minhas mãos. Como se isso fosse apenas um troço do caminho, um rumo como outro qualquer, em que me cruzarei com o destino de um engenheiro que uma tarde chegou à bifurcação que peneira os homens e a quem foram estendidas opções, mas ele pertence a essa espécie que não conhece a hesitação. Eu ainda não sabia como estava para acabar a noite, tanto quanto aquele homem não sabia que os caminhos bifurcados encerram a escolha da vida e - imagino - continuava a esconjurar-se com acções do dia, obrigações quotidianas que de certo modo fazem dele uma pessoa de bem. Estou à porta de casa e tudo é cansativo, a vidinha, irremediavelmente cansativa.

sexta-feira, maio 20, 2011

O COMPLEXO MALUVU E A VARIAÇÃO EMÍLIO

Zero.

JEAN ESTÁ PERDIDO


Jean Pierre foi engolido pela terra. Quarta-feira, dia de jantares a quatro, o néon do café em baixo apagou-se há mais de uma hora, o empregado de avental negro já ensaia danças em volta da vassoura, sacode a cinza do cigarro no montículo dos restos do dia, e o jovem louro director de pessoal tarda a sentar-se à mesa com os amigos. Vinteequatro horas sem saberem dele. Não era outro mas aquele o jantar em que era esperado. E ele sabia-o, mas não aparecia. Procuraram-no em casa, no condomínio perto do parlamento, ligaram para o gabinete na empresa. Andrés passou pelo ginásio mas só por sorte o apanharia. JP estará seguramente algures, mas não fazem ideia onde. Joaquim está inquieto, ensaia gestos bruscos. Teme que a fragilidade de Jean o torne vulnerável sabe lá a quê, há um manto que se abate sobre a capital e encontrá-lo é mais vital do que o ar que respiram.

Terça-feira, um odor a flores e a morte cheira-se do ar espesso e húmido, quatro da tarde, Jean Pierre é uma sombra da existência, arrasta os pés, devagar, atrás de umas trinta pessoas. São quatro muros altos em volta que o tolhem. Gente aqui e ali que encontra o passado de joelhos na terra, um par de mãos compõe lírios numa jarra enrugada de arabescos sem sentido, dedos que alisam o rosto numa foto oval. Os ciprestes altos curvam-se sobre a mancha negra que avança sem convicção, segue-os a meia dúzia de passos Jean Pierre, arrastado, perdido. Um odor a flores. De um lado e do outro do carreiro estreito, contidos pelas bermas esboroadas, há campas rasas, pequenos mausoléus que podem abrigar meia dúzia de familiares para se sentarem e rezar uns minutos aos seus, capelas salteadas por rectângulos de terra que acabou de ser remexida, sem nome, onde a história é recente. Retirada, mais à direita, uma campa assinalada com relva aparada, uma pedra numa das extremidades a juntar dois nomes eternidade fora. JP caminha atrás do caixão de um homem que até há dois dias era seu chefe e que semanas antes ele e os amigos se propuseram matar, sentença que havia de ser redentora mas não para eles. Mais do que experimentar a morte, queriam que o engenheiro Rodrigues soçobrasse na sua antecipação: que a soubesse. Sentir-lhe o cheiro e as formas, com tempo, pouco, mas tempo, dar por inúteis os atavios da organização podrida que nas ademais vezes o faziam um falcão aperaltado com ermenegildos zegnas à medida. Perceber o que é ser um miserável. Sentir-se por vagos minutos como um miserável. Despedir-se da vida nessa pele. Era também este o plano de matar um homem: colocar uma impressão no molde dos dias injustos e apagados. Era isso o que parecia quererem, mas em tudo prevalecia a sua fraqueza. A ausência de vontade. A inclinação para sublimar a vida nos gestos domésticos. Era um inútil em tudo o que não fosse lidar com contingentes de trabalhadores – massas indiferenciadas que nas suas mãos se revelavam unidades singulares, só nas suas mãos – o que o tornava entre todos os gestores a pedra de toque da organização. Mas era só ali, entre os muros da empresa, porque aquela pele deixava-a lá todos os dias, não tivesse os amigos e a vida seria uma longa tarde de domingo, quando a melancolia das horas vazias estende um abraço que asfixia os sonhos assim que supomos que poderiam tomar lugar. Uma tarde de domingo em que tudo soçobra numa astenia inexplicável.

Terça-feira, é uma tarde húmida, quatro e treze no relógio de pulso, mais uns minutos numa torre alta que se adianta no tempo acima dos muros do cemitério, Jean Pierre esforça-se, recua ao momento em que tudo começou, o memorando sobre uma certa lista entregue em mão pelo director, o engenheiro Rodrigues, talvez a determinação de Joaquim, talvez o último encontro com o engenheiro, mas é sempre a mesma fraqueza, a deixar-se ir com o coração a dizer que não. Para se deixar ficar. Continua a arrastar os pés um a seguir ao outro na vereda do cemitério, vai curvado por essa única certeza: a sua incapacidade para controlar as circunstâncias da matriz que determina os dias, porque disso ali estava a prova, um director-geral com o crânio esmagado a ser levado entre quatro tábuas numa tarde lacrimejante que não tinha chuva nem sol. Foi dele que recebeu a ordem derradeira, a proposta da infâmia, uma agonia que lhe ficou atravessada, e nem agora, vendo-o inerte, carregado em ombros até um buraco que já se via de longe, sentia qualquer sinal de alívio. Nem agora. Pelo contrário. Temia que nunca mais uma jornada fosse feita sob o pulsar do coração imaculado que foi o seu.

Não se deixa enganar pelos olhos. São escassos metros que o separam do horizontal Rodrigues, mas na realidade é um mundo inteiro. Entre ele e o engenheiro caminha a viúva, os olhos escondidos atrás de lentes negras que deixam ver apenas um terço do rosto, um chapéu preto de palha entrelaçada, uma das abas faz um serpenteado que roça o casacão carregado de luto. Mas era como se a dor não pudesse manchar a sofisticação. Quando supunha que enfim um sinal de que baixavam à condição humana, era aí que lhe diziam, era plantados na dor derradeira que lhe diziam intocáveis, somos intocáveis, o que é absorvido pelo jovem gestor como mais uma derrota, um sinal do quanto ele e os amigos tinham sido ingénuos, ignorantes de que havia latitudes que lhes era interdito trespassar. Logo após vão jovens e homens distintos de cabelos compostos e ar digno. Não vê as crianças do Rodrigues. Não vê o cão do Rodrigues, uma espécie de fuinha com pelo encaracolado, o que o acalma, não saberia o que fazer se o tivessem levado a esse último adeus ao engenheiro, que todas as noites o passeava pelas ruas desertas à volta do condomínio. À sua frente reconhece alguns directores da empresa e meia dúzia de funcionários do quadro. Ele seguia atrás só porque Joaquim insistiu que devia estar ali. É importante que vás, não queremos chatices agora.

Como se tivesse de afastar suspeitas. O dia em que foram dadas as notícias da morte do Rodrigues passou-o a vomitar. Começou logo pela manhãzinha, a vomitar sangue. Podia dizer-lhes isso: passei o dia a cuspir sangue para uma arrastadeira. E era verdade. Mas esse foi o dia que amanheceu com as televisões e a polícia a fazerem saber que um engenheiro do board da associação dos empresários havia sido violentamente atacado e morto por um bando de delinquentes. Por meia dúzia de tostões que tinha na carteira. Não queremos chatices agora.

JP era pouco mais do que um autómato de rosto macerado que arrastava um pé atrás do outro, a espreitar as nuvens altas que rondavam dos céus como abutres. A poucos metros um gaio persegue um lagarto que se refugia entre as lápides. Estava uma tarde que ia do cinzento ao sol brilhante alternadamente, num padrão quase matemático. Cheira a terra misturada com flores frescas. Aqui e além pensamentos sombrios levam-no a cerrar os punhos e a mastigar os próprios dentes, mas só ele, ali, sabe porquê. Teria o engenheiro rido dele no momento em que jazia já morto? Troçando da sua fraqueza? Seria isso possível? A inquietação tomou conta dele, sentia as cores a abandonarem-lhe a face. Chegam-lhe aos ouvidos os gemidos da viúva, o roçar dos pés no alcatrão esboroado, uma pazada ao longe, vislumbra terra que esvoaça ao lado de um saco com cal enquanto o coveiro dá os últimos retoques na sepultura, perde a noção do solo firme e apoia-se num anjo por cima de uma lápide de mármore brilhante, e o mármore devolve-lhe a imagem baça da tibieza com que suporta as provações da tarde. Maldito sejas, Joaquim, eu disse-te que não aguentava. “Jean Pierre, obrigado por ter vindo”, tem ali a viúva a agarrar-lhe o braço pelo cotovelo, volta-se, “Sei que ele tinha consideração por si, não imagina como é importante ter aqui aqueles que eram próximos do Rui”. Não imagina como é importante ter aqui aqueles que lhe eram mais próximos. Tinha algo para ele. A conversa dura apenas alguns segundos, sabe que deve passar pela casa dos Rodrigues. Com os olhos húmidos JP acena com a cabeça, sem sentido, e afasta-se. Tem um sabor metálico na boca, leva a mão ao bolso e cospe o sangue para um lenço de papel, faz um arco com os lábios e dobra a língua até ao palato, enrola a bola de pasto e volta a cuspir sangue que é vermelho, apesar de tudo é vermelho, e em breve se perde pelas ruas da capital. Capazes de esconder uma vida que está a falhar. Foi ainda com este espírito que apareceu duas horas depois das oito ao jantar do dia seguinte, quarta-feira, quando todos tinham já remexido a cidade em buscas desesperadas, para ouvir de Joaquim “então, pá?”. Em menos de duas semanas tudo estaria consumado.


Ian Curtis (1956-18 Maio 1980)


Das maiores influências do rinoceronte. Para o bem ou para o mal.

quarta-feira, maio 11, 2011

Dimitri descobre que o benfica não passou à final da Liga Europa

segunda-feira, maio 02, 2011



EU ÍA DIZER QUE ISTO ERA MONTAGEM, MAS NÃO PARECE SER O CASO