segunda-feira, janeiro 05, 2004

Vinte.


Na net ninguém desconfia
que eu sou um cão



Na segunda-feira, por volta das dez horas, comecei a tratar de assuntos inadiáveis. Já tinha passado a fase crítica. Ia ser uma bela semana. O primeiro assunto tinha a ver com os meus oitenta quilos - em quinze minutos preparei e tomei o pequeno almoço; o segundo também - encomendei provisões para mais duas semanas e, desta vez, deixei-me levar pela gula: ostras, profiteroles, lagosta - que eu preparava segundo uma receita de Fritz e Nero Wolf - Don Perignon, Madeira e outros quantos pecados do paraíso pantagruélico. Ia ser uma bela semana.

Por volta das onze horas marquei o número da editora. Atendeu-me uma voz débil que eu não conhecia. De rapariga. Ela também não conhecia a minha voz e atrapalhei-me ao explicar quem estava deste lado da linha. Não estava à espera daquilo. Normalmente era reconhecido e rapidamente passado ao sr. director que não tinha linha directa e insistia nas propriedades cancerígenas do telemóvel. Senti-me quase um estranho e não havia maneira de fazer entender à pobre da rapariga que o sr. director tinha sempre toda a disponibilidade do mundo para mim, que eu fazia parte do Conselho Editorial e que o nome que aparecia todos os meses a assinar a terceira página da revista era o meu - a fotografia também era a minha, mas era uma vaidade do sr. director. Ela não parecia entender este palavreado e acabei por pedir simplesmente para me ligar com a sra. D., a nossa inestimável relações-públicas.

Passada a chamada, antes ainda de me ligar ao sr. director, fiquei a saber que alguém tinha ligado para a editora para falar comigo. A senhora D. acabou por lhe dar um dos números de minha casa, pelo que me pediu desculpa. De facto, não era comum nem eu achava aconselhável. "A pobre senhora começou para aqui a chorar, Andrés, eu não sabia o que havia de fazer. Pareceu-me sincera. E depois, assegurou-me que te conhecia muito bem, bem até demais, disse ela, não sei o que quis dizer, desculpa mencioná-lo Andrés, mas achei que era importante dizer-to, e que tinha o teu telefone mais não sei o quê, que o tinha perdido. E disse-me tudo isto a soluçar, compreendes? Eu também fiquei aflita e acabei por lhe dar o número."; "Não interessa. Não se preocupe. Até para a semana. Um beijinho."

Cinco minutos depois já tinha explicado ao pai da Patty, diminutivo de não sei o quê, que não estava muito bem e que muito provavelmente não poderia sair de casa toda a semana. "Mas já foi ao médico sr. doutor?", "Não se preocupe sr. director."; sosseguei-o e despedimo-nos educadamente, como convém. Oitenta quilos a peso de ouro sempre ditavam a sua lei. Quando eu pudesse voltava ao trabalho. "Beijinhos à Patty."; "Falou de si no outro dia."; "Eu telefono-lhe depois."

Enquanto tratava destes assuntos vi ao longe algumas nuvens que se estendiam em slow motion por cima do parque e que pouco depois me escureceram a face contra o vidro da janela da varanda. "Não se preocupe, sr. director." Não há-de ser nada. "Beijinhos à Patty.", não imagina onde, sr. director. Levantei-me e aproximei-me do vidro duplo onde semanas atrás eu fumara o último Lucky Strike da noite e alguns dias depois contemplava apavorado a imagem que via à minha frente, decalcada contra os contornos escuros da minha cidade. Desde então Eu nunca deixara de ser "Eu", sei-o agora. Mas não me era a mim. Era apenas eu a lutar por mim, evitando o confronto físico e o julgamento dos olhos da rua.

Porque esta ia ser uma grande semana andei toda a manhã electrizado, num estado quase neurótico que me obrigava a sentar-me e a levantar-me de forma impulsiva. Eu dispunha da minha vida como queria, apesar de tudo. A liberdade que o meu estatuto me proporcionava era para mim uma coisa formidável. Inexplicável, mas formidável. A estima profissional que o sr. director tinha por mim não conhecia limites e eu apenas me preocupava em esticá-los até ao infinito. Apesar de tudo a vida era uma festa. The party will go on. Esta era a vantagem de eu me achar uma merda e sofrer de depressão contínua. Esta semana ia telefonar aos meus pais e dizer-lhes, "Está tudo bem.". Para dizer a verdade, eu só desejava ser feliz como se não pudesse ser outra coisa. Alguém já o disse e era como se o sussurrasse agora ao meu ouvido.

Fiz mais café. Era a única coisa que me acalmava nos grandes momentos. Café seguido de um Lucky Strike. Toasted. Liguei o Pentium e fui ter com os meus amigos. O Eric e a Kate (afinal sempre pertencia ao género feminino) estavam a discutir porque ele tinha começado a andar com uma miúda que era aluna dele na Universidade. Parece que eles tinham tido qualquer coisa durante o tempo em que eu não apareci. A discussão arrastou-se ao resto do grupo e como eu não me queria meter naquilo fiquei calado e não disse nada. Sentei-me na chaise-longue enquanto assistia ao arrufo. Foi então que, inesperadamente, o Songo-Han me perguntou, "Gustav - era o meu nome de guerra -, o que achas disto? :)". Eu ainda não tinha entrado. Como ele sabia que eu estava ali era algo que escapava às leis que vêm regendo o nosso mundo. Ele não era como os outros. Acabava sempre por me surpreender, o que criava entre ele e eu uma relação especial. Respondi, "No idea ;)"; "E o teu problema. Estás melhor?". O espírito dele pressentia-me. Aquelas coisas que eu vi sobre os orientais e sobre os discípulos de Shaolin quando aos seis anos fui pela primeira vez ao cinema com dois vizinhos mais velhos devia ser verdade. "Yap, falamos depois".

Para dizer a verdade, era impossível ouvirmo-nos a todos, tal o nível que atingia o calor da discussão sobre o arrufo de Kate com Eric. Foi então que o meu telefone sem fios tocou. Tinha-me esquecido de o desligar depois do telefonema para a editora. Era F., a amiga de cuja casa eu saíra com as calças na mão havia um mês.




Vinte e um.


F.



Pois é, meus caríssimos senhores. Há muito tempo que eu não pedia a vossa atenção. Mas não adormeçam, é ainda para vós que conto estas últimas semanas da minha vida. F. estava bastante transtornada, quase histérica. Tive de gritar-lhe para que se acalmasse mas, dado o seu estado, não tive coragem para lhe dizer o quão desagradável achava aquela gracinha de arrancar o meu telefone à senhora D.; sempre achei que o que tinha para tratar com as minhas namoradas devia ser feito frente a frente, de pé, deitado, enfim, fisicamente e nunca por telefone. Mas desta vez F. tinha bons motivos para ter feito uso de todos os expedientes para desencantar o meu número. "Ele morreu, Andrés, morreu." Morreu? Quem? "O Samuel morreu... morreu hoje." Não fazia a menor ideia sobre quem estava a falar. "Quem?", "O Sam, o meu marido.", e deixou sair um gemido, arrepiando o meu silêncio por largos momento.

Recomeçou então a chorar, suspirando descompassadamente. Nunca soube o que dizer nestas situações, especialmente quando o morto também não me dizia nada a mim. O que era o caso. Nem sequer sofria com isto que acontecia com F., ou melhor, com Samuel. O que poderia eu dizer?, digam-me. O que deveria eu dizer? Porque há coisas que se devem dizer nestas alturas. O quê? Nada. Fiquei quieto no meu silêncio a ouvir F. e entre o choro e os vazios pensei na minha falta de emoção em certas situações que me deviam merecer mais consideração. Já o disse e volto a dizê-lo, eu não podia deixar que este final de século me arrefecesse a alma como parecia ser o grande objectivo colectivo.

Vá, acalma-te. Conta-me o que aconteceu. Pouco depois, conseguiu falar.

- Ele tinha-se cortado numa das mãos há dois meses, na serração. - O marido dela era madeireiro. - E a mão infectou, e ele nunca ligava a estas coisas - calou-se e recomeçou a soluçar.
Então, querida, estou a ouvir-te.
- Não me chames querida! - gritou-me. - O meu marido morreu. Não me chames querida - e continuou a soluçar.
Tapei o bocal com a mão. - Merda! - e pedi-lhe desculpa.
- Ai, Andrés. O que vai ser de mim?
Não há-de ser nada.
- Eu avisei-o - entretanto, começou a chegar qualquer coisa ao meu faxe e o ecrã do PC piscou um par de vezes; pedi-lhe um segundo para tratar disso e, pouco depois, ela continuou. - Era um casmurro.
Mas diz-me, como é que uma ferida na mão pode...
- Não era uma ferida - interrompeu ela. - Era um corte.
Okay, desculpa. Como é que um corte... - perguntava eu outra vez, mas ela começou a falar sozinha, a murmurar coisas que eu não percebia, até que, mais nitidamente para os meus ouvidos, se lamentou por o marido ter continuado naquele emprego, que ela achava perigoso e que era mal pago, depois repetia que ele nunca lhe dava ouvidos e isto e aquilo. Depois, de um momento para o outro, calou-se, aclarou a voz e começou a explicar-me serena e pausadamente que a infecção alastrou pelo corpo e o marido, Sam, ficou com os músculos rígidos chegando ao hospital com grandes dificuldades respiratórias. Morreu poucas horas depois de coisa incerta. Aguardava o relatório da autópsia. Acabei por lhe prometer que passava lá em casa, talvez na semana seguinte. Ela sentia-se muito só e triste e precisava de um ombro amigo. É claro que quando fosse, se fosse, não levaria apenas o ombro mas todos os meus oitenta quilos. É que, apesar de tudo, apesar das lágrimas, apesar de ser uma boa rapariga, ela não era uma boa mulher, quer dizer, não o foi antes e eu acreditava que ela continuava a ser a mesma F. que eu visitava de vez em quando à sexta-feira.

PS - Amanha não há mais. Mas depois de amanhã já há mais outra vez. Até lá

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial