Doze.
Ser um zero à direita. Sem vírgulas.
Tenho 29 anos. Doutorado aos vinte e cinco com uma tese sobre Berkeley. Solteiro. Amo os meus pais e eles não me amam apenas por ser o único filho que têm. O meu nome é Andrés Filip; a maior parte do tempo acho-me uma merda, o resto do tempo, um génio. Adoro mulheres, cerveja preta e Gustav Mahler. Apaixonei-me uma vez na vida mas tarde demais. Gosto de ajudar os outros e ainda pretendo um dia ser feliz. Eu - tudo o resto é acessório.
Eu. Duas semanas atrás. Sem tempo para o senhor director, pai de uma menina mimada que conseguia ser mais perversa do que ele; o senhor director que estimava os meus oitenta quilos a peso de ouro. Eu não precisava disso. Não devia precisar disso. São os confortáveis sucessos que enterram os homens. Hábitos terríveis que se cultivam como virtudes. Não. Fui enganado. Oitenta quilos e deixei que me empurrassem para trás. Enganado. Eu não era nada. Estes acontecimentos fantásticos mostravam-me isso mesmo. A vida deixava de me poupar ‘às coisas mais obscuras’.
Tinha acabado de pedir mantimentos para vários dias. Haviam-se acabado no dia anterior com as últimas caixas de cerveja Guinness. Desliguei o telefone e o computador. Agora, era de mim que se tratava. Não podia continuar a adiar o futuro que me restava ad aeternum, como uma representação nos poucos espelhos que me restavam. Pensei em ligar para os meus pais, mas a angústia que eu sabia que lhes iria causar tudo aquilo seria para mim ainda mais insuportável do que todas as desesperações que me haviam trespassado nos últimos dias. Era impensável. Como iria eu explicar-lhes tudo aquilo? Explicar-lhes que, subitamente, algo me fazia falhar uma vida já de si falhada. Ainda que não soubesse o quê.
Fiz a lista das minhas necessidades quase decalcada da anterior com duas ou três excepções; juntei-lhe também uma escova de dentes. Pedi que as coisas me fossem deixadas à porta com o código de pagamento da web que entretanto eu perdera. Eu não queria confrontos desnecessários.
Treze.
O artigo estava entregue
Dia 19. O artigo estava entregue. Apesar de tudo, o artigo estava entregue.
Algures a meio dessa terceira semana. Eu estava a ligar o modem para fazer qualquer coisa quando reparei numa folha a uns dois metros do faxe, debaixo da minha chaise-longue. Dizia apenas: ÓPTIMO, FANTÁSTICO, ATÉ SEGUNDA. Era por isto que eu gozava de toda a liberdade do mundo. Todos os meses me saía um óptimo, fantástico até segunda. Já devia estar ali desde o dia anterior. Era de Gustav, um publicitário espanhol que trabalhava no departamento de marketing e que na minha opinião percebia mais de literatura do que todo o conselho editorial da revista, consultores e demais "oculinhos" com aspecto de cerzideiras, sem ofensa para as cerzideiras. Pesava nisto a paixão ainda pura que ele tinha pelos livros. A mesma paixão que o levava a surripiar e ler os meus artigos antes dos ditos censores. Um tipo à maneira. Com umas camisas um bocado maricas, mas à maneira.
Passei o resto da semana a ver televisão, o que pode parecer-vos uma forma improcedente de lutar pela minha integridade intelectual, ou qualquer outro tipo de integridade. De facto, não é. E posso argumentar como os antigos romancistas, vejam: da mesma forma que o médico receita o repouso para o corpo cansado e não a actividade física, também o alheamento de uma fonte de preocupações constituirá melhor medicina do que a cisma, e por aí fora. Garanto-vos, a única coisa que me passava pela cabeça era ficar ali, em frente da televisão, a zappear o cérebro.
Quando não estava a ver televisão estava a dormir, a comer, no quarto de banho em frente ao espelho, vigiando-me, ou a viajar na net, alturas em que aproveitava para procurar casos semelhantes ao meu; esta última actividade dava-me grande prazer, é que, tendo-me ligado há poucos meses fiz já grandes amigos. Havia a Kate, de Little Rock, Arkansas, 1 metro e 70, 58 quilos, medida 36, loura e olhos azuis; eu continuo a desconfiar que é um homem de barba rija. Em Paris, estava o Eric, advogado, 35 anos. Costuma deliciar-nos com detalhes perversos que usa nas defesas. No início não nos era muito simpático, no entanto, um dia em que chegou de férias, não me recordo onde, contou-nos uma história por que passou e deixou-nos a todos, tal a emoção que nos causou, convictos de que tinha coração, apesar de tudo. Talvez mesmo igual ao nosso, com dois ventrículos e duas aurículas.
Obrigado aos meus dois únicos leitores pela paciência, até logo
Ser um zero à direita. Sem vírgulas.
Tenho 29 anos. Doutorado aos vinte e cinco com uma tese sobre Berkeley. Solteiro. Amo os meus pais e eles não me amam apenas por ser o único filho que têm. O meu nome é Andrés Filip; a maior parte do tempo acho-me uma merda, o resto do tempo, um génio. Adoro mulheres, cerveja preta e Gustav Mahler. Apaixonei-me uma vez na vida mas tarde demais. Gosto de ajudar os outros e ainda pretendo um dia ser feliz. Eu - tudo o resto é acessório.
Eu. Duas semanas atrás. Sem tempo para o senhor director, pai de uma menina mimada que conseguia ser mais perversa do que ele; o senhor director que estimava os meus oitenta quilos a peso de ouro. Eu não precisava disso. Não devia precisar disso. São os confortáveis sucessos que enterram os homens. Hábitos terríveis que se cultivam como virtudes. Não. Fui enganado. Oitenta quilos e deixei que me empurrassem para trás. Enganado. Eu não era nada. Estes acontecimentos fantásticos mostravam-me isso mesmo. A vida deixava de me poupar ‘às coisas mais obscuras’.
Tinha acabado de pedir mantimentos para vários dias. Haviam-se acabado no dia anterior com as últimas caixas de cerveja Guinness. Desliguei o telefone e o computador. Agora, era de mim que se tratava. Não podia continuar a adiar o futuro que me restava ad aeternum, como uma representação nos poucos espelhos que me restavam. Pensei em ligar para os meus pais, mas a angústia que eu sabia que lhes iria causar tudo aquilo seria para mim ainda mais insuportável do que todas as desesperações que me haviam trespassado nos últimos dias. Era impensável. Como iria eu explicar-lhes tudo aquilo? Explicar-lhes que, subitamente, algo me fazia falhar uma vida já de si falhada. Ainda que não soubesse o quê.
Fiz a lista das minhas necessidades quase decalcada da anterior com duas ou três excepções; juntei-lhe também uma escova de dentes. Pedi que as coisas me fossem deixadas à porta com o código de pagamento da web que entretanto eu perdera. Eu não queria confrontos desnecessários.
Treze.
O artigo estava entregue
Dia 19. O artigo estava entregue. Apesar de tudo, o artigo estava entregue.
Algures a meio dessa terceira semana. Eu estava a ligar o modem para fazer qualquer coisa quando reparei numa folha a uns dois metros do faxe, debaixo da minha chaise-longue. Dizia apenas: ÓPTIMO, FANTÁSTICO, ATÉ SEGUNDA. Era por isto que eu gozava de toda a liberdade do mundo. Todos os meses me saía um óptimo, fantástico até segunda. Já devia estar ali desde o dia anterior. Era de Gustav, um publicitário espanhol que trabalhava no departamento de marketing e que na minha opinião percebia mais de literatura do que todo o conselho editorial da revista, consultores e demais "oculinhos" com aspecto de cerzideiras, sem ofensa para as cerzideiras. Pesava nisto a paixão ainda pura que ele tinha pelos livros. A mesma paixão que o levava a surripiar e ler os meus artigos antes dos ditos censores. Um tipo à maneira. Com umas camisas um bocado maricas, mas à maneira.
Passei o resto da semana a ver televisão, o que pode parecer-vos uma forma improcedente de lutar pela minha integridade intelectual, ou qualquer outro tipo de integridade. De facto, não é. E posso argumentar como os antigos romancistas, vejam: da mesma forma que o médico receita o repouso para o corpo cansado e não a actividade física, também o alheamento de uma fonte de preocupações constituirá melhor medicina do que a cisma, e por aí fora. Garanto-vos, a única coisa que me passava pela cabeça era ficar ali, em frente da televisão, a zappear o cérebro.
Quando não estava a ver televisão estava a dormir, a comer, no quarto de banho em frente ao espelho, vigiando-me, ou a viajar na net, alturas em que aproveitava para procurar casos semelhantes ao meu; esta última actividade dava-me grande prazer, é que, tendo-me ligado há poucos meses fiz já grandes amigos. Havia a Kate, de Little Rock, Arkansas, 1 metro e 70, 58 quilos, medida 36, loura e olhos azuis; eu continuo a desconfiar que é um homem de barba rija. Em Paris, estava o Eric, advogado, 35 anos. Costuma deliciar-nos com detalhes perversos que usa nas defesas. No início não nos era muito simpático, no entanto, um dia em que chegou de férias, não me recordo onde, contou-nos uma história por que passou e deixou-nos a todos, tal a emoção que nos causou, convictos de que tinha coração, apesar de tudo. Talvez mesmo igual ao nosso, com dois ventrículos e duas aurículas.
Obrigado aos meus dois únicos leitores pela paciência, até logo
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