domingo, junho 21, 2009

Dois.

JANTARES DE QUARTA-FEIRA


A noite iniciava-se. O tempo descia sobre as ruas num manto de grão antigo na tela toda em volta e os elementos perdiam a imperfeição diurna, as sombras a disfarçar pedaços de tinta que estalavam num prédio ou os remendos da estrada que se tornavam pardos e uniformes com o alcatrão, e ali uma árvore escanzelada que era agora à luz de candeeiros uma silhueta do espectral El Greco e um par de velhos que arrastava os pés longe do Sol revelador e estava agora em perfeita sintonia com o entardecer dos relógios. Um cão de cinco quilos rodeados de pêlo que rodopiava no ar entretido com uma borboleta noctívaga. A harmonia que descia sobre a vida quando os raios fugidios do astro maior contornavam a última esquina a caminho do Poente. Ah a harmonia com que podíamos contar todas as noites à conta de um H maior. Quando Tomás apareceu à porta, Andrés enterrava-se no carro até meio do banco, com um joelho alavancado no tablier. Gotículas de melancolia escorriam no ar em volta a fazer dançar as luzes que se instalavam dos candeeiros. Vultos apareciam para desaparecer nas suas vidas ao virar da rua, primeiro de frente, depois no retrovisor, depois numa esquina de pedra. Uma tristeza sem sentido, era uma tristeza que nos dilacerava os sentidos. Foi neste palco que Tomás apareceu à porta, com um aceno triste e abalado. Nada daquilo lhe parecia certo e uma súbita angústia atou-lhe uma ponta da vesícula a meio do duodeno a meio caminho da boca do estômago. Não estava aprumado. A barba de dois dias não colhia as bênçãos da noite. Olhos afundados abaixo da testa. Aquela noite era um mau começo.

Há anos que todas as quartas-feiras se reuniam para jantar em casa de Joaquim – só um acontecimento extraordinário determinava que as coordenadas fossem outras. Os restantes que hão-de aparecer à mesa são Joaquim e Jean-Pierre. Nunca durante esses jantares havia uma agenda particular, quer dizer – não conspiravam. “Nós não somos aquele tipo especial de pessoas com potencialidades, quer dizer, motivados para alterar linhas de rumo; não passamos de quatro tipos que se juntam para experimentar receitas do Pantagruel e do Keith Floyd” – explicou um dia Tomás a um gajo da vereação que via nos manjares a quatro uma actividade subversiva. Não imaginava o tal tipo como todos se tinham em tão má conta nesses capítulos da diplomacia subterrânea. Numa contabilidade dos valores capitais para assumir as rédeas da urbe, assunto que de vez em quando aparecia entre o prato principal e a sobremesa, estava comummente aceite pelo grupo que apesar das funções que desempenhavam, nos lugares em que as desempenhavam, era quase vergonhoso a total inabilidade que manifestavam para se envolver no andamento da engrenagem. Se um dia lhes atirassem que eram aquele tipo de indivíduos a quem os sociólogos atribuem a básica função de sustentar a engrenagem, seja ela qual for, nada mais lhes restaria do que baixar a cabeça e verter uma ou outra lágrima acompanhada de um sorriso silencioso. Pois, era um lumpenproletariat que vai fingindo as vitórias do dia. Mas estavam bem, ou mal, ou qualquer coisa, e não tinham motivos para proceder a alterações de rota no perfeitamente esférico mundo – nada mais do que o indispensável era arrancado àquelas carcaças. Até essa noite.

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