terça-feira, junho 30, 2009

Nove.

O sonho de Andrés depois do jantar em casa de Joaquim


Em casa, Andrés remoía as dúvidas à força de kompensans de sabor acre e desagradável. Deitou-se sem grande disposição. A meio da noite, esteve para acordar meia dúzia de vezes com partes do pato à pimenta a migrar para longitudes proibidas. As imagens também não eram muito claras na passagem de neurónio para neurónio, mas a meio da consciência voltou a adormecer. Até que no seu sono se formou uma cena obscura.

Tinham acabado de jantar e regressavam a casa. Jean Pierre parecia irritado. Dizia-lhes que não sabia de que servira a sua vida e eles falavam-lhe no cargo importante que tinha mas a ele parecia-lhe que nenhuma linha de rota teria qualquer utilidade. Com o cérebro a ensaiar apenas um tosco esboço do que seria a casa de Jean , entraram para de seguida estarem já a beber de copos altos e cilíndricos com Joaquim a espremer uma garrafa cujo vidro se tornava maleável e cedia às mãos do amigo. De um momento para o outro, viu como estavam todos reunidos na mesa da sala grande, sem outras peças de mobiliário, à volta de um pacote com o carimbo da empresa de Jean na tampa. “Talvez algum dos meus colegas” afirmou Jean com um gesto apaneleirado e enquanto dizia isto examinava de trás para a frente o pacote, acrescentando como esses colegas tinham vindo a desaparecer da empresa sendo de imediato substituídos por estranhos seres aparecidos não se sabia bem de onde e com os quais era impossível falar. “São incrivelmente grandes”, adiantou Jean, “estão sempre à parte e há tardes em que ficam ali de um dia para o outro, sempre a trabalhar”. Continuavam a beber enquanto Jean explicava que os funcionários mais velhos chegaram a temer por algum estratagema. Ma, disse, não havia razão palpável de queixa a não ser o crescimento semanal daquele contingente à medida que outros funcionários se reformavam. Começaram então a esgadanhar o embrulho até expor o interior do pacote. Com o fundo exposto, a caixa estava aparentemente vazia. Apenas depois e à custa de muita atenção conseguiram notar uma minúscula criatura. Esta tinha os olhos pregados em Jean. No momento seguinte, e de um pulo só, a criatura foi colocar-se no canto do outro extremo da sala. Ali permaneceu quieta enquanto eles avançavam para ela. Por alguns instantes ficaram ali a encarar o bicho de frente. O bicho também não se moveu. Então, de um momento para o outro, começou a sofrer a estranha mutação. “Ai o diabo”, soltou Joaquim mas no que poderia ser a voz de Tomás ou a sua própria. Não foi propriamente uma mutação mas uma ampliação, tornando-se mil vezes maior do bichinho que era, o que levou Jean a gritar “É um deles, é um dos novos tipos lá da empresa”, reconhecendo então a estrutura mecânica da besta – algo que nunca percebera por debaixo dos fatos de duas peças. As articulações eram roldanas perfeitas, os membros de aço, o peito uma espécie de plasma a debitar gráficos. Entretanto Jean Pierre estava só na sua sala que era agora uma espécie de casa de montanha, revestida a madeira. O bicharoco já está a avançar para ele, dando-lhe apenas tempo para se refugiar atrás de um cadeirão e Jean grita pelos amigos. Então, com um só arremesso, o bicho livrou-se do que era agora um velho sofá encardido e enquanto Jean tenta atingi-lo com um guarda-chuva, de um só golpe, o bicho deixa-o quase inconsciente. Jean tem a vista toldada pelo sangue e é através dos seu olhos que Andrés, que parece tomar de facto o lugar do amigo, vê a grande criatura a vomitar outras pequenas criaturas, réplicas de si mesma. Saltam-lhe para cima e começaram a sugar-lhe o sangue e ele está deitado numa praia com as ondas a rebentar ali perto. Tem o cabelo quente do jorro vermelho que lhe sai por detrás da orelha e luta por cobrir o golpe com a mão. Assiste impotente à silenciosa execução que lhe era aplicada. Enquanto com as mandíbulas lhe abriam novos buracos na carne, para melhor o desproverem da seiva vital, dizia-lhe uma quase aos berros ”Nós só queremos o teu sangue”. E calou-se, quando parecia que os amigos batiam a uma porta e chamavam por ele. Outra criatura segreda-lhe então ao ouvido “Viemos despedir-nos de ti. Adeus”. No final do banquete, as criaturas regressam ao interior da primeira, que as acolhe com um sorriso cordial, enquanto tira uma folha branca de uma bolsa amarrada do seu lado direito “Caro colaborador. Vimos felicitá-lo pelo seu quinquagésimo aniversário ao serviço da companhia. Notificamo-lo também que desde já dispensamos os seus serviços. Parabéns e adeus”. Era de novo Jean Pierre que morria entretanto, pronunciando em tom baixo e muito calmo “Obrigado. Obrigado”. A criatura dirige-se ao amigo que está estendido no chão, com a perna a esquerda a fazer um quatro. Toma-lhe o pulso, enterra-lhe os dedos na carne e, partindo algumas costelas, arranca-lhe o coração para o devorar de seguida.

Acordou a repetir obrigado obrigado e com pânico de voltar a adormecer enquanto massajava o peito que lhe ardia como se tivesse sido trespassado pelos dedos metálicos do verdugo tecnológico. Andrés desconfiava que nada daí em diante seria como foi até aí. Os dias não teriam uma brisa sossegada que fosse. Só emigrando.

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