Quatro.
JOAQUIM DECIDIU QUE UM HOMEM DEVE MORRER
Quando Tomás e Andrés arrancaram rumo à Baixa naquela noite quente de Abril não desconfiavam que estavam a escassas horas de decidir a morte de um homem. Pudessem rebobinar a vida e teriam notado que Joaquim lhes ligara para os lembrar do jantar dessa noite. Com uma voz parda, quase de fundo, mas telefonou. O que era estranho. Havia anos que jantavam juntos. Porquê lembrá-los. Tomás entrou no carro e deixou-se cair pesado, enterrando-se no banco. Andrés está a informar Tomás de que vai tirar a capota. Tomás torce o nariz e acena negativamente com a cabeça. - Estão trinta graus – mas Tomás continuava enterrado no banco de couro escuro e entrelaçava agora os dedos entre as pernas. De vez em quando passava a mão pelo queixo. Olhou para a barba no espelho. Uma velha foi à janela. Andrés, que acaba de bater com a tampa do porta-bagagens acena-lhe um adeus largo. Andrés é um escheriano, gosta da ambiguidade e cultiva-a nestas situações. Pecados de quando a universidade o obrigava a horas a fio de estações de autocarros. Só, como se sentia nesses momentos de abraços e beijos alheios, pousava a mochila, voltava-se para trás e acenava para os autocarros que partiam, colhendo depois lágrimas e beijos entre a névoa de dióxido de carbono que levava um homem à alucinação. Dos autocarros levantavam-se braços com um destino definido ao lado, mas não fazia diferença que ele não constasse do caderno de encargos daqueles corações embalados e prontos a partir. Como um exemplar onanista que também era interessava-lhe apenas colher a dádiva, um beijo carinhoso que devolvia de olhos semi-brancos, todo perfeição, sem reverso, sem penas, um adeus lacrimoso que ele podia guardar por dez longos segundos, talvez rematado com um lenço branco a colher as pérolas da saudade. Fechado o capítulo dos autocarros, tem agora os prédios da cidade. A pobre senhora gesticula a pequenos impulsos com a mão direita, enquanto se debruça e aconchega os óculos com a esquerda. Encarquilha a boca e o nariz num ponto de interrogação e estica o pescoço, mas entretanto já Andrés entra no carro e arranca, com um carrancudo adiós que retumbou de parede a parede nas torres que se enfrentavam. Ligou o rádio. Baixinho, ouviram uns acordes de guitarra. Era música de pacote. Não obrigado – pediu Tomás. Numa reacção pavloviana um dedo mudou de estação para a Voxx. – Põe na Radar, a esta hora na Voxx são muito sorumbáticos – tentou Andrés, mas um gesto curto de Tomás fê-lo dar a aposta por perdida e já começavam a rodar pela Defensores de Chaves, rua de afamadas putas sem interesse. E às vezes sem dentes. Subiram a Casal Ribeiro para o Saldanha e meteram pela Fontes Pereira de Melo abaixo. Sem dizer palavra. Ao som dos Bent.
A noite continuava quente, para quem isso interesse. A Avenida da Liberdade a pulsar de electricidade era um insulto para o estado de alma em que se encontravam. Leste o que disse o cabrão do ministro? Li, o cabrão. Eram dois tipos perdidos quem percorria agora a longa avenida em direcção aos Restauradores num roadster que se impunha antigo na sua carcaça corroída de tinta a estalar mas sem idade para ser um clássico. No stand o vendedor manhoso atirou-lhe com um green very british. Respondeu com uma esquerda ao longo; verde azeitona encarquilhada. Continuaram a descer a avenida escurecida pelo Sol e acesa pelas luzes da iluminação de centenas de candeeiros que por breves minutos se misturavam com aquela luz da tarde, a luz da tarde que nesta cidade é quente ao fim do dia, que se embrulha até ao estômago e se pretende potente para interditar todas as agonias. Aquela luz que só ali, quando a cidade se ausenta.
Chegam a casa de Joaquim, vira-se Andrés, o único que ainda transmitia - Tens a chave? – Tomás tinha a chave. Ter as chaves de casa uns dos outros era um elemento do domínio da modernidade mas também era coisa de quem não tinha mais ninguém. Como se lhes coubesse um dia a tarefa de entrar à pressa na casa de qualquer deles para o encontrar meio-morto ou morto e impedisse que o corpo em decomposição empestasse todo o prédio, o que poderia tornar os vizinhos irritadiços, e com razão. Subiram. A pé, três andares, nove lanços de escada, que Joaquim insistiu na poupança de cinquenta mil a comprar casa sem elevador. Andrés tocou três vezes e meteu a chave à porta. Antes que a pudesse rodar, Joaquim abriu sem os cumprimentar. A coisa estava bonita. Voltou-lhes as costas da camisa de linho preto amarrotada por fora das calças de ganga azul rafadas. Descalço, Crockett and Jones na mão direita, o equivalente a uma semana de salário de qualquer um deles. Dos dois juntos. Tinha feito a barba. Joaquim era o playboy do grupo. Um daqueles tipos que passavam mais tempo a comer brasas do que almoços e jantares. Talvez por isso fosse magro e ligeiramente musculado – não lhe faltavam oportunidades para queimar energias. Ainda Tomás e Andrés não tinham dito “então?” e já lhes tinha virado as costas. Acabado de levantar do sofá de pele branco sujo, Jean Pierre: Vocês têm que o parar. Ele está doido.
- Então, o que se passa? – perguntou Tomás, mais do que desinteressado – Estamos todos com o período, é?
- Vão todos bardamerda – atirou Andrés a caminho da cozinha e da colecção dos Cabernet Sauvignon de Joaquim, que continuava a dizer nada e se sentava na mesa escura, ao fundo da sala, onde já estavam postos os quatro pratos. Volta a pôr-se de pé e numa expiração profunda soltou Vamos jantar. Tenho fome.
Jean Pierre, num salto, ele estava enterrado no sofá, com a cabeça entre as mãos: Vamos jantar, diz ele. Está doido.
Tomás e Andrés olham-se e olham-nos. Tomás muito sério. Andrés quase a rir.
- Não olhem assim para mim. Ele quer matar um homem – atirou-lhes Jean Pierre.
- O que – André não aguenta e interrompe-se em gargalhadas. Começava finalmente a reencontrar o caminho para a boa disposição.
Jean Pierre olhou-os num relance e, voltado para Joaquim e a apontar para Joaquim, diz: Ele quer matar um homem.
A forma solene como pronunciou as palavras e o ar grave desenhado por olheiras afundadas e cinzentas atalharam o riso de Andrés e Tomás perguntou “Como assim?”; Jean Pierre e Joaquim olharam-se por um segundo e baixaram os olhos para o chão. Eles já sabiam do que era capaz Joaquim, pelo que algo de verdade havia naquele ele quer matar um homem.
Joaquim levantou-se:
- Vamos jantar.
JOAQUIM DECIDIU QUE UM HOMEM DEVE MORRER
Quando Tomás e Andrés arrancaram rumo à Baixa naquela noite quente de Abril não desconfiavam que estavam a escassas horas de decidir a morte de um homem. Pudessem rebobinar a vida e teriam notado que Joaquim lhes ligara para os lembrar do jantar dessa noite. Com uma voz parda, quase de fundo, mas telefonou. O que era estranho. Havia anos que jantavam juntos. Porquê lembrá-los. Tomás entrou no carro e deixou-se cair pesado, enterrando-se no banco. Andrés está a informar Tomás de que vai tirar a capota. Tomás torce o nariz e acena negativamente com a cabeça. - Estão trinta graus – mas Tomás continuava enterrado no banco de couro escuro e entrelaçava agora os dedos entre as pernas. De vez em quando passava a mão pelo queixo. Olhou para a barba no espelho. Uma velha foi à janela. Andrés, que acaba de bater com a tampa do porta-bagagens acena-lhe um adeus largo. Andrés é um escheriano, gosta da ambiguidade e cultiva-a nestas situações. Pecados de quando a universidade o obrigava a horas a fio de estações de autocarros. Só, como se sentia nesses momentos de abraços e beijos alheios, pousava a mochila, voltava-se para trás e acenava para os autocarros que partiam, colhendo depois lágrimas e beijos entre a névoa de dióxido de carbono que levava um homem à alucinação. Dos autocarros levantavam-se braços com um destino definido ao lado, mas não fazia diferença que ele não constasse do caderno de encargos daqueles corações embalados e prontos a partir. Como um exemplar onanista que também era interessava-lhe apenas colher a dádiva, um beijo carinhoso que devolvia de olhos semi-brancos, todo perfeição, sem reverso, sem penas, um adeus lacrimoso que ele podia guardar por dez longos segundos, talvez rematado com um lenço branco a colher as pérolas da saudade. Fechado o capítulo dos autocarros, tem agora os prédios da cidade. A pobre senhora gesticula a pequenos impulsos com a mão direita, enquanto se debruça e aconchega os óculos com a esquerda. Encarquilha a boca e o nariz num ponto de interrogação e estica o pescoço, mas entretanto já Andrés entra no carro e arranca, com um carrancudo adiós que retumbou de parede a parede nas torres que se enfrentavam. Ligou o rádio. Baixinho, ouviram uns acordes de guitarra. Era música de pacote. Não obrigado – pediu Tomás. Numa reacção pavloviana um dedo mudou de estação para a Voxx. – Põe na Radar, a esta hora na Voxx são muito sorumbáticos – tentou Andrés, mas um gesto curto de Tomás fê-lo dar a aposta por perdida e já começavam a rodar pela Defensores de Chaves, rua de afamadas putas sem interesse. E às vezes sem dentes. Subiram a Casal Ribeiro para o Saldanha e meteram pela Fontes Pereira de Melo abaixo. Sem dizer palavra. Ao som dos Bent.
A noite continuava quente, para quem isso interesse. A Avenida da Liberdade a pulsar de electricidade era um insulto para o estado de alma em que se encontravam. Leste o que disse o cabrão do ministro? Li, o cabrão. Eram dois tipos perdidos quem percorria agora a longa avenida em direcção aos Restauradores num roadster que se impunha antigo na sua carcaça corroída de tinta a estalar mas sem idade para ser um clássico. No stand o vendedor manhoso atirou-lhe com um green very british. Respondeu com uma esquerda ao longo; verde azeitona encarquilhada. Continuaram a descer a avenida escurecida pelo Sol e acesa pelas luzes da iluminação de centenas de candeeiros que por breves minutos se misturavam com aquela luz da tarde, a luz da tarde que nesta cidade é quente ao fim do dia, que se embrulha até ao estômago e se pretende potente para interditar todas as agonias. Aquela luz que só ali, quando a cidade se ausenta.
Chegam a casa de Joaquim, vira-se Andrés, o único que ainda transmitia - Tens a chave? – Tomás tinha a chave. Ter as chaves de casa uns dos outros era um elemento do domínio da modernidade mas também era coisa de quem não tinha mais ninguém. Como se lhes coubesse um dia a tarefa de entrar à pressa na casa de qualquer deles para o encontrar meio-morto ou morto e impedisse que o corpo em decomposição empestasse todo o prédio, o que poderia tornar os vizinhos irritadiços, e com razão. Subiram. A pé, três andares, nove lanços de escada, que Joaquim insistiu na poupança de cinquenta mil a comprar casa sem elevador. Andrés tocou três vezes e meteu a chave à porta. Antes que a pudesse rodar, Joaquim abriu sem os cumprimentar. A coisa estava bonita. Voltou-lhes as costas da camisa de linho preto amarrotada por fora das calças de ganga azul rafadas. Descalço, Crockett and Jones na mão direita, o equivalente a uma semana de salário de qualquer um deles. Dos dois juntos. Tinha feito a barba. Joaquim era o playboy do grupo. Um daqueles tipos que passavam mais tempo a comer brasas do que almoços e jantares. Talvez por isso fosse magro e ligeiramente musculado – não lhe faltavam oportunidades para queimar energias. Ainda Tomás e Andrés não tinham dito “então?” e já lhes tinha virado as costas. Acabado de levantar do sofá de pele branco sujo, Jean Pierre: Vocês têm que o parar. Ele está doido.
- Então, o que se passa? – perguntou Tomás, mais do que desinteressado – Estamos todos com o período, é?
- Vão todos bardamerda – atirou Andrés a caminho da cozinha e da colecção dos Cabernet Sauvignon de Joaquim, que continuava a dizer nada e se sentava na mesa escura, ao fundo da sala, onde já estavam postos os quatro pratos. Volta a pôr-se de pé e numa expiração profunda soltou Vamos jantar. Tenho fome.
Jean Pierre, num salto, ele estava enterrado no sofá, com a cabeça entre as mãos: Vamos jantar, diz ele. Está doido.
Tomás e Andrés olham-se e olham-nos. Tomás muito sério. Andrés quase a rir.
- Não olhem assim para mim. Ele quer matar um homem – atirou-lhes Jean Pierre.
- O que – André não aguenta e interrompe-se em gargalhadas. Começava finalmente a reencontrar o caminho para a boa disposição.
Jean Pierre olhou-os num relance e, voltado para Joaquim e a apontar para Joaquim, diz: Ele quer matar um homem.
A forma solene como pronunciou as palavras e o ar grave desenhado por olheiras afundadas e cinzentas atalharam o riso de Andrés e Tomás perguntou “Como assim?”; Jean Pierre e Joaquim olharam-se por um segundo e baixaram os olhos para o chão. Eles já sabiam do que era capaz Joaquim, pelo que algo de verdade havia naquele ele quer matar um homem.
Joaquim levantou-se:
- Vamos jantar.
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