quarta-feira, janeiro 28, 2004

Blog is back

Voltei e ao ataque. Penitência: dada o meu ecletismo, assaz errado, em tudo, tendo a admirar figuras de vários quadrantes da política. É um erro, sei-o bem. Não se pode ser de esquerda e ansiar pela monarquia. Mas é assim. Não se pode ser de esquerda e ser contra o aborto. Não se pode ser contra o aborto e ser contra a prisão de mulheres que abortam. Mas eu sou assim. Tenho a mania de me pôr do lado do elo mais fraco mas ser severo, primeiro comigo, depois com os outros. Manias que não me levam nunca a querer impor nada a ninguém. Eu não sou um líder. Não de opinião. Sou um líder, mas apenas da minha consciência.

O que me leva ao seguinte. Apesar de um extremista - não, não é perigoso, não o (e)levemos a tanto -, João Pereira Coutinho por vezes diz o que eu acho que deve ser dito. Disse-o, apesar de mal, quanto às propinas. No entanto, João Pereira Coutinho tende a cometer invariavelmente o pecado que para o pensador é mortal. Afastar das suas análises factos que ponham em perigo o seu raciocínio.

Já o fez quanto ao regime de Saddam Hussein nas primeiras horas da guerra durante uma entrevista na TSF (na altura asseverava o que todos diziam ser uma incógnita, inclusive na Administração Bush: que Saddam tomava o pequeno-almoço com Bin Laden, i. é., a evidência de fortes relações entre o regime de Bagdad e a rede al Qaeda). Voltou a fazê-lo num artigo há duas semanas no Expresso (desta vez falou nas armas de destruição massiva que "irão ser" descobertas no Iraque e esqueceu-se de dizer o que Hans Blix disse: não há lá nada, não há lá nada - coisa que voltou a ser dita pela equipa de peritos dos Estados Unidos há umas semanas).

É verdade que JPC subiu na vida. Passou do Indy para o Expresso. Vamos lá ver se sobe noutras coisas.

Já agora, meu Grande Carlos Neves - cujo cérebro não é nada sedentário - obrigado pelo texto à minha filha. Eu não o mereço, ela sabes bem que sim.

Um abraço, até já

quinta-feira, janeiro 08, 2004

Vinte e seis.


O desenlace.



"(...) Enquanto isso tem lugar
em mim o advento do que
me define,
e o barro de que sou feito
coze por dentro."
Luís Quintais


Desenlace. Acabava de acender um cigarro, aproveitando para me reflectir no Zippo prateado que encontrei no meio das almofadas do sofá de pele preta quando me entra pela casa adentro Paulina. Quem é Paulina? Como pode Paulina entrar no desfecho da história? Estará o sr. Andrés a introduzir personagens-chave nas últimas páginas, coisas que ocultou propositadamente a nós, leitores, de forma a torná-las em trunfos decisivos num final que, dessa forma, nunca nos poderia passar pela cabeça? Estará este tipo a usar o truque mais reles dos escritores de policiais? Não, meus senhores. Primeiro, esta história não tem final; apenas a mim afectará e uma vez lidas as palavras "pelo menos por agora" nada mais poderá fazer por vós. E depois, esta história não tem a ver com personagens e mais não digo.

Quem é Paulina? Quem é esta delicada, dedicada e gorducha criatura que me entra pela casa adentro. Quem é esta velhota tão querida para mim que eu abraço agora com tanta força e faço rodopiar no ar antes de ela se agarrar às minhas bochechas perfeitamente barbeadas e untadas com bálsamo de reis? Paulina é a governanta dos meus pais e foi a minha ama até aos dezanove anos, até que a Universidade me arrancou das suas mãos sem idade. É verdade, só naquele momento me lembrei, eu não tinha telefonado aos meus pais no dia que era reservado para lhes telefonar, o meu telefone estava desligado grande parte do tempo e ninguém sabia nada de mim. (Como vêem, nada na manga. Provavelmente, já os senhores cerraram os punhos nas cadeiras, na esperança de que eu não faltasse ao compromisso filial. Compreendo a vossa preocupação mas faltei e fiquei em falta.)

O que sucedeu então foi muito simples. Os meus pais, preocupando-se comigo como só eles se preocupam, enviaram-me o seu anjo pessoal, Paulina. E lá veio ela, metida no primeiro voo - e como ela detesta aviões - acudir ao seu menino. Querida Paulina. Mais nova sessenta anos e casava-me hoje. Talvez ainda vá a tempo.

Paulina, casas comigo? Oh!, menino, deixe-se disso - e largou aquele agradável acorde de gargalhadas que me fazia voltar ao seu colo gordo e macio. - O que é que lhe aconteceu? Deixou-nos a todos tão ralados.
Ora, nada, querida, nada. Tive uns problemas com o último artigo.
- Mas nem telefonar, nem nada.
Abri muito os olhos e fiz beicinho. - Não foi por querer - eu voltava alegremente à minha infância. - Vou já telefonar-lhes.
- Não se preocupe, menino, eu já liguei a dizer que está tudo bem - fez uma pausa enquanto nos sentámos no sofá. - Mas não está, pois não?

Eu não disse nada mas sobressaltei-me. Não estaria ainda o meu caso a salvo? Haveria ainda algum indício que me tivesse escapado na minha fugaz passagem pelo espelho. Algo capaz de revelar o mais temível dos meus segredos?

- Quando fui ao quarto, de manhã, o menino não estava com bom aspecto, estava a dormir com os óculos de sol e quando lhe pus a mão na cara parecia arder em febre. Não o quis acordar mas venho agora das compras e aproveitei para lhe trazer Aspirinas. Pode ser uma dessas gripes de Verão. Nunca se sabe. - Eu ouvi tudo aquilo e depois pus-me a rir. Não estou com bom aspecto, então devo estar óptimo.
- De que é que o menino se está a rir?
Nada, meu anjo. Anda, vamos jantar que eu conto-te tudo. Deixa-me telefonar ao Pol. Lembras-te do Pol, não lembras? Hoje, vamos jantar os três. Vá, vai-te pôr bonita. - Liguei a Technics. - Tenho aqui um disco dum senhor que tu gostas muito.
- Oh!, o Fausto. Que bom.

Conferi a conta bancária mais uma vez. Aqueles tipos não falham. Entretanto, liguei para a Editora e deixei o seguinte recado: "Está cá a Paulina. Diz que não estou com bom aspecto. Preciso de três dias. Adeus". Meia hora depois, último dia daquilo, eu pegava na mão de Paulina e descíamos as escadas. No rés-do-chão voltei a cabeça na direcção da porta ao fundo e imaginei, com o cérebro meio encolhido e o coração apertado, um velho a preparar o seu jantar. Sem culpas. Com toda a dignidade do mundo. Chegámos à rua.

Estávamos a entrar no Verão. Decididamente. Não havia nada a fazer. O Sol, já a meio gás, despia-nos e contornava-nos os corpos e as faces acendiam-se em tons dourados. Estamos agora a dar a volta ao parque em direcção aos táxis. A luz continuou a ferir-me de todas as direcções. Assomou primeiro através das esquinas e das fachadas altas dos prédios e, depois, quando no meu passo de pessoa de bem condicionado pela idade de Paulina passávamos a ponte da Rua Equenot, cercou-me os sentidos e invadiu-me até às entranhas. Até às entranhas, meus senhores, sem truques linguísticos. Senti-a na boca e nas narinas, para depois se instalar, cálida e quente, no meu estômago vazio. Com um ritmo descuidado permiti que entrasse e saísse dos pulmões fartos do pó da casa. Tudo era magnífico e purificador e Paulina sorria para mim, agarrada ao meu braço. Eu seduzia a luz e o ar à minha volta tinha o magnetismo da angústia esgotada nas últimas semanas. O ar que eu movia comigo era condicionado pela ressurreição da própria vida.

Saímos do táxi à porta do prédio onde vivia o Pol. Pouco depois ele sugeria que apanhássemos outro táxi. Disse-lhe que não. Que tenia ganas de caminar. Na altura, isso era, para mim, a suprema libertação. Andar às voltas pela cidade até ficar farto. Paulina não se importou. Tomei-lhe o braço à minha direita e fiz o mesmo com Pol à minha esquerda. Começámos a descer a Calçada do Poço dos Negros. A tarde estava agradável. Era ainda aquela luz que apenas a minha cidade tem. Parecida com a luz tardia da rua onde ainda estão as pedras da minha infância.

Grupos de pessoas e famílias inteiras caminhavam na direcção de um centro comercial que abrira durante a minha quarentena. Estas coisas nascem como cogumelos. Seguimos os três, abraçados, tagarelando alegremente contra a multidão, em sentido oposto à grande turba. Era já o fim do dia com o meu Sol favorito a anunciar o Verão mais quente dos últimos anos. O Pol perguntou-me:
- O que era aquela treta da cortisona? Já estás bem?
Não, ainda não estou bem, mas um destes dias ainda vou ser feliz. Claro, ou se é feliz ou não se é nada.




Vinte e sete.


O Sol conduz-nos pelas ruas



Ao dobrarmos a esquina da 17 com a Dom Carlos, Paulina perdeu-se-me do braço por um momento. Ao passar a mão pelo cabelo, os dedos roçaram ao de leve a testa e um calafrio arrefeceu-me os pulmões e dilataram-se-me as narinas. Acima do sobrolho esquerdo a pele estava dura e áspera. Olhei-me nos vidros de um carro e as veias nas têmporas encheram-se de pânico. Compus a gravata e fechei o casaco. O Sol varria a avenida e a luz era de sábado de manhã. Eu não podia querer que tudo não passasse de um sonho. Estou calmo. Olho em volta. Isto é a minha vida. A cidade não me vira as costas. Quem me passa na rua, passa, passa - apenas. Paulina e Pol trocam um abraço. Estamos a chegar à esplanada do Papa-Açorda. Recupero-me. Estou a racionalizar as coisas. Estou a traçar o mapa da minha vida para os próximos vinte anos, aproveito e abraço os meus fantasmas mais próximos. Volto a tocar no sobrolho. Nada me diz que eu deva desistir, que eu deva iludir o desafio. Do que eu não era agora sou isto. A Paulina toma-me o braço.

Ter medo é bom. Faz-nos correr. Não são as garras de combates antigos marcadas no dorso o que teme a presa; é a imagem do predador que a mantém alerta e viva. Não, não é o sonho, nem o episódio, é a adrenalina que corre nos limites esconsos dos dias sós.

Estou a sentar-me com um despropositado brilho nos olhos. Isto vai ser para sempre. Para me obrigar aos dias. A vida não é bela, quem disse o contrário? Temos luta. Pol olha-me e sorri. Duas pequenas na mesa do canto. Às 5:00 horas. Escrevo 10 num guardanapo e levanto-o como os júris dos concursos. Paulina reprova. O Sol abraça-me como se fosse tudo o que eu precisasse até voltar, numa hora destas, a sentir uma pontada no peito, e eu volto a iluminar-me com um ar sedutor, o sobrolho franzido à Erroll Flynn. O Sol não me abandona para já e sem que o Pol me pergunte nada eu digo-lhe, enquanto pedimos o melhor de uma reserva de trincadeira, "Ou se é feliz ou não se é nada". Pelo menos, por agora.

- Fim -

PS - Agora vou ausentar-me uns dias. Até já

quarta-feira, janeiro 07, 2004

DIAS NÃO SÃO DIAS, MAS COMO VOU AUSENTAR-ME, CÁ VÃO MAIS DOIS CAPÍTULOS

Vinte e quatro.


O desenlace?



O desenlace. Acabava de pousar a garrafa de Luso. Os óculos caíram no lavatório com um ruído seco, gordurosos e corroídos, com bocados de pele agarrados, ao lado dos destroços das refeições dos últimos dias. Levei as mãos à cara. Sob o tacto dos meus dedos a pele era de novo macia e lisa. Senti também as sobrancelhas. Seria assim? Eu era eu, inteiro, de novo? Olhei de relance para os vidros da janela que dava para a varanda. Era eu. Nada daquilo a que me vinha habituando há algumas semanas - como vos disse, qualquer coisa como um Quasimodo especializado em literatura, cerveja preta e solidão.

Tudo me pareceu então tão fantástico que apenas o artigo me testemunhava os insólitos acontecimentos das três últimas semanas. Nada teria acontecido. Eu estava de ressaca e Bloody dormia num quarto de hospital ao lado da mãe. Nada teria acontecido se as angústias do último mês não me tivessem ressuscitado de uma vida morna que eu apenas julgava infeliz. Com um bom banho eu estava pronto para reentrar no grande jogo. Voltei a sentar-me no sofá de couro preto, mas com uma disposição diferente.

Tudo tinha ainda acabado de acontecer, de forma tão rápida e inesperada como o episódio que provocou todo o desenrolar desta história mas, entretanto, já havia ideias que se ordenavam no meu cérebro, sentimentos que me enchiam o coração. A vida era minha de novo e eu nunca mais a veria da mesma forma. Havia uma força vital no ar e era a minha. Era tão estranho sentir-me assim agora como há umas semanas atrás eu sentira o estigma da morte em vida; que esse estigma se apoderara de mim. No fundo, uma coisa e outra eram motivo de riso e de lágrimas. Uma coisa e outra. E agora? Qual era, agora, a reacção própria? Era de mim que se tratava. Não havia reacção. Eu era eu. O velho eu de vinte e nove anos. Seria assim? Corri para a casa-de-banho.

Ali estava eu. Poderia agora voltar a dar-me ao luxo de não me reconhecer no espelho, de me achar um estranho que sabia ser eu. Uma lágrima humedeceu-me os plhos mas não chegou a cair. Depois de tudo sentia uma leveza estranha. Quase que de novo uma não-existência. Mas eu sabia que não voltaria a ser assim. Pus água a correr. Despi o pijama. Abri a arca dos tesouros e procurei o Blue Lines - era assim que eu me sentia. A Sony na sala repetia-me be thankfull for what you've got. Era assim que eu me sentia. Be thankfull for what you’ve got.

Voltei a passar em frente do espelho favorito dos meus olhos. Podia dizê-lo com absoluta certeza, agora, dos meus olhos. Eu estava perfeito. Virei-me de lado. Esquerdo. Direito. Perfeito. Poderia tudo não ter passado de um sonho? God bless cortisona. O meu anjo da guarda não dorme. Ele sabe do que eu preciso, mesmo antes de eu o sonhar. Enfiei-me na banheira. Deixei-me ir até à linha dos olhos, depois totalmente e sustive a respiração.




Vinte e cinco.


Bungee Jumping, um veredicto como outro qualquer



Porquê o fascínio por coisas que não estão inscritas no nosso corpo? Porque estão escritas na nossa natureza. Não é a descida vertiginosa do paraquedista o que o fascina. É a possibilidade de o paraquedas não abrir o que o leva a saltar. E se não abrir, tanto pior. Mas, e se não abrir e se não morrer? Tanto melhor. Por decreto divino, enganámos a morte. Somos necessários. Há um propósito para as duzentas mil gerações que cruzaram os nossos genes. O Sr. Sax que o diga. Já não somos nós, somos a essência da criação.

O Bungee Jumping é a versão soft e cosmopolita dessa luta entre o espírito e as leis da biofísica. A ideia de que se as cordas e os elásticos nos aguentarem a alma iremos para casa com o propósito. Um propósito simples, o de viver depois de enganar a morte e ficar cá e contar. Nada disto tem a ver com diversão.

Esta versão soft era a versão soft do que eu tinha passado. Eu também sobrevivi a isto quando o problema era exactamente não ter morrido. E inteiro. Com menos dez quilos. Foi aqui que eu soube que o futuro existia também para mim. Agora era eu que devia esperar alguma coisa da vida. Talvez a vida esperasse alguma coisa do Andrés Filip, o jovem descomprometido que estava agora disposto a pôr um pouco de alma nos dias que se avizinhavam.

O oxigénio nos pulmões começou a faltar-me e eu não quis mais jogos com o destino. Pus a cabeça de fora e devorei todo o ar que consegui. Depois, comecei a rir-me às gargalhadas enquanto o Horace Andy falava da monogamia. Não podia deixar de me rir como um louco ao pensar nas minhas primeiras agonias. Estive assim até entrar o Tricky Kid.

Fiz a barba e enchi-me de Hugo Boss Balsam After Shave entre o pescoço e a testa. Não me cansava de olhar para mim. O meu pénis recomeçava a contemplar as possibilidades mais perversas. Escondi-o dentro das calças do meu melhor Canali. Liguei o modem e conferi a conta bancária. Os tipos da editora que se ocupam das finanças não falham.

Passei pela janela. As minhas capacidades ópticas tinham desaparecido mas, por outro lado, já não tinha dúvidas nem era consumido por aquela angústia quieta e aninhada no mais fundo de mim mesmo. Também ela agora podia repousar até que o final do século voltasse a desiludir-me. Mas agora não, eu não tinha dúvidas. O parque estava deserto.


PS - Para amanhã prometo o fim. até então
Vinte e dois.


Pol...



Faltam três dias para tudo acabar. Estou sentado no chão encostado ao sofá de pele negra, tenho um e-mail de Pol nas mão e tento ordenar as ideias. Havia uma lógica simples em tudo o que acontecera e eu tentava limpar os espinhos à rosa que o destino me enviara. O aquilo que me afectara, segundo Pol, autoridade científica, era idêntico às descrições de sintomas dermatológicos de antigos guarda-florestais provocados por uma seiva que se encontrava em determinadas espécies de plantas; eu acabava de receber um telefonema de F. e o marido dela, o mesmo que me acertara no olho, acabava de morrer com um corte na mão que resultou "em coisa incerta". A mão que me acertou no olho era, muito provavelmente, a mão onde começara a coisa incerta. Pois bem, mais incerto do que eu não devia existir ao cimo da Terra. Pol falava ainda de cortisona e de me ter batido à porta havia uns dias. Não perdi mais tempo com ilustrações psico-esotéricas.

Liguei o número do consultório, falei com ele, pedi-lhe cortisona e não lhe respondi a nenhuma pergunta. Disse-lhe que com sorte ainda jantávamos nessa semana. A cortisona chegou-me três quartos de hora depois num ritual que se tornava cansativo e quase impraticável à luz do dia. Injecções e comprimidos. Comecei a tomá-la de imediato.

O maior problema, então, foi o da escolha. Injecções ou comprimidos. Depo-Medrol ou Medrol. Eu apostava tudo no segundo, mas a literatura inclusa empurrava-me para o primeiro. É óbvio, até para leigos como eu, que uma injecção é mais rápida, mais eficaz, mais tudo. Mas também era mais do que óbvio para mim que não gosto de objectos de metal introduzidos no meu corpo, ainda que por breves segundos - o que nem era obrigatoriamente certo no caso da cortisona, no folheto que vinha com as ampolas só faltava dizerem "Injecção a ministrar a dois milímetros por hora, não se brinca com os corticosteróides". Havia ali mais literatura impressa do que na maior parte dos contos de Borges. Aquilo devia dar que pensar ao comum dos mortais mas não assustava o ex libris das coisas incertas.

Desembrulhei todos os instrumentos de tortura e enchi a seringa. Depois, retirei a agulha, fui sentar-me no sofá, segurei um espelho entre os joelhos, arreganhei os dentes e espetei-a no meio da testa. Quer dizer, tentei. Tentei, mas tudo o que consegui foi dobrá-la como se fosse uma palhinha de plástico. Entrou uns dois centímetros, dobrou e quase partiu. Rangi os dentes e soltei um gemido; uma reacção psicológica já que, apesar de não gostar de intrusões metálicas no meu organismo, foi com alívio que verifiquei que a agulha não me provocou qualquer tipo de sensibilidade. Para dizer melhor isto que estou a dizer, posso garantir-vos que não senti absolutamente nada.

Como não conseguia arrancar a agulha retorcida com as mãos, fui à cozinha, procurei numa gaveta ao pé do forno, tirei um alicate, voltei a segurar o espelho entre os joelhos e, com uma calma de morte, puxei o corno em miniatura que arrastou consigo um líquido denso de cor amarela-esverdeada. Por esta altura já nada me surpreendia. Mas isso, os senhores já o sabem. À segunda agi com a convicção de quem sabe o que está a fazer. Foi assim, o ritual que repetiria nos dias seguintes depois do pequeno-almoço e lanche: retirei o ar como se vê fazerem nos filmes, com uma pequena ejaculação aquosa que eu esperava não fosse estéril; como não sentia qualquer dor apliquei a agulha já com a seringa; peguei-lhe pela base entre o polegar e o indicador, onde esta se une com a seringa, segurando a seringa entre os outros dedos e a palma da mão e fiz pressão, devagar, até a agulha começar a desaparecer no meio das lentes. Dado que a minha qualificação bio-genética continuava a dar-me como um animal semi-emocional não consegui evitar um pequeno gemido. Os primeiros milímetros acabariam sempre por ser os mais duros porque era à superfície que a pele estava mais calejada. Depois de a agulha ter desaparecido totalmente pressionei o êmbolo devagar e quando este chegou ao fim puxei a agulha para fora. No mesmo ritmo cauteloso.

Abençoada cortisona. Lamento muito por todos os sofredores das mais diversas maleitas que tenham morrido antes de 1968. Logo no dia seguinte o meu corpo acordou regenerado. Nem sinal dos quatro volumes de Luckies consumidos pelo trabalho das últimas semanas. Senti um bem-estar quase pecaminoso. Sangrei um pouco do nariz e vi o meu corpo a inchar por fora e a portar-se como cortiça por dentro mas o que era isso comparado com a ausência de matéria? Admira-me não ter saído em suspensão pela janela.

Como já era noite, comi qualquer coisa, engoli duas ostras com sumo de limão e fui-me deitar. Isto estava a acabar-se. Para já, acabava-se a segunda-feira.




Vinte e três.


... cortisona e o meu anjo-da-guarda.



Naquela última manhã eu estava deitado na cama, estendido de pernas abertas, os braços ao longo do corpo. Tinha acabado de acordar e pelo suor na minha testa, que eu sentia escorrer até às orelhas, deviam estar uns trinta graus. Era quase meio-dia, o quarto estava escuro, as janelas abertas e as cortinas fechadas. Adormeci e acordei várias vezes até voltar a cair num sono pesado novamente. Estava sob o efeito da cortisona há quarenta e oito horas, fosse o que fosse o que isso queria dizer.

Por volta das três horas senti uma presença no quarto. Uma luminosidade forte ao fundo da cama do lado direito. Primeiro, pensei que fosse o Sol - que nasce do Oriente, de frente para a minha sala - que tivesse já galgado o prédio na sua fadiga diária voltando agora para o Ocidente; saudando-me na janela do meu quarto. Mas não. Este Sol tinha asas e deslizava agora lentamente num perfeito travelling ao longo da cama sobre mim, na minha direcção. Eu estava talvez um pouco adormecido pelas horas a mais de sono e pela cortisona; a situação era mais uma vez absolutamente estranha; a frequência das batidas do coração que eu vira dias atrás sob a pele mantinha-se baixa; nenhum músculo do meu corpo reagiu à adrenalina produzida à pressa e que me corria nas veias; nenhum grama do meu corpo reagiu àquele súbito apelo do inesperado; tudo aquilo escapava à minha consciência e eu recebia o que nunca tinha pedido, o que não tinha a certeza de querer. E no entanto, senti-me em paz e, sabendo o que sabia sobre mim, senti-me protegido. Aquela luz era quente e deixava-me seguro. Nada podia temer. Era como se tivesse estado à espera daquilo toda a minha vida. Havia um Sol no meu quarto e eu sentia-me protegido. As asas abriram-se-lhe com um sorriso e uma mão acariciou-me a cara. Adormeci de novo.

Quando acordei, vi através das cortinas o Sol a fazer o caminho de volta a casa. Levantei-me e abri as janelas deixando entrar alguns graus de calor no quarto. Eram qualquer coisa horas e trinta e cinco minutos da tarde. Os frascos de cortisona do lado esquerdo da cama escondiam o indicador do relógio-despertador Siemens com caixa em pau-preto. Fechei a janela e liguei o ar condicionado.

O Canal 16 passava um policial negro a cores com um Silvester Stallone vinte quilos mais gordo, amparado por dois ou três génios da 7ª Arte. Segundo as indicações do Pol teria de tomar nova dose de Depo-Medrol às seis. Seis. Eram seis. A sétima injecção. Depois de deitar a agulha e a seringa no lixo bebi um terço de uma garrafa de Luso. A Evian tinha-se acabado.


PS - Como diz o senhor Andrés, isto está a acabar-se. Até já

Impressões...

sobre a Patti Smith



Um mestre do cinquecento - não tenho a certeza qual deles - disse que o objectivo do discípulo é ultrapassar o mestre. Eu acrescentaria que um mestre perfeito é que teria como objectivo ser ultrapassado pelo seu pupilo. Pupilos e mestres aparte, ouvi esta noite em casa de um amigo maior a Patti Smith a cantar o "When doves cry" do Prince. Não me surpreendeu que o cover dela fosse incomensuravelmente mais magnífico do que a versão inicial.

Sobre a Patti Smith nunca se há-de dizer tudo. É sem dúvidas de última hora, pelo menos esta noite, a maior voz feminina da história - Billy Holliday, Ella, Dinah e Nina incluídas, mas a elas peço desde já perdão pelo que digo. A voz da Patti Smith é em si um sentimento. Não inventa, a cada canção sabemos onde ela nos vai surpreender, que tiques e trejeitos vai fazer, mas o coração é sempre apanhado desprevenido onde o ouvido estava já a coca.

Patti Smith canta when doves cry melhor do que Prince porque não poderia ter saído de outra forma. E disso, o Prince não tem culpa alguma.

É que ela guarda em si e apenas para alguns de nós a memória dos sons primordiais, sem tratamento, sem corantes nem conservantes. Os primeiros sons com significado que o Homem há milhões de anos soltou a coberto de uma gruta de granito pitada pelas chamas da fogueira.


sobre mim próprio

Não pertenço à alta sociedade. Não quero. Não sou eu. E quando vier a pertencer (porque é um mal que poderá acontecer a qualquer momento), vou-me repetir todas as noites antes de adormecer - Deixa-te de merdas, não é isso que tu queres. Escrever não se faz em comunhão com a alta sociedade.


sobre a Toys'R Us

Como sou pai e quero o melhor para a minha filha, fui ao TRU comprar uma cama-berço. Depois de três ou quatro voltas às prateleiras optámos (optámos é um bom termo) por uma cama que por acaso tinha por cima uma chapa onde se lia VOX. Achei piada ter escolhido uma cama VOX. E, como o polvo é quem mais ordenha, chamei a empregada a quem expliquei que queria a cama e ela disse-me só um momento - ...da-se, está o Luís Represas ali a cantar na televisão, puta que pariu, nem às três da manhã estamos livres de coisas destas - e foi-se embora para depois voltar e eu ter de explicar tudo outra vez e ela dizer-me que só tinham a que estava exposta e que se eu quisesse podia levá-la logo ou então que entregavam eles mas só à quarta-feira mas que ia confirmar e voltou a desaparecer e eu fiquei ali com a... e a... e o... a olharmos para o resto das coisa até que a menina já crescida voltou com um colega (sim, sei que colegas são as putas, mas é apenas uma força de expressão e claro que sim que força de expressão é de per se uma força de expressão, de todos nós portugas, que não diz nada de especial, quanto mais com força) e o colega disse que infelizmente não podiam vender a cama. O QUÊ?. Está a dizer-me que apesar de a cama estar aqui à minha frente, ter um preço, eu estar num espaço comercial destinado à venda e não à oferta, de eu ter o dinheiro e o direito de escolher coisas, ter escolhido esta cama e querer comprá-la, apesar de tudo isso, diz-me assim: não lha podemos vender?

Isto foi o que aconteceu e há testemunhas para este facto: a TRU não quer a satisfação de um pai que quer o melhor para a filha, a TRU não quer vender o que tem exposto, porque prefere ter as coisas bonitas que tem expostas à vista de todos e não escondidas na casa de um qualquer camafeu (no caso, eu). A TRU é má e tem coisas quiméricas à vista apenas para criar frustração aos portugueses. A TRU quer dizer que não somos dignos de comprar na TRU. A TRU é má e quer desmoralizar-nos. Vamos fazer um raciocínio brilhante: nós estivemos com os EUA na questão do Iraque. O Bin Laden está com o Saddam na questão do Iraque. Os EUA querem-nos bem, digo eu. A TRU quer-nos mal. Terá a TRU alguma coisa a ver com o Bin Laden? Ridículo? Se eu vos disser que a minha filha nasceu a 11 de Setembro - isto é verdade e desconfio que na TRU o sabem -, continuam a achar o meu raciocínio estranho?

Até já

segunda-feira, janeiro 05, 2004

Vinte.


Na net ninguém desconfia
que eu sou um cão



Na segunda-feira, por volta das dez horas, comecei a tratar de assuntos inadiáveis. Já tinha passado a fase crítica. Ia ser uma bela semana. O primeiro assunto tinha a ver com os meus oitenta quilos - em quinze minutos preparei e tomei o pequeno almoço; o segundo também - encomendei provisões para mais duas semanas e, desta vez, deixei-me levar pela gula: ostras, profiteroles, lagosta - que eu preparava segundo uma receita de Fritz e Nero Wolf - Don Perignon, Madeira e outros quantos pecados do paraíso pantagruélico. Ia ser uma bela semana.

Por volta das onze horas marquei o número da editora. Atendeu-me uma voz débil que eu não conhecia. De rapariga. Ela também não conhecia a minha voz e atrapalhei-me ao explicar quem estava deste lado da linha. Não estava à espera daquilo. Normalmente era reconhecido e rapidamente passado ao sr. director que não tinha linha directa e insistia nas propriedades cancerígenas do telemóvel. Senti-me quase um estranho e não havia maneira de fazer entender à pobre da rapariga que o sr. director tinha sempre toda a disponibilidade do mundo para mim, que eu fazia parte do Conselho Editorial e que o nome que aparecia todos os meses a assinar a terceira página da revista era o meu - a fotografia também era a minha, mas era uma vaidade do sr. director. Ela não parecia entender este palavreado e acabei por pedir simplesmente para me ligar com a sra. D., a nossa inestimável relações-públicas.

Passada a chamada, antes ainda de me ligar ao sr. director, fiquei a saber que alguém tinha ligado para a editora para falar comigo. A senhora D. acabou por lhe dar um dos números de minha casa, pelo que me pediu desculpa. De facto, não era comum nem eu achava aconselhável. "A pobre senhora começou para aqui a chorar, Andrés, eu não sabia o que havia de fazer. Pareceu-me sincera. E depois, assegurou-me que te conhecia muito bem, bem até demais, disse ela, não sei o que quis dizer, desculpa mencioná-lo Andrés, mas achei que era importante dizer-to, e que tinha o teu telefone mais não sei o quê, que o tinha perdido. E disse-me tudo isto a soluçar, compreendes? Eu também fiquei aflita e acabei por lhe dar o número."; "Não interessa. Não se preocupe. Até para a semana. Um beijinho."

Cinco minutos depois já tinha explicado ao pai da Patty, diminutivo de não sei o quê, que não estava muito bem e que muito provavelmente não poderia sair de casa toda a semana. "Mas já foi ao médico sr. doutor?", "Não se preocupe sr. director."; sosseguei-o e despedimo-nos educadamente, como convém. Oitenta quilos a peso de ouro sempre ditavam a sua lei. Quando eu pudesse voltava ao trabalho. "Beijinhos à Patty."; "Falou de si no outro dia."; "Eu telefono-lhe depois."

Enquanto tratava destes assuntos vi ao longe algumas nuvens que se estendiam em slow motion por cima do parque e que pouco depois me escureceram a face contra o vidro da janela da varanda. "Não se preocupe, sr. director." Não há-de ser nada. "Beijinhos à Patty.", não imagina onde, sr. director. Levantei-me e aproximei-me do vidro duplo onde semanas atrás eu fumara o último Lucky Strike da noite e alguns dias depois contemplava apavorado a imagem que via à minha frente, decalcada contra os contornos escuros da minha cidade. Desde então Eu nunca deixara de ser "Eu", sei-o agora. Mas não me era a mim. Era apenas eu a lutar por mim, evitando o confronto físico e o julgamento dos olhos da rua.

Porque esta ia ser uma grande semana andei toda a manhã electrizado, num estado quase neurótico que me obrigava a sentar-me e a levantar-me de forma impulsiva. Eu dispunha da minha vida como queria, apesar de tudo. A liberdade que o meu estatuto me proporcionava era para mim uma coisa formidável. Inexplicável, mas formidável. A estima profissional que o sr. director tinha por mim não conhecia limites e eu apenas me preocupava em esticá-los até ao infinito. Apesar de tudo a vida era uma festa. The party will go on. Esta era a vantagem de eu me achar uma merda e sofrer de depressão contínua. Esta semana ia telefonar aos meus pais e dizer-lhes, "Está tudo bem.". Para dizer a verdade, eu só desejava ser feliz como se não pudesse ser outra coisa. Alguém já o disse e era como se o sussurrasse agora ao meu ouvido.

Fiz mais café. Era a única coisa que me acalmava nos grandes momentos. Café seguido de um Lucky Strike. Toasted. Liguei o Pentium e fui ter com os meus amigos. O Eric e a Kate (afinal sempre pertencia ao género feminino) estavam a discutir porque ele tinha começado a andar com uma miúda que era aluna dele na Universidade. Parece que eles tinham tido qualquer coisa durante o tempo em que eu não apareci. A discussão arrastou-se ao resto do grupo e como eu não me queria meter naquilo fiquei calado e não disse nada. Sentei-me na chaise-longue enquanto assistia ao arrufo. Foi então que, inesperadamente, o Songo-Han me perguntou, "Gustav - era o meu nome de guerra -, o que achas disto? :)". Eu ainda não tinha entrado. Como ele sabia que eu estava ali era algo que escapava às leis que vêm regendo o nosso mundo. Ele não era como os outros. Acabava sempre por me surpreender, o que criava entre ele e eu uma relação especial. Respondi, "No idea ;)"; "E o teu problema. Estás melhor?". O espírito dele pressentia-me. Aquelas coisas que eu vi sobre os orientais e sobre os discípulos de Shaolin quando aos seis anos fui pela primeira vez ao cinema com dois vizinhos mais velhos devia ser verdade. "Yap, falamos depois".

Para dizer a verdade, era impossível ouvirmo-nos a todos, tal o nível que atingia o calor da discussão sobre o arrufo de Kate com Eric. Foi então que o meu telefone sem fios tocou. Tinha-me esquecido de o desligar depois do telefonema para a editora. Era F., a amiga de cuja casa eu saíra com as calças na mão havia um mês.




Vinte e um.


F.



Pois é, meus caríssimos senhores. Há muito tempo que eu não pedia a vossa atenção. Mas não adormeçam, é ainda para vós que conto estas últimas semanas da minha vida. F. estava bastante transtornada, quase histérica. Tive de gritar-lhe para que se acalmasse mas, dado o seu estado, não tive coragem para lhe dizer o quão desagradável achava aquela gracinha de arrancar o meu telefone à senhora D.; sempre achei que o que tinha para tratar com as minhas namoradas devia ser feito frente a frente, de pé, deitado, enfim, fisicamente e nunca por telefone. Mas desta vez F. tinha bons motivos para ter feito uso de todos os expedientes para desencantar o meu número. "Ele morreu, Andrés, morreu." Morreu? Quem? "O Samuel morreu... morreu hoje." Não fazia a menor ideia sobre quem estava a falar. "Quem?", "O Sam, o meu marido.", e deixou sair um gemido, arrepiando o meu silêncio por largos momento.

Recomeçou então a chorar, suspirando descompassadamente. Nunca soube o que dizer nestas situações, especialmente quando o morto também não me dizia nada a mim. O que era o caso. Nem sequer sofria com isto que acontecia com F., ou melhor, com Samuel. O que poderia eu dizer?, digam-me. O que deveria eu dizer? Porque há coisas que se devem dizer nestas alturas. O quê? Nada. Fiquei quieto no meu silêncio a ouvir F. e entre o choro e os vazios pensei na minha falta de emoção em certas situações que me deviam merecer mais consideração. Já o disse e volto a dizê-lo, eu não podia deixar que este final de século me arrefecesse a alma como parecia ser o grande objectivo colectivo.

Vá, acalma-te. Conta-me o que aconteceu. Pouco depois, conseguiu falar.

- Ele tinha-se cortado numa das mãos há dois meses, na serração. - O marido dela era madeireiro. - E a mão infectou, e ele nunca ligava a estas coisas - calou-se e recomeçou a soluçar.
Então, querida, estou a ouvir-te.
- Não me chames querida! - gritou-me. - O meu marido morreu. Não me chames querida - e continuou a soluçar.
Tapei o bocal com a mão. - Merda! - e pedi-lhe desculpa.
- Ai, Andrés. O que vai ser de mim?
Não há-de ser nada.
- Eu avisei-o - entretanto, começou a chegar qualquer coisa ao meu faxe e o ecrã do PC piscou um par de vezes; pedi-lhe um segundo para tratar disso e, pouco depois, ela continuou. - Era um casmurro.
Mas diz-me, como é que uma ferida na mão pode...
- Não era uma ferida - interrompeu ela. - Era um corte.
Okay, desculpa. Como é que um corte... - perguntava eu outra vez, mas ela começou a falar sozinha, a murmurar coisas que eu não percebia, até que, mais nitidamente para os meus ouvidos, se lamentou por o marido ter continuado naquele emprego, que ela achava perigoso e que era mal pago, depois repetia que ele nunca lhe dava ouvidos e isto e aquilo. Depois, de um momento para o outro, calou-se, aclarou a voz e começou a explicar-me serena e pausadamente que a infecção alastrou pelo corpo e o marido, Sam, ficou com os músculos rígidos chegando ao hospital com grandes dificuldades respiratórias. Morreu poucas horas depois de coisa incerta. Aguardava o relatório da autópsia. Acabei por lhe prometer que passava lá em casa, talvez na semana seguinte. Ela sentia-se muito só e triste e precisava de um ombro amigo. É claro que quando fosse, se fosse, não levaria apenas o ombro mas todos os meus oitenta quilos. É que, apesar de tudo, apesar das lágrimas, apesar de ser uma boa rapariga, ela não era uma boa mulher, quer dizer, não o foi antes e eu acreditava que ela continuava a ser a mesma F. que eu visitava de vez em quando à sexta-feira.

PS - Amanha não há mais. Mas depois de amanhã já há mais outra vez. Até lá

domingo, janeiro 04, 2004

Dezanove.


Por vezes ainda sonho que a mão de Deus
me acaricia a face. Como se a vida fosse
mais do que isto. Mais limpa do que o vento.



Por volta dessa última semana, num desses dias, depois de me abandonar aos meus pesadelos, abandonei-me ao único prazer horizontal que me restava. Deitei-me e fiquei quieto na cama. Eu precisava de dormir. Aliás, era tudo o que eu precisava agora. Dormir. Dormir o mundo inteiro e acordar de manhã com o Sol a bater-me na cara. Tomar banho e ir trabalhar. Era tudo o que eu precisava, meu deus. Apenas isso e só depois o resto. Fechei as cortinas, sintonizei a X e deixei-me estar com os ambientais nipónicos a pairarem sobre mim. Eu costumo adormecer sobre o lado direito - por causa de uma estupidez que ouvi quando era criança sobre o dormir em cima do coração - e acordar sobre o lado esquerdo. Desta vez fiquei estendido voltado para o tecto. Faltam cento e cinquenta dias e vinte e duas horas para... qualquer coisa que eu não cheguei a perceber, anunciou a locutora de serviço após o sinal horário das duas. Depois dos nipónicos vieram o dub e as novas etiquetas nova-iorquinas. Há muito tempo que eu não sintonizava a minha estação favorita e a primeira coisa que fiquei a saber depois de marcar o 91.6 foi o seu fim anunciado sem me terem consultado. Do que eu precisava era de dormir. Baixei um pouco mais o volume da mini sobre a minha cabeça e rodei mecanicamente sobre o lado direito. Acabar com a X. Já agora acabem com os hospitais, com os bombeiros e com os homens do lixo.

O meu problema, por esta altura, era que o meu cérebro disparasse novamente. Que começasse a colocar-me questões sem resposta. Voltei-me para o lado esquerdo e senti as batidas do coração contra o colchão, o sangue a fluir por detrás das orelhas e o pijama a colar-se-me ao corpo. Todas as minhas veias bombeavam sangue contra a almofada e contra os lençóis e este atirava-se depois violentamente contra mim. Envenenado e com um sabor amargo. Por fim fechei os olhos tentando não pensar em coisa alguma mas pequenos detalhes vinham-me à memória e as cenas das últimas semanas sucediam-se umas às outras, incoerentemente. Estava como que numa espécie de meia sonolência.

Esperneei um pouco, abri momentaneamente os olhos e voltei a fechá-los. Mantive-me assim durante largos minutos, no limiar entre mim e a minha ausência revendo momentos vagos, sem qualquer peso, do último mês, a minha própria imagem com os óculos, páginas e frases do artigo repetiam-se no meu cérebro compondo ideias quase tão absurdas como um Borges facsimilado de Dante que me saudava desde o parque em frente, a seu lado a rapariga Chanel começando a levitar seminua em direcção à minha varanda e eu, sentado, com a minha mãe a pôr-me mercurocromo nos joelhos. Quando a pequena burguesa me pegou na mão, que a minha mãe lhe estendia, assustado, pressenti-lhe um sorriso lúgubre nos dentes, um olhar malicioso e dissimulado. Subitamente, os seus lábios tremeram e soltaram uma gargalhada estrépita. Ela pegou-me na mão e o seu rosto era o rosto de F., voltei-me para trás para me refugiar nos braços da minha mãe mas era Isabel que ainda segurava o algodão avermelhado. Com o pânico, despertei. Levantei-me e aproximei-me da janela através da qual eu podia ver, de esguelha, o local da cena que acabara de viver. Depois de afastar totalmente as cortinas, abri-a e ofereci a cara e o peito ao ar glacial que purificava o quarto. A umas dezenas de metros, um grupo de rapazes gritava para a noite de dentro de um descapotável, brindando com champanhe em taças de cristal. Fechei as cortinas e vagueei um pouco entre as almofadas no chão. Eram três horas. Voltei a deitar-me.

Pouco depois um sino soou longe, perdido algures naquele sono intranquilo, para logo de seguida o som quase-nítido da campainha da minha casa me arrancar do torpor em que me encontrava. Levantei-me e, sem ligar as luzes, cheguei à porta. Abri. Na minha frente encontrava-se um vulto desconhecido. Quem diabo me batia à porta àquela hora. Na contraluz do corredor era uma figura minúscula e negra, encurvada e quieta. "O que...?", comecei, mas o vulto levantou a mão e eu calei-me. Acendi a luz da sala. Como? Peter Lorre.

Meio adormecido, fiz-lhe sinal para entrar. Não entrou e voltou a levantar a mão, agora com a palma voltada para mim. O sobretudo cinzento desapropriado para a época mas apropriado para o frio era o mesmo daquela primeira noite. Apenas lhe queria dizer que eu não falhei. Naquela noite, eu não disse que falhei. Eu não sabia o que fazer; antes de se voltar e desaparecer, acrescentou, Ah!, creio que perdeu isto. Entregou-me qualquer coisa embrulhada em papel de jornal. Desemaranhei as folhas. Tinha nas mão velhos poemas meus que eu tinha a certeza de ter queimado mas que estavam agora ali à minha frente escritos numa caligrafia que não era a minha. Amarrotei os papéis e, como começava a afastar-se, gritei-lhe da porta qualquer coisa pouco coerente. Como não se voltou e começava a descer as escadas, corri atrás dele. Quando lhe estendi a mão, já no patamar do rés-do-chão, ele voltou-se para mim, sorriu, e abriu-me a porta do apartamento dos consierges. Todo este tempo o velho conhecia-me e eu não sabia que era ele que administrava diariamente o meu lixo. Entrei. O ar tinha arrefecido repentinamente e soube-me bem encostar-me a um fogão de lenha antigo. O seu apartamento era bem mais modesto do que o meu mas tinha um aspecto castiço porque era completamente forrado a madeira. Fui até à janela do fundo por onde entrava a pouca claridade da casa. Eu não costumava acompanhar as fases da Lua mas tinha a sensação de que não havia Lua naquela noite e ali estava a roda de queijo mais brilhante que eu alguma vez vira. À minha direita, uma outra visão até então interdita. Arranha-céus negros recortados como popas de navios encalhados num mar negro de alcatrão que nada tinham a ver com a minha cidade. Mais à direita ainda, néons que me recordaram as paisagens nocturnas do Hopper. Depois, inesperadamente, à esquerda, estendia-se um manto fofo que eu presumi que fosse verde durante o dia. Era inexplicável como eu desconhecia por completo aquela paisagem.

Depois de me mandar sentar e fechar a porta, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os à entrada. Sente-se, vamos jantar. E começou a descascar batatas. Aquele gesto despertou-me subitamente a memória e, então, olhei em volta mais atentamente. Era a casa do Eric, do velho na montanha. Impecavelmente limpa e arrumada, como nos contou Eric. Quando me voltei, o velho acabava de pôr dois pratos na mesa ao pé da estante preenchida com volumes antigos. Então, um personagem sinistro e escuro saiu de um dos cantos da casa, acocorado, com um revolver apontado para os meus olhos. Era jovem e tinha o cabelo negro, comprido e despenteado e vestia o mesmo sobretudo que o velho pendurara por detrás da porta. Quem avançava para mim era eu próprio. Com um olhar esgazeado e um sorriso tenebroso a distorcer-me a boca. Recuei quanto pude, quando a arma me tocou a face acordei. Ao acordar, sem o saber ainda, eu tinha feito a mais vital das escolhas.

"Faltam cento e cinquenta dias, dezanove horas e...", eu tinha estado a sonhar todos os minutos daquelas últimas duas horas.

Por momentos fiquei quieto, travando uma luta silenciosa com o sono, fugindo da cabana e do torpor semiconsciente que me aliciava entre as escadas e a floresta. O sopro da manhã impelia os vapores da aurora que fugiam diante, de sorte que de longe reconheci a ondulação ligeira do mar. Daquele mar que eu não conhecia ainda mas cujo pressentimento me era, dadas as circunstâncias, profundamente agradável. Profundamente gratificante. Em poucos segundos de sono eu tinha feito a mais vital das escolhas.

PS - Entretanto, na TV continuam maminhas ao léu e perninhas a dar-a-dar, até logo

sábado, janeiro 03, 2004

Dezassete.


Só. Com os meus demónios.



Nada disto era, afinal, novo para mim. Apenas assumia outra face. O que já antes me preocupara, e que eu tentei explicar numa página que antecederia esta mas que o meu bom senso acabou de rasgar, não fora a Verdade. Eu continuava a ser o menino mimado de antes, o filhinho da mamã, o único do seu colinho. É o desígnio de Deus o que me preocupa. O desígnio que Deus tem para mim; e sob que forma. Como se existisse uma verdade pessoal. Bem, não terá sido esta uma consideração absolutamente absurda? Como se eu me tivesse anatomicamente por uma súmula bíblica onde o pecado e a redenção se estivessem a escrever pela primeira vez? De facto, vejo agora tudo isto como uma fantástica efabulação a que o meu cérebro apenas se permitiu pelo desespero que tão tardiamente na vida me exigia vassalagem. Mas de uma coisa estou certo, foi apegado ao princípio destas ideias que consegui suportar aqueles últimos dias da terceira semana.

Não passava de uma medicina preventiva, claro. Analisando bem as coisas, facilmente acabaria por chegar à conclusão de que limbos literários ou litúrgicos não tinham sido o meu caminho; não havia precedentes; o meu caso era humano, ao contrário do que me parecia. Havia, nessa fase, que dessacralizar o grande eu, único eu, que sempre pensara ser. Mas EU não queria nem estava em condições de fazer esta análise.

No fundo, por mais que eu tentasse enganar-me, sabia que a lógica de tudo aquilo permanecia escondida algures. Oculta, mas não como uma manifestação do sobrenatural. Era eu, combinação única do cruzamento de pai e mãe, igualmente únicos, quem tinha de entender-se comigo, de me suportar e decidir-se. A quê, à excepção da possibilidade Pol, não o sabia. Mas era de mim que se tratava. Eu estava só com todos os meus demónios.

Ainda com a imagem daquela fêmea a aferroar-me o cérebro e o parque vazio com dois montes de granito a erguerem duas estacas salpicadas de cimento, entrei. Vendo bem, estava tão perdido ao pensar aquelas coisas que acabo de referir como agora que as escrevo. Afinal, segundo aquela lógica, não me considerei eu um eleito absolutamente invulgar? Não estarei, orgulhoso, a fazê-lo agora mesmo? Provavelmente, mas como os senhores já compreenderam, esta não é uma situação comum. Não quando nos passa pela cabeça que uma semelhante mutação possa, de facto, estar apenas a manifestar a nossa verdadeira natureza. Talvez revelando-nos ao mundo como aquilo que somos, talvez roubando-nos a sanidade como uma prova de fogo, um Fénix moribundo a quem um espelho repete que não é nada. Talvez qualquer coisa. Talvez isto acontecer ao meu vizinho do lado fosse melhor ideia.




Dezoito.



As entranhas ardem-me como a um demónio
enquanto durmo um triste sono na beira da cama



Dormi breves segundos, talvez horas, e quando acordei estava farto de viver. Alguma coisa me sucedera durante o sono e foi a custo que me agarrei de novo àquela angústia que me obrigava a lutar pela vida.

A verdade, tenho de confessar-vos, é que por esta altura sentia a brutalidade da revolta do meu espírito. Talvez vos tenha dado uma ideia errada de sobriedade. Mas não. Esta coisa devorava-me por dentro num remorso miudinho que tomara conta de mim. Tornei-me bruto comigo mesmo, golpeava-me com os punhos na cabeça. Era um demónio adormecido dentro de mim que se recusava a conviver com a deformação e me levava a uma tosca tentativa de aniquilação física. Esperava que eu me deitasse ou que estivesse esticado a ouvir Poulenc e vinha reclamar aquela parte oculta que tomava pelo seu território. Esses momentos, como dizia o velho naquela noite, esses momentos, ainda que me assediassem raramente, custavam-me anos de vida morna e infeliz e eu desejava a morte sem querer morrer.

Ser bom. Ser mau. O que eu fazia e o que eu pensava. Duma coisa à outra ia uma grande distância. Era a minha luta diária pela decência. E era agora como uma revolta interior, uma necessidade de expiação quase discursiva que eu devia resolver em conflito comigo mesmo. Impiedosa com todos. Com tudo. E essencialmente comigo. Porquê eu?

Porquê? Que crime terrível teria cometido que merecesse tamanha punição? Aquele desejo? Naquela noite? As mulheres que eu amo por sexo? Eu apenas queria ser feliz. De novo. Até o pior dos criminosos sabe como expiar o seu crime. Ainda que não demonstre qualquer vontade de o fazer, ele está descansado. Sabe o que o pode esperar. Sabe que se lhe apontarem o dedo é a altura de pousar o mal que carrega nos ombros e limpar a culpa. Terá olhos para baixar da multidão que o insulta, terá a vergonha por opção. Mas nada disso se aplicava ao meu caso. Um turbilhão de ideias rodopiava no Tehillim do Steve Reich misturado com imagens de fome do Sudão que, na televisão, reclamavam da legitimidade do meu sofrimento, E eu repetia, talvez em pânico

Súr may-ráh va-ah-say-tóv,
Ba-Káysh sha-lom va-rad-fáy-hu.

PS - E assim se faz pela vida, até amanhã

País à deriva? Nahhh

Ainda me lembro de ler como certas questões literárias eram antigamente resolvidas com umas bengaladas à porta da Brasileira. Talvez até do Martinho ou do Nicola. Quando agora ouço barbaridades no processo Casa Pia, penso para mim naquele provérbio - quem não se sente... Muito me espanta que não corra sangue ou uns dentes partidos a soco, ou mesmo um par de tabefes, como se faz aos apenas crianças.

Se pensarem que é verborreia da minha parte estarão enganados de todo. Pensemos no seguinte, isto não são já questões da Justiça, do país, do bem comum. O tema foi arrecadado para uma guerra entre senhores de poder. Se tal é assim - se não, olhem que a manobra de distracção para o que quer que seja está a resultar em pleno - por que não uns tabefes em quem de direito? Táctica muito baixa, dirão? Respondo já eu, mais baixa do que o quê? É, continuamos a pensar que pertencemos à Europa e somos civilizados. No entanto, há enganos que têm de ser corrigidos, caso contrário sim, nunca deixaremos de ser o país mais a norte do Continente Africano.

Até logo

sexta-feira, janeiro 02, 2004

Quinze.


Não sou mau. Não sou bom. Os cães sabem o seu lugar.



"Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias dos anjos?"

Rainer Marie Rilke



Recordo-me desde os verdes anos ser o espelho para mim um objecto estranho onde por vezes me confrontava raramente me reconhecendo. Tudo começava sempre com o encontro furtivo, a fatalidade da pequena pausa, meia dúzia de esgares, a pose séria por alguns segundos e o abandono da imagem. Geralmente voltava atrás. Procurava encontrar-me no que me via; queria abraçar aquele que me olhava como se fosse eu; mas era sempre um estranho que me voltava as costas e o que persistia era a consciência de que eu não existia como corpo, como carne. Mas agora era obrigado a reconhecer aquilo que não podia deixar de ser. Era irónico e eu detesto a ironia.

Eu sou nada. O espelho dizia-me tudo o que eu não queria ver. A culpa era definitivamente esquecida. Eu sou nada e até a culpa me abandona. Nada. Ando às voltas num hedonismo primário. No meu cérebro não havia espaço para a moral. Tudo seria reclamado pelos oitenta quilos que diariamente me representavam.

Em frente à net eu continuava a adiar o futuro. Sempre sem gritar. Sem espernear. Liguei a televisão. Em Madrid estavam 23º às 15 horas, com céu limpo. Em Dublin 11, em Copenhaga 11 e em Atenas 30. Muito nublado, neblina e limpo, respectivamente. Tudo servia os meus propósitos. Não que isso fosse absolutamente essencial para mim. Eu era um indiferente por natureza. Acredito que ainda posso voltar a sê-lo, mesmo depois daquilo por que passei. De outra forma, digo-o agora, como teria aguentado tudo aquilo? De qualquer forma, é difícil ferirem-me de morte. As coisas têm a importância que têm. Dificilmente a importância que lhes atribuem. Preocupo-me, de facto, mas com os meus pais; de alguma forma, a mácula que caíra sobre mim não era minha, posso garantir-vos, era deles e por isso me pesava tanto.

Não, não era minha. Eu tinha de livrar-me daquilo por eles. Eu merecia-o, porventura. Eles não. De onde fala? O meu anjo da guarda está? Diga-lhe que o Andrés telefonou, obrigado.

Estava farto da luz escura da casa. Da fuga que me afastava da vida. Como se fosse um condenado. Farto. Sentia falta do aborrecimento das ruas. Das pessoas que nada tinham para me dizer. Do banal. Das coisas que me provocavam o riso e só a mim. Estava farto de me esconder.

Nesses últimos dias tinha fechado as persianas ao tempo e corrido os cortinados para criar uma noite artificial interminável. Manipulei o tempo o quanto pude mas no fim-de-semana, no sábado logo cedo, deixei-o entrar por todas as janelas. Olhei-me uma última vez no espelho e tomei a decisão adiada e que tanto me custou tomar. Peguei no caderno com as fotografias e os relatórios diários, fotocopiei-os, liguei o faxe e enviei-os ao Pol. Provavelmente iria pensar que se tratava de uma brincadeira; poderia discutir com ele as possibilidades de um caso assim, sem expor o problema como meu. Marquei o número de casa dele para evitar que a secretária do consultório pusesse as mãos nas fotografias e anotei na última página que não estaria em casa durante todo o fim-de-semana. Depois, despi-me e fui tomar banho. Um banho quente cura tudo. Quase tudo. Estava mesmo mal.

O CD deslizava no Aiwa mas o som não me satisfazia. Procurei a cópia de vinil e pú-la a rodar no Technics ligado à Sony e mudei os fios para o amplificador fabricado por medida por um amigo que era um "mãozinhas". Há uns anos prometeu-me uma coisa de válvulas à maneira e poucas semanas depois bateu-me à porta com um caixote onde eu pensei que trouxesse um frigorífico. Explicou-me que aquilo era à base de válvulas, não sei quantas, uma coisa à antiga, artesanal, uma obra de arte do som. Não sei, não percebo nada de electrónica, som ou acústica mas garanto-vos, era uma coisa à maneira, com a potência exacta, nem mais nem menos, para quem quer ouvir Honegger. Um som mais humano. E era disso que eu precisava agora.

Estava mesmo mal. Não como havia uma semana, mas estava mesmo mal. Agora tudo assentara e a poeira cobria-me numa sentença que eu começava pensar seria para a eternidade. Mas não era só eu. O ar destes tempos é demasiado leve. Estamos no fim do século, no último ano do século que vai passar, e não há muito de que possamos gabar-nos. As coisas são assim. Valem o que valem e pouco mais. "C'est l'air du temp". Hanibal Canibal Lecter disse-o num filme a uma moça simpática e sabia do que estava a falar. Ele saberia do que eu estou a falar.

Não, eu não podia deixar-me adormecer pelo estado das almas que me cruzam todos os dias. Eu tinha de me obrigar a pensar naquilo. Tudo devia estar escrito numa lógica qualquer. Mesmo que absurda. Talvez a lógica do crime e castigo com as nuances do Livro de Job, nunca entendidas pela essência judaico-cristã. Talvez remontasse a um tempo anterior àquela noite. Algo que fiz de mal, uma conversa que ouvi e não devia ter ouvido; uma rua em que cortei à direita e recusei o passo à esquerda, um dia, talvez há muitos anos. Ou talvez a mão de Virgílio que eu larguei, talvez naquela noite. Eu tinha de me obrigar a pensar naquilo. Como nunca, agora, 29 anos, longe dos oitenta quilos, era de mim que se tratava. Eu era só.



Dezasseis.


Entre outras coisas, pensar naquilo



Depois do banho e de me encher de cereais e sumo de frutas - pode parecer absurdo, mas eu continuei a fazer uma alimentação rica, equilibrada e saudável, como se tudo fosse voltar ao habitual na segunda-feira seguinte, como se eu apenas tivesse de estar em forma para os dias vindouros; como se rapadas as últimas esperanças do fundo das entranhas eu estivesse à espera que a qualquer momento pudesse tudo voltar ao normal e eu devesse estar na minha melhor forma para enfrentar o mundo -, como vos dizia, depois dos cereais e do sumo de frutas, fui sentar-me um pouco à varanda. Os miúdos estavam outra vez a jogar à bola, ao sol, em tronco nu. Corpos informados, sem género e embranquecidos pelo Inverno. Brancos, ainda sem estigma ou pecado.

Estavam a jogar apenas com uma baliza e o guarda-redes tinha o antebraço esquerdo esfolado e com terra. Tinha os olhos húmidos. Chorara pouco antes. O que não o impedia de cerrar os dentes e lançar-se de novo aos pés ágeis de outro miúdo que conseguiu passar-lhe a bola por debaixo do corpo. Este jogava sem meias e tinha sangue no tornozelo direito, da parte de dentro. Mais acima, no joelho, via-se uma cicatriz provavelmente feita há muitos meses, mesmo anos; esta prolongava-se ligeiramente para a direita numa crosta vermelho escuro. "Claro, é o miúdo que se aleijou há uns dias atrás, quando choveu." Tinha tropeçado na bola. Eu tinha de me obrigar a reagir.

Entretanto, passou uma rapariga por eles e eles pararam. Não por causa dela, mas porque ela decidiu atravessar o parque exactamente pelo meio do campo de futebol. Devia ter uns dezoito anos. Vestia um tailleur amarelo torrado tipo Chanel, talvez Chanel, debruado num amarelo mais escuro com alamares da mesma cor. Uma visão aterradora para as dez da manhã que começava numa bandolete castanha como os cabelos, mas estes mais claros, e acabava nuns Bally Bellezza bordeaux em pele de veado virgem mais caros do que o meu salário como assistente na universidade. Os collants com motivos, flores ou losangos - os meus olhos não perceberam e o meu cérebro não se interessou -, completavam a fotografia. O jogo esteve parado até que a pequena burguesa desapareceu por detrás de uma cabine telefónica.

Eles deixaram de a ver. Eu não. Encaminha-se para a floresta. Vai devagar. Desce a longa avenida de ventos que rudemente começam a estilhaçar-me os ouvidos. Por um momento quis adivinhar o seu rosto. Quando entrou na floresta as árvores dobraram-se à sua passagem penitenciando a reverência que os infantes lhe negaram. Tudo se suspendeu, então, e eu voltei-me para a solidão que era a minha.

Eles deixaram de a ver. O jogo recomeçou. Tinha dezoito anos. Eu nunca me engano na idade das mulheres. O aspecto dela agradou-me tanto como aos miúdos, mas a ideia de que ia ali uma fêmea deixou-me inquieto, excitado. Subitamente, absorvi a cena com um terno sofrimento e uma solidão gélida abateu-se sobre a paisagem. Uma mulher era coisa que eu não tinha há quase um mês, desde que saíra de casa de F. com a saliva dela no meu pénis. Oh! como tudo era diferente com Isabel.

Curiosamente, a falta de amor físico, o único que eu ainda conheço, foi coisa que não voltei a considerar desde que, ao ver-me no espelho, tive os primeiros sobressaltos acerca do futuro. Apenas agora, de forma inesperada, o coração se voltava a apertar-me dentro das calças. Os senhores devem imaginar como não há nada mais cruel do que isso para um homem impotente.

Que grande sorte me foi estendida pela mão de Isabel. Que alívio trouxe a sua existência àquela angústia ingénua que eu vivia pela manhã quando os meus olhos se fixavam no tecto. Foi esta sensação que eu tive novamente quando contemplava aquela ninfeta incompleta para o amor. A mesma impotência da razão turvada pelos sentidos. A neurastenia dos dias solarengos. Voltei a provar a química dos poetas que apenas na sua imobilidade sentada podem escrever o movimento sublime das pequenas insignificâncias vitais para nós e que apenas eles, poetas, podem escrever. A mesma impotência que não era nova para mim, apenas assumia outra forma. Mas eu reagia. Talvez Pol estivesse neste preciso momento a receber as coisas que lhe enviara. Eu queria, finalmente, a sua ajuda. A ninfeta chamara-me para a vida - poderia eu ouvi-la? - e o vento estilhaçante era agora uma brisa que acariciava as minhas orquídeas.



Amanhã há-de vir mais, até lá