quarta-feira, janeiro 07, 2004

DIAS NÃO SÃO DIAS, MAS COMO VOU AUSENTAR-ME, CÁ VÃO MAIS DOIS CAPÍTULOS

Vinte e quatro.


O desenlace?



O desenlace. Acabava de pousar a garrafa de Luso. Os óculos caíram no lavatório com um ruído seco, gordurosos e corroídos, com bocados de pele agarrados, ao lado dos destroços das refeições dos últimos dias. Levei as mãos à cara. Sob o tacto dos meus dedos a pele era de novo macia e lisa. Senti também as sobrancelhas. Seria assim? Eu era eu, inteiro, de novo? Olhei de relance para os vidros da janela que dava para a varanda. Era eu. Nada daquilo a que me vinha habituando há algumas semanas - como vos disse, qualquer coisa como um Quasimodo especializado em literatura, cerveja preta e solidão.

Tudo me pareceu então tão fantástico que apenas o artigo me testemunhava os insólitos acontecimentos das três últimas semanas. Nada teria acontecido. Eu estava de ressaca e Bloody dormia num quarto de hospital ao lado da mãe. Nada teria acontecido se as angústias do último mês não me tivessem ressuscitado de uma vida morna que eu apenas julgava infeliz. Com um bom banho eu estava pronto para reentrar no grande jogo. Voltei a sentar-me no sofá de couro preto, mas com uma disposição diferente.

Tudo tinha ainda acabado de acontecer, de forma tão rápida e inesperada como o episódio que provocou todo o desenrolar desta história mas, entretanto, já havia ideias que se ordenavam no meu cérebro, sentimentos que me enchiam o coração. A vida era minha de novo e eu nunca mais a veria da mesma forma. Havia uma força vital no ar e era a minha. Era tão estranho sentir-me assim agora como há umas semanas atrás eu sentira o estigma da morte em vida; que esse estigma se apoderara de mim. No fundo, uma coisa e outra eram motivo de riso e de lágrimas. Uma coisa e outra. E agora? Qual era, agora, a reacção própria? Era de mim que se tratava. Não havia reacção. Eu era eu. O velho eu de vinte e nove anos. Seria assim? Corri para a casa-de-banho.

Ali estava eu. Poderia agora voltar a dar-me ao luxo de não me reconhecer no espelho, de me achar um estranho que sabia ser eu. Uma lágrima humedeceu-me os plhos mas não chegou a cair. Depois de tudo sentia uma leveza estranha. Quase que de novo uma não-existência. Mas eu sabia que não voltaria a ser assim. Pus água a correr. Despi o pijama. Abri a arca dos tesouros e procurei o Blue Lines - era assim que eu me sentia. A Sony na sala repetia-me be thankfull for what you've got. Era assim que eu me sentia. Be thankfull for what you’ve got.

Voltei a passar em frente do espelho favorito dos meus olhos. Podia dizê-lo com absoluta certeza, agora, dos meus olhos. Eu estava perfeito. Virei-me de lado. Esquerdo. Direito. Perfeito. Poderia tudo não ter passado de um sonho? God bless cortisona. O meu anjo da guarda não dorme. Ele sabe do que eu preciso, mesmo antes de eu o sonhar. Enfiei-me na banheira. Deixei-me ir até à linha dos olhos, depois totalmente e sustive a respiração.




Vinte e cinco.


Bungee Jumping, um veredicto como outro qualquer



Porquê o fascínio por coisas que não estão inscritas no nosso corpo? Porque estão escritas na nossa natureza. Não é a descida vertiginosa do paraquedista o que o fascina. É a possibilidade de o paraquedas não abrir o que o leva a saltar. E se não abrir, tanto pior. Mas, e se não abrir e se não morrer? Tanto melhor. Por decreto divino, enganámos a morte. Somos necessários. Há um propósito para as duzentas mil gerações que cruzaram os nossos genes. O Sr. Sax que o diga. Já não somos nós, somos a essência da criação.

O Bungee Jumping é a versão soft e cosmopolita dessa luta entre o espírito e as leis da biofísica. A ideia de que se as cordas e os elásticos nos aguentarem a alma iremos para casa com o propósito. Um propósito simples, o de viver depois de enganar a morte e ficar cá e contar. Nada disto tem a ver com diversão.

Esta versão soft era a versão soft do que eu tinha passado. Eu também sobrevivi a isto quando o problema era exactamente não ter morrido. E inteiro. Com menos dez quilos. Foi aqui que eu soube que o futuro existia também para mim. Agora era eu que devia esperar alguma coisa da vida. Talvez a vida esperasse alguma coisa do Andrés Filip, o jovem descomprometido que estava agora disposto a pôr um pouco de alma nos dias que se avizinhavam.

O oxigénio nos pulmões começou a faltar-me e eu não quis mais jogos com o destino. Pus a cabeça de fora e devorei todo o ar que consegui. Depois, comecei a rir-me às gargalhadas enquanto o Horace Andy falava da monogamia. Não podia deixar de me rir como um louco ao pensar nas minhas primeiras agonias. Estive assim até entrar o Tricky Kid.

Fiz a barba e enchi-me de Hugo Boss Balsam After Shave entre o pescoço e a testa. Não me cansava de olhar para mim. O meu pénis recomeçava a contemplar as possibilidades mais perversas. Escondi-o dentro das calças do meu melhor Canali. Liguei o modem e conferi a conta bancária. Os tipos da editora que se ocupam das finanças não falham.

Passei pela janela. As minhas capacidades ópticas tinham desaparecido mas, por outro lado, já não tinha dúvidas nem era consumido por aquela angústia quieta e aninhada no mais fundo de mim mesmo. Também ela agora podia repousar até que o final do século voltasse a desiludir-me. Mas agora não, eu não tinha dúvidas. O parque estava deserto.


PS - Para amanhã prometo o fim. até então

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