sexta-feira, junho 19, 2009

Um.

ANDRÉS


“Não fomos feitos para durar”. Esta ideia ocupava toda a cabeça de Andrés enquanto conduzia, cigarro ao canto da boca, braço esquerdo de fora e mão direita no volante, em direcção a casa. A noite estava quente ou amena ou qualquer coisa assim. Uma brisa entrava pela janela e atirava-lhe o cabelo contra os olhos. Não fomos feitos para durar. Às nove, encontrava-se com Tomás e iam depois para casa de Joaquim onde há anos jantavam todas as quartas-feiras. Enquanto conduzia, procurou esse momento, desde os primeiros minutos da alvorada, desde que se levantara, esse momento que havia desencadeado tal frase no seu cérebro. Que quieta violência teria sido essa que o levou ao que agora lhe parecia a consciência última das coisas. Uma verdade primordial que agora lhe ocupava todos os sentidos. Foi rolando pela cidade enquanto o GPS interno buscava a epifania derradeira: reviu o dia desde que se levantou e nada lhe parecia digno de sentenças ou oráculos ou outras artes de xamanismo. Parado num sinal, veio-lhe apenas à cabeça esse pormenor, uma coisa insignificante, a frase surgira-lhe primeiro como uma tirada em inglês “We were not made to last”, como uma deixa de filme bom com gente má; um ensinamento juvenil que se ouve numa canção em moda. À primeira vista aquilo era nada, uma coisa que se insinuava com o Verão que aí vinha. Uma merda daquelas que todos os anos se anunciava para os dias quentes com esplanadas e gajas na praia. Mas era ma explicação escassa que não satisfazia Andrés. Aquelas palavras todas juntas, com a harmonia de uma frase para fagote a anunciar um requiem sofrido, assumiam a forma de uma sentença para ele próprio, ele que temia essas esconjurações do acaso que ajudam a germinar num homem prenúncios de catástrofe, os cenários ideais para despertarem a desordem obsessiva compulsiva que cada vez lhe tomava conta de pequenos gestos que se esforçava por padronizar num derradeiro esforço de controle do bem e do mal. Por isso, plantado no interior das fronteiras do mais bem guardado dos seus segredos, um pensamento organizado daquela forma não podia ser uma coisa desprovida de significado, uma manigância do acaso. Dessas reminiscências epifânicas anunciadas em programas manhosos da televisão que madruga. Nah! Aquele pensamento já estava a afectar a clarividência de Andrés. Não fomos feitos para durar. Todo o dia escoltado pela mais esquerda das ideias. À mesa de trabalho aplicou considerável energia em esquadrias perfeitas entre as canetas e as folhas e o teclado do computador e até do próprio monitor mas foi em vão que procurou acalmar a besta que lhe trauteava aos ouvidos entre o martelo e a bigorna. Quando virou da António Maria do Bocage e começou a procurar um lugar para deixar o carro estava pálido, com as mãos húmidas. A frase formara-se já perfeita no seu cérebro, sem intervenção humana, ditada aos próprios neurónios. A ordem das palavras só de si bastava-lhe para saber que não se tratava de uma mera tautologia: não - aquele era um princípio poderoso que iria fazer sentido a qualquer momento, que o iria apanhar de surpresa mesmo no seu estado de alerta. Talvez ter passado de ânimo leve por tantas páginas da sua própria vida não estivesse agora a ser uma grande ajuda.

Do que podemos saber sobre Andrés, vinte e sete anos. A família é do interior. De uma cidade pequena que só por acidente está no mapa. Depois de uma juventude apagada, contra todas as suas expectativas mas em linha com os analistas da família, acaba o liceu e muda-se para a capital. Universidade acabada contra as suas expectativas mas em linha com os oráculos locais era devido regressar à terra mas era então tarde demais. Como disse um dia o tipo da pala que fazia filmes únicos, já não era possível regressar a casa. Impõe-se à tutela, solta as amarras de uma infância quase feliz e fica-se pela capital, onde tudo é possível. Até que nada do que é suposto acontecer acontece. Para trás o futuro mais do que certo, as lojas do pai, os dias que custam a passar. Os anos que se repetem até tornarem cansativas as caras familiares que desfilam, uma após outra, nas ruas iguais, sem sinais de futuro. Uma pequena cidade de interior, um ponto no mapa patrulhado por irmandades que esconjuram os ventos que dobram a árvore mais alta. Os quotidianos decalcados em trajectos que se querem sem mácula, onde os desvios são atalhados pela horda vigilante que todas as semanas se asperge de água benta e passagens do Livro Sagrado. A escola de gestão tinha sido uma encomenda do pai, como se encomendasse colecções de fatos de Inverno, em lã quente mas não muito grossa. Coisa de burguês abastado sem estirpe nem nervo. Coisa de quem repete à exaustão bom dia sotôr, como está sotôr, obrigado sotôr. Com o futuro traçado a alinhavos do algodão mais branco, foi com inocência que escolheu a capital para prosseguir o sonho. Aos dezoito anos não lhe cabia ainda dizer não. Vê-se mais tarde. Oráculo tremendo o que guardara junto ao peito. Um dia de Verão quente parou o carro à porta da vivenda nos arredores da cidade pequena onde à porta já o esperavam os pais. A mãe com um sorriso largo, o pai de cara cerrada e um tique nervoso no lábio. Ele – o pai – já o sabia. Beijos e abraços desfeitos com Andrés a entregar-lhes a moldura pesada, o papel pardo rasgado a desvendar Andrés… licenciou-se… Graças a favores especiais que atalharam anos de espera, a encomenda acabara de sair das melhores fornadas dos serviços administrativos da faculdade que visitou de vez em quando durante cinco anos. Há três Verões que o pai não lhe fala mas à mãe telefona todos os dias: “Não te preocupes filho, isto um dia destes passa-lhe”. Há três anos que é assim. Não tem namoradas nem vai às putas mas é provido de amigas. O que faz Andrés para se manter? É o que como tudo menos importa. Ganha para a renda e maus vícios que apanhou com boas companhias: um carro a cair e quase descapotável pago com o empréstimo que alguém por erro identificou de habitação – quando assinou os papéis tomou o erro como do banco e não perdeu tempo com explicações inúteis - e um sótão recauchutado com vista para o rio e de onde procura na cidade em baixo as ruas que primeiro o receberam quando era apenas um recém-chegado. O que faz Andrés. Um obscuro editor de uma revista para adolescentes. Um obscuro jornalista. O resto virá por acréscimo.

Procurava ainda a saída do labirinto quando pegou no telemóvel. Tomás, estou aqui em baixo à tua espera. Sobe. Não quero, despacha-te. Tomás abotoou as calças enquanto enfiava os pés nos sapatos de couro avermelhado que comprou nos saldos. Apertado o último botão das calças, deu-se conta de que tinha perdido quilos a mais. E não tinha sido nas corridas de fim de tarde. A vida, com a sua normalidade aparente, quase doentia, não lhe corria na medida do que era exibido pelos índices exactos. Apoiado no lavatório da casa de banho, pressionado pelas buzinadelas de Andrés, hesitou em aparecer escanhoado nesse jantar dessa quarta-feira. Voltou-se para a esquerda, direita, esticou o queixo para cima. Sabia que os restos do dia não iam incomodar os amigos porque não era por eles que deveria manter a aparência da saúde perfeita exigida no dia-a-dia do escritório infestado de tipos impolutos e de boas famílias. Era por ele, sentia-se dez anos mais velho dos que os trintaeseis que tinha e fazer a barba tirava-lhe a década de cima e com sorte era ainda capaz de lhe dar um bónus, como por vezes desejava, quando de sorte se via entre meninas de liceu, coisas que lhe aconteciam e que sem necessidade de prodígios o podiam deitar de costas mas no calabouço mais próximo. “Fuck it” – no que lhe saiu entre dentes num inglês ouvido e reouvido em cenas de filme cabotinas e sem imaginação. Agarrou nos cremes e passou-os pela pele como se acabasse o escanhoado. Sentiu-se fresco e pronto. “Que se fôda” – não conseguiu impedir-se de traduzir o que lhe passara pela cabeça.

No carro, Andrés congeminava agora contra a pátria, como se tudo para ele fosse conflito. Arrumava argumentos intermediados de we are not made to last. Argumentos de que pudesse socorrer-se se a conversa dessa noite versasse o estado da pátria. Assim cantado a solo, era já um libreto imbatível o que tinha entre mãos. Quando voltou a buzinar para o sexto frente não imaginava que a conversa iria versar um tema absolutamente diferente. O mesmo, mas inteiramente diferente.

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