segunda-feira, dezembro 22, 2003

Dez.


O exame



Nada, para mim, é mais fantástico e
inesperado do que a realidade.

F. Dostoievsky


O primeiro exame. No dia seguinte. Domingo, portanto. Estávamos em Abril e chovia lá fora. Abri a janela. Já não chovia há alguns meses. Eram nove da manhã. O ar cheirava a terra molhada. Ninguém nas ruas. As árvores em frente escorriam um verde escuro e o cheiro da terra atravessava a rua até às minhas narinas. Por um minuto voltei a jogar à bola, encharcado até aos ossos, com os joelhos esfolados e as luvas da minha mãe rasgadas na palma das mãos. Fui sempre o número 1. Como a Camus, dava-me gozo voar em direcção à bola. Viver de frente para este parque abre-me de vez em quando essa parte da memória e por isso escolhi esta casa. Para poder voltar a ser criança de vez em quando. Entretanto, o disco do Popiggy, como lhe chamamos entre os amigos, rodava no prato Technics ligado à Sony. Voltei para a sala com os olhos húmidos e o "Isolation" no ar. A varanda estava alagada e eu fui deixando atrás de mim um rasto lacrimante com terra à mistura. As minhas orquídeas rejubilavam com aquele banho de vida. Baixei o volume e liguei a televisão que passava resumos de futebol da Segunda Divisão turca. Já era mais do que a hora: o primeiro exame.

Para não tornar o procedimento mais doloroso do que já iria ser, e dada a minha sensibilidade quanto ao meu aspecto físico, aproveitei para me familiarizar com aquilo à medida que me barbeava. Era de mim que se tratava agora, pensei enquanto aquecia a toalha de turco. Sentei-me na tampa da sanita, deitei-me para trás e cobri a cara até aos olhos. Um minuto depois já sentia que os pêlos me acariciavam os dedos à medida que passava a mão pelo queixo. Concentrei-me neles ao máximo e apenas olhava de relance para a parte superior, o que conseguia a custo, semicerrando os olhos. Peguei no creme Basic e espalhei-o primeiro com os dedos, depois usando o pincel e água quente. Apoiei-me com ambas as mãos no lavatório e aguardei um pouco, com os olhos em baixo.

Por momentos, distrai-me com os ténis brancos que Isabel me deu há uns anos atrás, as calças de linho amareladas e, já no espelho, a camisola azul-escuro por cima da t-shirt do Benfica. Estava frio. Iniciei a delicada arte do escanhoado. Eis, então, a forma da coisa. Sem contemplações. Logo acima da linha do nariz, que se mantinha praticamente intacto, a pele tinha-se reproduzido em grande quantidade e ora parecia calejada em pequenos tumores ora caía em pregas sobrepostas. No meio, as lentes negras, perfeitamente encaixadas. Depois, virando-me de lado, tinha, até às orelhas, dois canais esculpidos com nervuras grossas à superfície, veias que latejavam em golfadas de sangue e também bordejados de pregas, estas, ligeiramente maiores; como eram em grande quantidade e estavam sobrepostas, quando a minha cabeça se movia abriam-se em forma de leque. A cor cinzenta era uniforme e espelhava bem o meu ânimo. Mas eu começava a habituar-me àquilo. O que me incomodava era a ausência de sobrancelhas. Quantos animais se podem gabar de possuir um bom par de sobrancelhas? Nunca tinha pensado nisso, mas o grande segredo da humanidade é que um par de sobrancelhas nos dá um aspecto mais humano; mesmo que nos falte tudo o resto.

Surpreendidos, meus senhores? Incrédulos? Não fiquem, a realidade dos tempos modernos supera a ficção. Eis o aspecto da situação. Eu começava a habituar-me àquilo, o que abria perspectivas mais animadoras para as minhas capacidades. Ao fim de vinte minutos, já escanhoado e tendo atingido os primeiros objectivos, reparei que, olhando com atenção, as lentes ultrapassavam a barreira da pele e, por detrás desta, tinha uma visão nítida dos dentes molares. Baixei os olhos - vou continuar a chamá-los assim - até ao peito e puxei a roupa para cima. Lá estava o coração, um músculo vermelho vivo em movimentos sincopados, manchado num matiz negro. Por essa altura já nada me surpreendia. O sangue fluía lentamente em golfadas que se repetiam no meu espírito vital. Aquele negro devia ser dos meus pecados. "Eu não tenho sido bom.", pensei. Mas também não tenho sido mau, não como a maioria. Nunca chateei ninguém. Eu não sou mau. Apenas... brando. A maior parte do tempo acho-me um génio. O resto do tempo, uma merda. Posso garantir-vos, se o meu coração estava assim, o dos outros devia estar muito pior. Como os meus pulmões depois de semanas consecutivas de trabalho e Luckies sem filtro. Deixei cair as camisolas.

Voltei a olhar-me de frente, olhos nos olhos, e estendi o braço para o armário. Agarrei a tesoura. Por momentos, meu deus. Que grande pecado. Seria a mutilação o caminho redentor? Para Ele foi, por todos nós. Dizem. Talvez por mim também. E Judas? Não o irmão de Tiago. O outro. Que missão ingrata. Agarrei a tesoura, alterei a rota da lâmina, cortei o plástico de uma das amostras CK que uma amiga costumava mandar-me e espalhei-a pela cara, queixo e pescoço. Ardeu-me. Tinha de lho dizer. Não, o sofrimento puro não é redenção. É o caminho fácil. E quem ganha com isso o que quer que seja? Não é que eu encare a coisa unicamente do ponto de vista da utilidade, mas o princípio, encarado assim, acaba por se perder entre as vergastadas e os gemidos. Dedicar os fins de tarde a um gato vadio, pena suspensa. Dormir com urtigas na cama, estadia no hospital. Abençoados os pobres de espírito. Não os estúpidos. Swedemborg disse-o perfeitamente a propósito de um pobre homem que ganhou o céu sem estar preparado para ele. Vão lá e vejam. Leiam como o desgraçado perdeu a vida na privação e na prece mecânica.

Desliguei as luzes pensando como humano que quase não era que as coisas nem sempre são tão más como parecem, "Como irá isto acabar?".



PS- Já agora, e se não nos voltarmos a ver até lá, bom Natal

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