segunda-feira, dezembro 29, 2003

Onze.


Quantum mutatus ab illo!



O dia seguinte, à excepção das refeições, passei-o a tirar notas no diário. Isso levou-me algum tempo por causa das polaróides que acrescentei para ilustrar melhor o estado do meu estado. Fotografias de todos os ângulos. Cronemberg fotograma a fotograma. Era fantástico ver as fotografias assim espalhadas no chão da sala. Absolutamente natural, sem corantes nem conservantes. O que se tornava pecaminoso era o meu humor. Nem eu próprio o aguentava. Tentava controlar-me mas tudo o que conseguia era provocar esgares que me irritavam tanto como os gemidos histriónicos que me escapavam por entre os lábios e que eu sentia retorcerem-me a cara.

Ordenei as fotografias e colei-as num caderno de capas negras e duras acrescentando a data e uma descrição mais ou menos tosca. O que havia para ver estava à vista. Escrevi a data em letras de máquina e pus o caderno dentro de uma pasta: Face esquerda. Face direita. Frente. Legenda quase adequada - o sonho impossível de Tod Browning. O mundo encerra um número ilimitado de combinações. Desde a loucura até à loucura. Mas não era disso que se tratava aqui. Talvez com Gustav Mahler de comboio. No Irlanda-Mauritânia. Prados verdes. Passagem pela planície de Ampurdán com Dali e Gala a acenarem da casa de Port Ligat, ou Cadaqués, não me recordo onde os vi. Areias luminosas. O Sol a bater escaldante nas polaróides. Mas não aqui. Faltava acrescentar as notas. A descrição possível do improvável. O CD continuou. A Terceira no prato 1; o 'Langsam' à espera no 2. Seleccionei a função Repeat all. Ía ser assim a tarde toda. 'Bimm Bamm, Bimm Bamm...'. Se um dia me for, que me vá assim.

Voltei a olhar-me no espelho enquanto lavava as mãos. Confirmei, pela segunda vez, como eu, naquele momento, dependia mais do meu aspecto do que daquilo que era suposto ser capaz de fazer e para o qual, exclusivamente, me pagavam. Era mesmo assim, "Bimm Bamm, Bimm Bamm...".

Quando arrumei a pasta junto do computador, cheguei a pensar seriamente na causa daquilo. Seria inédito? Já teria ocorrido? Talvez a alguém tão escrupuloso quanto eu que ocultou a sua monstruosidade ao resto do mundo. Era-me quase impossível qualquer conjectura naquele momento. Que podia eu saber? Foi numa noite, com Dante, Borges e um desejo vil. Nada mais. Haveria ali o dom divino? Não quis pensar mais nisso.

Já com a noite perto da varanda comi uma lata de milho doce Heinz e bebi uma cerveja Guinness. Apenas os verdadeiros amantes Guinness a podem beber em casa. Os procedimentos devem ser precisos para não tornar a melhor cerveja do mundo numa mijoca preta sem vida. Enquanto lanchava, recebi um e-mail do escritório, depois um faxe e, por fim, uma mensagem no gravador. Tudo do dono da revista. O senhor director, editor e presidente que assinava documentos importantes com canetas feitas por medida. Talvez um dia vos conte a história. Não tenho qualquer simpatia por esse cabrão que todos os meses me põe um balúrdio no banco. Menos ainda depois do que aconteceu a Jean-Pierre, um velhote francês que trabalhava no departamento de segurança. Aturo-o por causa da filha, a Catarina, e porque me dá um certo gozo obrigá-lo a aturar-me a mim. Ele sabe-o mas é um animal e, sendo eu o Sr. Prof. Doutor, o menino-prodígio da casa, ainda não teve tempo para endireitar a espinha. Nessa tarde eu também estava sem tempo para ele. De qualquer forma, lembro-vos, era segunda-feira e eu tinha ainda vinte e quatro horas para entregar as provas, corrigidas e anotadas. As correcções, já eu, entretanto, as tinha feito, e as notas podiam muito bem sair em anexo, se bem que, nos livros que leio, as prefira em rodapé. É verdade, até eu tinha direito à preguiça em todas as frentes. A imobilidade total.

A imobilidade total. Curioso. Nunca chegou a passar-me pela cabeça. A esta hora até os senhores se devem ter já perguntado se eu não me preocupei com a possibilidade de morrer ‘daquilo’. Que não morri, é óbvio. Quanto a considerar a possibilidade de, bem, simplesmente não me ocorreu. Sentia-me mais um Quasímodo equipado com HB e Armani. Não. Nunca me ocorreu. Na altura em que dei conta do que se passava apenas me preocupou a minha imagem e depois já devia ser tarde demais para a coisa se tornar letal. E, no fundo, eu sentia-me bem. Já o disse e reafirmo-o, eu sentia-me bem. Preocupava-me mais como enfrentar a vida. Esta vida que se estendia à minha frente sem que eu tivesse movido um dedo por ela. Eu sou imortal. Esta era a minha maior angústia. Como suportar assim a eternidade.

Entretanto, outra Guinness. E outra, e várias preparadas ao mesmo tempo e bebidas ainda mais rapidamente. As latas amontoadas na mesa pequena ao pé da varanda. Esgotado o que tinham dentro, veio outra coisa. Se já viram uma lata Guinness devem ter reparado em dois números, 8º e 11,5%. Se já beberam Guinness depois de uma hora passada pelo frigorífico e vestida numa caneca grossa de vidro sabem o que esses números significam. Eu deixei de o saber meia hora depois. Novamente abertas as portas da percepção, voltei a sentir-me o senhor do mundo e despedi-me da gravidade física que me prendia ao chão. Os níveis de consciência clarificaram-se até ao absurdo e a realidade tornou-se complexa demais para que eu a pudesse suportar sozinho. Da caixa de discos saltou o vinil da família Stone e a dança começou. O Sr. Sly iluminou-me e deu-me energia suficiente para esmagar um elefante. Estava na altura de enfrentar os meus rins. Bexiga. Uretra, e por aí fora sempre a descer. Novamente - estava a tornar-se uma verdadeira obsessão - passei pelo espelho da casa de banho. Voltei a olhar-me olhos nos olhos.

O Sr. Sly tocava na sala. Não se pode dizer que tivesse sido um tipo bonito. Não na minha opinião de heterossexual com algum sentido de estética masculina. Provavelmente, estarei enganado. Mas estava ele na sala e eu, por acidente, de frente para o espelho. Bêbado. Completamente bêbado. Embriagado. Ébrio. Em suma, bêbado que nem um cacho. Como nunca, devo dizer-vos, senti o estado em que estava. E chorei. Chorei porque apenas então a minha alma se deu conta do corpo em que estava metida. Soube naquele momento. Já não era o eu racional mas uma qualquer parte oculta e vigilante que impunha a sua autoridade obscura e sem limites.

De novo, a garra afiada que não conhece contemplações e que recusa a análise antes de destilar o pânico frio e delirante veio cravar-se-me no peito. Como o soube naquele instante. Eu rumava sem norte e estava já perdido de toda a razão. A espiral era toda a descer e os gemidos na sala eram notícias da minha perdição. Arrastei-me para a sanita com a carapaça enfiada até ao pescoço e mijei tudo o que tinha para mijar, enquanto que quase tinha forças para chorar. Depois, não sei o que aconteceu. Sei que no dia seguinte acordei não na cama mas no sofá, enrolado num cobertor e numa toalha húmida, e sem o humor insuportável da tarde anterior; sei ainda que pela noite fora despachei uma garrafa de Porta dos Cavaleiros onde anotei no rótulo "Quantum mutatus ab illo!!!". De facto, como só então me dei conta.

PS - A novela crónica de uma escrita de há dez anos parece-me às vezes passada e custa-me a publicar. Mas eram os meus 25 anos e, como passei por eles, suponho que constituem um estrato da minha ossatura frágil e apanhada pelo reumático.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial