quarta-feira, janeiro 07, 2004

Vinte e dois.


Pol...



Faltam três dias para tudo acabar. Estou sentado no chão encostado ao sofá de pele negra, tenho um e-mail de Pol nas mão e tento ordenar as ideias. Havia uma lógica simples em tudo o que acontecera e eu tentava limpar os espinhos à rosa que o destino me enviara. O aquilo que me afectara, segundo Pol, autoridade científica, era idêntico às descrições de sintomas dermatológicos de antigos guarda-florestais provocados por uma seiva que se encontrava em determinadas espécies de plantas; eu acabava de receber um telefonema de F. e o marido dela, o mesmo que me acertara no olho, acabava de morrer com um corte na mão que resultou "em coisa incerta". A mão que me acertou no olho era, muito provavelmente, a mão onde começara a coisa incerta. Pois bem, mais incerto do que eu não devia existir ao cimo da Terra. Pol falava ainda de cortisona e de me ter batido à porta havia uns dias. Não perdi mais tempo com ilustrações psico-esotéricas.

Liguei o número do consultório, falei com ele, pedi-lhe cortisona e não lhe respondi a nenhuma pergunta. Disse-lhe que com sorte ainda jantávamos nessa semana. A cortisona chegou-me três quartos de hora depois num ritual que se tornava cansativo e quase impraticável à luz do dia. Injecções e comprimidos. Comecei a tomá-la de imediato.

O maior problema, então, foi o da escolha. Injecções ou comprimidos. Depo-Medrol ou Medrol. Eu apostava tudo no segundo, mas a literatura inclusa empurrava-me para o primeiro. É óbvio, até para leigos como eu, que uma injecção é mais rápida, mais eficaz, mais tudo. Mas também era mais do que óbvio para mim que não gosto de objectos de metal introduzidos no meu corpo, ainda que por breves segundos - o que nem era obrigatoriamente certo no caso da cortisona, no folheto que vinha com as ampolas só faltava dizerem "Injecção a ministrar a dois milímetros por hora, não se brinca com os corticosteróides". Havia ali mais literatura impressa do que na maior parte dos contos de Borges. Aquilo devia dar que pensar ao comum dos mortais mas não assustava o ex libris das coisas incertas.

Desembrulhei todos os instrumentos de tortura e enchi a seringa. Depois, retirei a agulha, fui sentar-me no sofá, segurei um espelho entre os joelhos, arreganhei os dentes e espetei-a no meio da testa. Quer dizer, tentei. Tentei, mas tudo o que consegui foi dobrá-la como se fosse uma palhinha de plástico. Entrou uns dois centímetros, dobrou e quase partiu. Rangi os dentes e soltei um gemido; uma reacção psicológica já que, apesar de não gostar de intrusões metálicas no meu organismo, foi com alívio que verifiquei que a agulha não me provocou qualquer tipo de sensibilidade. Para dizer melhor isto que estou a dizer, posso garantir-vos que não senti absolutamente nada.

Como não conseguia arrancar a agulha retorcida com as mãos, fui à cozinha, procurei numa gaveta ao pé do forno, tirei um alicate, voltei a segurar o espelho entre os joelhos e, com uma calma de morte, puxei o corno em miniatura que arrastou consigo um líquido denso de cor amarela-esverdeada. Por esta altura já nada me surpreendia. Mas isso, os senhores já o sabem. À segunda agi com a convicção de quem sabe o que está a fazer. Foi assim, o ritual que repetiria nos dias seguintes depois do pequeno-almoço e lanche: retirei o ar como se vê fazerem nos filmes, com uma pequena ejaculação aquosa que eu esperava não fosse estéril; como não sentia qualquer dor apliquei a agulha já com a seringa; peguei-lhe pela base entre o polegar e o indicador, onde esta se une com a seringa, segurando a seringa entre os outros dedos e a palma da mão e fiz pressão, devagar, até a agulha começar a desaparecer no meio das lentes. Dado que a minha qualificação bio-genética continuava a dar-me como um animal semi-emocional não consegui evitar um pequeno gemido. Os primeiros milímetros acabariam sempre por ser os mais duros porque era à superfície que a pele estava mais calejada. Depois de a agulha ter desaparecido totalmente pressionei o êmbolo devagar e quando este chegou ao fim puxei a agulha para fora. No mesmo ritmo cauteloso.

Abençoada cortisona. Lamento muito por todos os sofredores das mais diversas maleitas que tenham morrido antes de 1968. Logo no dia seguinte o meu corpo acordou regenerado. Nem sinal dos quatro volumes de Luckies consumidos pelo trabalho das últimas semanas. Senti um bem-estar quase pecaminoso. Sangrei um pouco do nariz e vi o meu corpo a inchar por fora e a portar-se como cortiça por dentro mas o que era isso comparado com a ausência de matéria? Admira-me não ter saído em suspensão pela janela.

Como já era noite, comi qualquer coisa, engoli duas ostras com sumo de limão e fui-me deitar. Isto estava a acabar-se. Para já, acabava-se a segunda-feira.




Vinte e três.


... cortisona e o meu anjo-da-guarda.



Naquela última manhã eu estava deitado na cama, estendido de pernas abertas, os braços ao longo do corpo. Tinha acabado de acordar e pelo suor na minha testa, que eu sentia escorrer até às orelhas, deviam estar uns trinta graus. Era quase meio-dia, o quarto estava escuro, as janelas abertas e as cortinas fechadas. Adormeci e acordei várias vezes até voltar a cair num sono pesado novamente. Estava sob o efeito da cortisona há quarenta e oito horas, fosse o que fosse o que isso queria dizer.

Por volta das três horas senti uma presença no quarto. Uma luminosidade forte ao fundo da cama do lado direito. Primeiro, pensei que fosse o Sol - que nasce do Oriente, de frente para a minha sala - que tivesse já galgado o prédio na sua fadiga diária voltando agora para o Ocidente; saudando-me na janela do meu quarto. Mas não. Este Sol tinha asas e deslizava agora lentamente num perfeito travelling ao longo da cama sobre mim, na minha direcção. Eu estava talvez um pouco adormecido pelas horas a mais de sono e pela cortisona; a situação era mais uma vez absolutamente estranha; a frequência das batidas do coração que eu vira dias atrás sob a pele mantinha-se baixa; nenhum músculo do meu corpo reagiu à adrenalina produzida à pressa e que me corria nas veias; nenhum grama do meu corpo reagiu àquele súbito apelo do inesperado; tudo aquilo escapava à minha consciência e eu recebia o que nunca tinha pedido, o que não tinha a certeza de querer. E no entanto, senti-me em paz e, sabendo o que sabia sobre mim, senti-me protegido. Aquela luz era quente e deixava-me seguro. Nada podia temer. Era como se tivesse estado à espera daquilo toda a minha vida. Havia um Sol no meu quarto e eu sentia-me protegido. As asas abriram-se-lhe com um sorriso e uma mão acariciou-me a cara. Adormeci de novo.

Quando acordei, vi através das cortinas o Sol a fazer o caminho de volta a casa. Levantei-me e abri as janelas deixando entrar alguns graus de calor no quarto. Eram qualquer coisa horas e trinta e cinco minutos da tarde. Os frascos de cortisona do lado esquerdo da cama escondiam o indicador do relógio-despertador Siemens com caixa em pau-preto. Fechei a janela e liguei o ar condicionado.

O Canal 16 passava um policial negro a cores com um Silvester Stallone vinte quilos mais gordo, amparado por dois ou três génios da 7ª Arte. Segundo as indicações do Pol teria de tomar nova dose de Depo-Medrol às seis. Seis. Eram seis. A sétima injecção. Depois de deitar a agulha e a seringa no lixo bebi um terço de uma garrafa de Luso. A Evian tinha-se acabado.


PS - Como diz o senhor Andrés, isto está a acabar-se. Até já

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