Oito.
Eu sou eu no espelho. Sou?
Nessa sexta-feira deitei-me cedo. Era quase dia. A minha vida tinha mudado completamente para algo que eu desconhecia e eu tinha plena consciência disso. Desde pequeno que as mudanças, qualquer tipo de mudança, me perturbam e aquilo, para mim, aos vinte e nove anos, apresentou-se-me como uma execução em lume brando. Foram sentimentos deste tipo que se deitaram ao meu lado nessa noite. O horror por aquilo em que me transformara e a certeza de muitas manhãs a acordar no inferno aniquilaram as poucas forças que recuperei no sofá. Foi um delírio próximo da vertigem que me tomou pelo braço antes de se enrolar à volta do pescoço e cravar-me as garras na espinha. As horas de desespero dessa tarde e o tempo que levei a adormecer imerso nas mais negras visões são algo que não tentarei sequer explicar-vos. Estaríamos a perder o nosso tempo com uma insípida versão dactilografada. Como iria aquilo acabar?
No sábado de manhã - the day after, portanto - acordei com o cabelo emaranhado em suor e particularmente inquieto. Não sabia o que era. Estava tomado por uma estranha inquietação à procura de encaixar algures no cérebro assim que deixasse de estar mal-acordado. As más notícias voam e o cérebro estava ali tão perto. Em dez segundos, no momento em que levei as mãos à cara, acordei para um pesadelo, o pesadelo que me punha a alma a leilão. E eu não dava nada por ela. A pata cortante e hipnótica do delírio já começava a trepar-me pelo pescoço e em breve quereria enterrar-se no meu cérebro. Era impossível fugir-lhe. Todas as hipóteses de tudo não passar de um mau sonho como tive às dezenas em miúdo ficaram-me entaladas entre os dedos e, então, voltei a temer pela minha sanidade mental.
Eu sou um tipo sensato. Tenho de ser: formei-me em ciências físicas e doutorei-me em filosofia sobre o "Esse est percipi" de Berkeley. Para verem como eu sou sensato, era minha intenção escrever sobre os dados imediatos da consciência de Bergson mas uma amnésia temporária levou-me a iniciar a pesquisa sobre o bispo irlandês. Até por acidente sou sensato. Eu tinha de tomar uma decisão e reagir ao incontornável, mesmo que a vertigem começasse já a tomar conta de mim.
Nove.
Erving Goffman tinha a sua razão
Pontualmente, comecei a observar o mais rigorosa e friamente possível tudo o que dizia respeito ao meu estado. Físico, uma vez que fazia parte dos propostos da minha inquirição o total alheamento de qualquer tipo de psicometria. Ainda hoje tenho a certeza de que essa via apenas me iria afastar da serenidade que eu necessitava então mais do que nunca. No fundo, eu estava bem. Quer dizer, antes estava bem. Ter conseguido o que consegui com o artigo, para mim, dizia-me tudo a esse respeito. Tinha conseguido escrever o que o cérebro me ditara, o que queria dizer que o meu cérebro estava lá. E em forma. Para que assim continuasse, deveria, pois, limitar-me à observação física.
Outra decisão importante havia também saído da forma. Tinha posto de parte a hipótese de recorrer a alguém. Mesmo aos meus melhores amigos a quem sempre considerara o último refúgio em tempos de agonia. Era como se uma mistura de vergonha e orgulho me impedissem de me revelar ao mundo naquele estado; como se não os pudesse expor àquele constrangimento; como se os devesse proteger daquela mácula. É curioso, eu podia ter acabado de assassinar uma criança no berço e, no entanto, não teria problemas em ir ali abaixo comprar batatas ou Luckies; cumprimentaria as pessoas com um sorriso, falaria sobre o tempo ou sobre os resultados dos jogos do fim-de-semana; e à saída, provavelmente ainda com um pouco de sangue seco por debaixo das unhas, desejaria educadamente um bom dia a toda a gente. E todos me responderiam com um delicado bom dia e ficariam a gabar o meu Pierre Cardin em lã e viscose. Mas não então. Não assim. O estigma físico vê-se demasiado. Vê-se na distância e eu não podia deixar que aquilo me marcasse de uma vez para sempre.
Não sem antes lutar por mim. Durante a semana seguinte, observar-me-ia ao espelho quatro vezes ao dia depois das refeições, mantendo um diário com todos os pormenores relevantes. Depois, e só então, se ao fim desses sete dias não sentisse qualquer motivo de alívio, procuraria Pol que é médico e meu amigo por ordem inversa de importância. Procurando-o, poria tudo nas suas mãos, o diário, a minha cabeça, a minha salvação, tudo. Tomadas estas decisões, seguiu-se o primeiro exame.
(Esta coisa de publicar neste blog um conto com 10 anos é às vezes frustrante e quase infantil) Até logo
Eu sou eu no espelho. Sou?
Nessa sexta-feira deitei-me cedo. Era quase dia. A minha vida tinha mudado completamente para algo que eu desconhecia e eu tinha plena consciência disso. Desde pequeno que as mudanças, qualquer tipo de mudança, me perturbam e aquilo, para mim, aos vinte e nove anos, apresentou-se-me como uma execução em lume brando. Foram sentimentos deste tipo que se deitaram ao meu lado nessa noite. O horror por aquilo em que me transformara e a certeza de muitas manhãs a acordar no inferno aniquilaram as poucas forças que recuperei no sofá. Foi um delírio próximo da vertigem que me tomou pelo braço antes de se enrolar à volta do pescoço e cravar-me as garras na espinha. As horas de desespero dessa tarde e o tempo que levei a adormecer imerso nas mais negras visões são algo que não tentarei sequer explicar-vos. Estaríamos a perder o nosso tempo com uma insípida versão dactilografada. Como iria aquilo acabar?
No sábado de manhã - the day after, portanto - acordei com o cabelo emaranhado em suor e particularmente inquieto. Não sabia o que era. Estava tomado por uma estranha inquietação à procura de encaixar algures no cérebro assim que deixasse de estar mal-acordado. As más notícias voam e o cérebro estava ali tão perto. Em dez segundos, no momento em que levei as mãos à cara, acordei para um pesadelo, o pesadelo que me punha a alma a leilão. E eu não dava nada por ela. A pata cortante e hipnótica do delírio já começava a trepar-me pelo pescoço e em breve quereria enterrar-se no meu cérebro. Era impossível fugir-lhe. Todas as hipóteses de tudo não passar de um mau sonho como tive às dezenas em miúdo ficaram-me entaladas entre os dedos e, então, voltei a temer pela minha sanidade mental.
Eu sou um tipo sensato. Tenho de ser: formei-me em ciências físicas e doutorei-me em filosofia sobre o "Esse est percipi" de Berkeley. Para verem como eu sou sensato, era minha intenção escrever sobre os dados imediatos da consciência de Bergson mas uma amnésia temporária levou-me a iniciar a pesquisa sobre o bispo irlandês. Até por acidente sou sensato. Eu tinha de tomar uma decisão e reagir ao incontornável, mesmo que a vertigem começasse já a tomar conta de mim.
Nove.
Erving Goffman tinha a sua razão
Pontualmente, comecei a observar o mais rigorosa e friamente possível tudo o que dizia respeito ao meu estado. Físico, uma vez que fazia parte dos propostos da minha inquirição o total alheamento de qualquer tipo de psicometria. Ainda hoje tenho a certeza de que essa via apenas me iria afastar da serenidade que eu necessitava então mais do que nunca. No fundo, eu estava bem. Quer dizer, antes estava bem. Ter conseguido o que consegui com o artigo, para mim, dizia-me tudo a esse respeito. Tinha conseguido escrever o que o cérebro me ditara, o que queria dizer que o meu cérebro estava lá. E em forma. Para que assim continuasse, deveria, pois, limitar-me à observação física.
Outra decisão importante havia também saído da forma. Tinha posto de parte a hipótese de recorrer a alguém. Mesmo aos meus melhores amigos a quem sempre considerara o último refúgio em tempos de agonia. Era como se uma mistura de vergonha e orgulho me impedissem de me revelar ao mundo naquele estado; como se não os pudesse expor àquele constrangimento; como se os devesse proteger daquela mácula. É curioso, eu podia ter acabado de assassinar uma criança no berço e, no entanto, não teria problemas em ir ali abaixo comprar batatas ou Luckies; cumprimentaria as pessoas com um sorriso, falaria sobre o tempo ou sobre os resultados dos jogos do fim-de-semana; e à saída, provavelmente ainda com um pouco de sangue seco por debaixo das unhas, desejaria educadamente um bom dia a toda a gente. E todos me responderiam com um delicado bom dia e ficariam a gabar o meu Pierre Cardin em lã e viscose. Mas não então. Não assim. O estigma físico vê-se demasiado. Vê-se na distância e eu não podia deixar que aquilo me marcasse de uma vez para sempre.
Não sem antes lutar por mim. Durante a semana seguinte, observar-me-ia ao espelho quatro vezes ao dia depois das refeições, mantendo um diário com todos os pormenores relevantes. Depois, e só então, se ao fim desses sete dias não sentisse qualquer motivo de alívio, procuraria Pol que é médico e meu amigo por ordem inversa de importância. Procurando-o, poria tudo nas suas mãos, o diário, a minha cabeça, a minha salvação, tudo. Tomadas estas decisões, seguiu-se o primeiro exame.
(Esta coisa de publicar neste blog um conto com 10 anos é às vezes frustrante e quase infantil) Até logo
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