quinta-feira, dezembro 18, 2003

Quatro.


A culpa roubando-me a paz pela calada



"E a ambição, que nasce apenas de
um acesso de febre e atravessa, sem
se demorar, o coração estreito
do homem."

Keats




Quando acordei era de novo dia. O sol entrava-me pela casa à velocidade de trezentos mil quilómetros por segundo directamente do Oriente. Era de manhã e eu tinha dormido demais. Um dia inteiro. Uma noite inteira. Era outra vez de manhã. O meu corpo levou os habituais e terríveis minutos a reagir à ideia de um duche quente. Já na casa-de-banho e ainda mal-acordado vi que os óculos permaneciam entre mim e o espelho. Tinha-os esquecido e nem sequer os sentia, como se fossem já a minha própria visão. Aproximei-me do espelho e tentei tirá-los mas senti um esticão na pele inchada do sobrolho direito. O estalido metálico assustou-me e a dor terrível que se seguiu obrigou-me a desistir. Logo de seguida o sangue começou a descer-me pela cara e pelo pescoço manchando o colarinho do meu pijama em algodão branco da Calvin Klein. Despi-me e limpei-me com uma toalha. Eu reagia às coisas como um robot e nem sequer pensei em quanto ia custar mandar limpar o pijama de duzentos euros.

Tentei de novo tirar os óculos; o que eu fiz foi puxá-los na esperança de que me saltassem da cara e o termo correcto é arrancar. Sem melhores resultados voltei a aproximar-me do espelho. Analisar todas as situações de forma clínica fazia parte dos meus genes mas entrava quase sempre em confronto com a minha natureza de escorpião, de génio difícil e mimado. Mas de momento não havia outra coisa a fazer. E o que sabia eu das coisas naquele primeiro dia?

Uma frágil membrana de escarlate translúcido começava a unir o sobrolho e a pálpebra ao aro. Fatalista e misticista como me ensinaram a ser nas minhas origens de aldeia, pensei “O Inferno de Dante não me perdoou”. Nem a mim nem àquele vil desejo inspirado pelos mais nobres vapores etílicos que o homem pode experimentar. Mas se eu pressentia algo de estranho por acontecer, estava longe de imaginar o ponto que as coisas iriam atingir. Despi-me e meti-me debaixo do chuveiro. O sangue correu, lavado e escuro; só muitos segundos depois parou.

Os óculos eram, aparentemente, irremovíveis e resolvi deixar de pensar neles. No momento não me incomodavam e sentia-me melhor com eles do que sem eles, dois dias antes. De qualquer forma, pensava eu, não seria nada que um bisturi, uma mão hábil e meia dúzia de pontos não resolvessem em meia hora. Pensava eu.

Contudo, misticismos à parte e apesar do meu conforto físico, uma frase que ouvia na distância dos anos numa Igreja perto da minha infância através da voz irada de um pároco alto e seco que Deus brindara com voz de barítono anunciava-me já os limites dos dias que aí vinham e as noites prolongadas em suor e pânico, O preguiçoso é semelhante a um monte de esterco...

Até já

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