domingo, janeiro 04, 2004

Dezanove.


Por vezes ainda sonho que a mão de Deus
me acaricia a face. Como se a vida fosse
mais do que isto. Mais limpa do que o vento.



Por volta dessa última semana, num desses dias, depois de me abandonar aos meus pesadelos, abandonei-me ao único prazer horizontal que me restava. Deitei-me e fiquei quieto na cama. Eu precisava de dormir. Aliás, era tudo o que eu precisava agora. Dormir. Dormir o mundo inteiro e acordar de manhã com o Sol a bater-me na cara. Tomar banho e ir trabalhar. Era tudo o que eu precisava, meu deus. Apenas isso e só depois o resto. Fechei as cortinas, sintonizei a X e deixei-me estar com os ambientais nipónicos a pairarem sobre mim. Eu costumo adormecer sobre o lado direito - por causa de uma estupidez que ouvi quando era criança sobre o dormir em cima do coração - e acordar sobre o lado esquerdo. Desta vez fiquei estendido voltado para o tecto. Faltam cento e cinquenta dias e vinte e duas horas para... qualquer coisa que eu não cheguei a perceber, anunciou a locutora de serviço após o sinal horário das duas. Depois dos nipónicos vieram o dub e as novas etiquetas nova-iorquinas. Há muito tempo que eu não sintonizava a minha estação favorita e a primeira coisa que fiquei a saber depois de marcar o 91.6 foi o seu fim anunciado sem me terem consultado. Do que eu precisava era de dormir. Baixei um pouco mais o volume da mini sobre a minha cabeça e rodei mecanicamente sobre o lado direito. Acabar com a X. Já agora acabem com os hospitais, com os bombeiros e com os homens do lixo.

O meu problema, por esta altura, era que o meu cérebro disparasse novamente. Que começasse a colocar-me questões sem resposta. Voltei-me para o lado esquerdo e senti as batidas do coração contra o colchão, o sangue a fluir por detrás das orelhas e o pijama a colar-se-me ao corpo. Todas as minhas veias bombeavam sangue contra a almofada e contra os lençóis e este atirava-se depois violentamente contra mim. Envenenado e com um sabor amargo. Por fim fechei os olhos tentando não pensar em coisa alguma mas pequenos detalhes vinham-me à memória e as cenas das últimas semanas sucediam-se umas às outras, incoerentemente. Estava como que numa espécie de meia sonolência.

Esperneei um pouco, abri momentaneamente os olhos e voltei a fechá-los. Mantive-me assim durante largos minutos, no limiar entre mim e a minha ausência revendo momentos vagos, sem qualquer peso, do último mês, a minha própria imagem com os óculos, páginas e frases do artigo repetiam-se no meu cérebro compondo ideias quase tão absurdas como um Borges facsimilado de Dante que me saudava desde o parque em frente, a seu lado a rapariga Chanel começando a levitar seminua em direcção à minha varanda e eu, sentado, com a minha mãe a pôr-me mercurocromo nos joelhos. Quando a pequena burguesa me pegou na mão, que a minha mãe lhe estendia, assustado, pressenti-lhe um sorriso lúgubre nos dentes, um olhar malicioso e dissimulado. Subitamente, os seus lábios tremeram e soltaram uma gargalhada estrépita. Ela pegou-me na mão e o seu rosto era o rosto de F., voltei-me para trás para me refugiar nos braços da minha mãe mas era Isabel que ainda segurava o algodão avermelhado. Com o pânico, despertei. Levantei-me e aproximei-me da janela através da qual eu podia ver, de esguelha, o local da cena que acabara de viver. Depois de afastar totalmente as cortinas, abri-a e ofereci a cara e o peito ao ar glacial que purificava o quarto. A umas dezenas de metros, um grupo de rapazes gritava para a noite de dentro de um descapotável, brindando com champanhe em taças de cristal. Fechei as cortinas e vagueei um pouco entre as almofadas no chão. Eram três horas. Voltei a deitar-me.

Pouco depois um sino soou longe, perdido algures naquele sono intranquilo, para logo de seguida o som quase-nítido da campainha da minha casa me arrancar do torpor em que me encontrava. Levantei-me e, sem ligar as luzes, cheguei à porta. Abri. Na minha frente encontrava-se um vulto desconhecido. Quem diabo me batia à porta àquela hora. Na contraluz do corredor era uma figura minúscula e negra, encurvada e quieta. "O que...?", comecei, mas o vulto levantou a mão e eu calei-me. Acendi a luz da sala. Como? Peter Lorre.

Meio adormecido, fiz-lhe sinal para entrar. Não entrou e voltou a levantar a mão, agora com a palma voltada para mim. O sobretudo cinzento desapropriado para a época mas apropriado para o frio era o mesmo daquela primeira noite. Apenas lhe queria dizer que eu não falhei. Naquela noite, eu não disse que falhei. Eu não sabia o que fazer; antes de se voltar e desaparecer, acrescentou, Ah!, creio que perdeu isto. Entregou-me qualquer coisa embrulhada em papel de jornal. Desemaranhei as folhas. Tinha nas mão velhos poemas meus que eu tinha a certeza de ter queimado mas que estavam agora ali à minha frente escritos numa caligrafia que não era a minha. Amarrotei os papéis e, como começava a afastar-se, gritei-lhe da porta qualquer coisa pouco coerente. Como não se voltou e começava a descer as escadas, corri atrás dele. Quando lhe estendi a mão, já no patamar do rés-do-chão, ele voltou-se para mim, sorriu, e abriu-me a porta do apartamento dos consierges. Todo este tempo o velho conhecia-me e eu não sabia que era ele que administrava diariamente o meu lixo. Entrei. O ar tinha arrefecido repentinamente e soube-me bem encostar-me a um fogão de lenha antigo. O seu apartamento era bem mais modesto do que o meu mas tinha um aspecto castiço porque era completamente forrado a madeira. Fui até à janela do fundo por onde entrava a pouca claridade da casa. Eu não costumava acompanhar as fases da Lua mas tinha a sensação de que não havia Lua naquela noite e ali estava a roda de queijo mais brilhante que eu alguma vez vira. À minha direita, uma outra visão até então interdita. Arranha-céus negros recortados como popas de navios encalhados num mar negro de alcatrão que nada tinham a ver com a minha cidade. Mais à direita ainda, néons que me recordaram as paisagens nocturnas do Hopper. Depois, inesperadamente, à esquerda, estendia-se um manto fofo que eu presumi que fosse verde durante o dia. Era inexplicável como eu desconhecia por completo aquela paisagem.

Depois de me mandar sentar e fechar a porta, tirou o sobretudo e o cachecol e pendurou-os à entrada. Sente-se, vamos jantar. E começou a descascar batatas. Aquele gesto despertou-me subitamente a memória e, então, olhei em volta mais atentamente. Era a casa do Eric, do velho na montanha. Impecavelmente limpa e arrumada, como nos contou Eric. Quando me voltei, o velho acabava de pôr dois pratos na mesa ao pé da estante preenchida com volumes antigos. Então, um personagem sinistro e escuro saiu de um dos cantos da casa, acocorado, com um revolver apontado para os meus olhos. Era jovem e tinha o cabelo negro, comprido e despenteado e vestia o mesmo sobretudo que o velho pendurara por detrás da porta. Quem avançava para mim era eu próprio. Com um olhar esgazeado e um sorriso tenebroso a distorcer-me a boca. Recuei quanto pude, quando a arma me tocou a face acordei. Ao acordar, sem o saber ainda, eu tinha feito a mais vital das escolhas.

"Faltam cento e cinquenta dias, dezanove horas e...", eu tinha estado a sonhar todos os minutos daquelas últimas duas horas.

Por momentos fiquei quieto, travando uma luta silenciosa com o sono, fugindo da cabana e do torpor semiconsciente que me aliciava entre as escadas e a floresta. O sopro da manhã impelia os vapores da aurora que fugiam diante, de sorte que de longe reconheci a ondulação ligeira do mar. Daquele mar que eu não conhecia ainda mas cujo pressentimento me era, dadas as circunstâncias, profundamente agradável. Profundamente gratificante. Em poucos segundos de sono eu tinha feito a mais vital das escolhas.

PS - Entretanto, na TV continuam maminhas ao léu e perninhas a dar-a-dar, até logo

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