quinta-feira, janeiro 08, 2004

Vinte e seis.


O desenlace.



"(...) Enquanto isso tem lugar
em mim o advento do que
me define,
e o barro de que sou feito
coze por dentro."
Luís Quintais


Desenlace. Acabava de acender um cigarro, aproveitando para me reflectir no Zippo prateado que encontrei no meio das almofadas do sofá de pele preta quando me entra pela casa adentro Paulina. Quem é Paulina? Como pode Paulina entrar no desfecho da história? Estará o sr. Andrés a introduzir personagens-chave nas últimas páginas, coisas que ocultou propositadamente a nós, leitores, de forma a torná-las em trunfos decisivos num final que, dessa forma, nunca nos poderia passar pela cabeça? Estará este tipo a usar o truque mais reles dos escritores de policiais? Não, meus senhores. Primeiro, esta história não tem final; apenas a mim afectará e uma vez lidas as palavras "pelo menos por agora" nada mais poderá fazer por vós. E depois, esta história não tem a ver com personagens e mais não digo.

Quem é Paulina? Quem é esta delicada, dedicada e gorducha criatura que me entra pela casa adentro. Quem é esta velhota tão querida para mim que eu abraço agora com tanta força e faço rodopiar no ar antes de ela se agarrar às minhas bochechas perfeitamente barbeadas e untadas com bálsamo de reis? Paulina é a governanta dos meus pais e foi a minha ama até aos dezanove anos, até que a Universidade me arrancou das suas mãos sem idade. É verdade, só naquele momento me lembrei, eu não tinha telefonado aos meus pais no dia que era reservado para lhes telefonar, o meu telefone estava desligado grande parte do tempo e ninguém sabia nada de mim. (Como vêem, nada na manga. Provavelmente, já os senhores cerraram os punhos nas cadeiras, na esperança de que eu não faltasse ao compromisso filial. Compreendo a vossa preocupação mas faltei e fiquei em falta.)

O que sucedeu então foi muito simples. Os meus pais, preocupando-se comigo como só eles se preocupam, enviaram-me o seu anjo pessoal, Paulina. E lá veio ela, metida no primeiro voo - e como ela detesta aviões - acudir ao seu menino. Querida Paulina. Mais nova sessenta anos e casava-me hoje. Talvez ainda vá a tempo.

Paulina, casas comigo? Oh!, menino, deixe-se disso - e largou aquele agradável acorde de gargalhadas que me fazia voltar ao seu colo gordo e macio. - O que é que lhe aconteceu? Deixou-nos a todos tão ralados.
Ora, nada, querida, nada. Tive uns problemas com o último artigo.
- Mas nem telefonar, nem nada.
Abri muito os olhos e fiz beicinho. - Não foi por querer - eu voltava alegremente à minha infância. - Vou já telefonar-lhes.
- Não se preocupe, menino, eu já liguei a dizer que está tudo bem - fez uma pausa enquanto nos sentámos no sofá. - Mas não está, pois não?

Eu não disse nada mas sobressaltei-me. Não estaria ainda o meu caso a salvo? Haveria ainda algum indício que me tivesse escapado na minha fugaz passagem pelo espelho. Algo capaz de revelar o mais temível dos meus segredos?

- Quando fui ao quarto, de manhã, o menino não estava com bom aspecto, estava a dormir com os óculos de sol e quando lhe pus a mão na cara parecia arder em febre. Não o quis acordar mas venho agora das compras e aproveitei para lhe trazer Aspirinas. Pode ser uma dessas gripes de Verão. Nunca se sabe. - Eu ouvi tudo aquilo e depois pus-me a rir. Não estou com bom aspecto, então devo estar óptimo.
- De que é que o menino se está a rir?
Nada, meu anjo. Anda, vamos jantar que eu conto-te tudo. Deixa-me telefonar ao Pol. Lembras-te do Pol, não lembras? Hoje, vamos jantar os três. Vá, vai-te pôr bonita. - Liguei a Technics. - Tenho aqui um disco dum senhor que tu gostas muito.
- Oh!, o Fausto. Que bom.

Conferi a conta bancária mais uma vez. Aqueles tipos não falham. Entretanto, liguei para a Editora e deixei o seguinte recado: "Está cá a Paulina. Diz que não estou com bom aspecto. Preciso de três dias. Adeus". Meia hora depois, último dia daquilo, eu pegava na mão de Paulina e descíamos as escadas. No rés-do-chão voltei a cabeça na direcção da porta ao fundo e imaginei, com o cérebro meio encolhido e o coração apertado, um velho a preparar o seu jantar. Sem culpas. Com toda a dignidade do mundo. Chegámos à rua.

Estávamos a entrar no Verão. Decididamente. Não havia nada a fazer. O Sol, já a meio gás, despia-nos e contornava-nos os corpos e as faces acendiam-se em tons dourados. Estamos agora a dar a volta ao parque em direcção aos táxis. A luz continuou a ferir-me de todas as direcções. Assomou primeiro através das esquinas e das fachadas altas dos prédios e, depois, quando no meu passo de pessoa de bem condicionado pela idade de Paulina passávamos a ponte da Rua Equenot, cercou-me os sentidos e invadiu-me até às entranhas. Até às entranhas, meus senhores, sem truques linguísticos. Senti-a na boca e nas narinas, para depois se instalar, cálida e quente, no meu estômago vazio. Com um ritmo descuidado permiti que entrasse e saísse dos pulmões fartos do pó da casa. Tudo era magnífico e purificador e Paulina sorria para mim, agarrada ao meu braço. Eu seduzia a luz e o ar à minha volta tinha o magnetismo da angústia esgotada nas últimas semanas. O ar que eu movia comigo era condicionado pela ressurreição da própria vida.

Saímos do táxi à porta do prédio onde vivia o Pol. Pouco depois ele sugeria que apanhássemos outro táxi. Disse-lhe que não. Que tenia ganas de caminar. Na altura, isso era, para mim, a suprema libertação. Andar às voltas pela cidade até ficar farto. Paulina não se importou. Tomei-lhe o braço à minha direita e fiz o mesmo com Pol à minha esquerda. Começámos a descer a Calçada do Poço dos Negros. A tarde estava agradável. Era ainda aquela luz que apenas a minha cidade tem. Parecida com a luz tardia da rua onde ainda estão as pedras da minha infância.

Grupos de pessoas e famílias inteiras caminhavam na direcção de um centro comercial que abrira durante a minha quarentena. Estas coisas nascem como cogumelos. Seguimos os três, abraçados, tagarelando alegremente contra a multidão, em sentido oposto à grande turba. Era já o fim do dia com o meu Sol favorito a anunciar o Verão mais quente dos últimos anos. O Pol perguntou-me:
- O que era aquela treta da cortisona? Já estás bem?
Não, ainda não estou bem, mas um destes dias ainda vou ser feliz. Claro, ou se é feliz ou não se é nada.




Vinte e sete.


O Sol conduz-nos pelas ruas



Ao dobrarmos a esquina da 17 com a Dom Carlos, Paulina perdeu-se-me do braço por um momento. Ao passar a mão pelo cabelo, os dedos roçaram ao de leve a testa e um calafrio arrefeceu-me os pulmões e dilataram-se-me as narinas. Acima do sobrolho esquerdo a pele estava dura e áspera. Olhei-me nos vidros de um carro e as veias nas têmporas encheram-se de pânico. Compus a gravata e fechei o casaco. O Sol varria a avenida e a luz era de sábado de manhã. Eu não podia querer que tudo não passasse de um sonho. Estou calmo. Olho em volta. Isto é a minha vida. A cidade não me vira as costas. Quem me passa na rua, passa, passa - apenas. Paulina e Pol trocam um abraço. Estamos a chegar à esplanada do Papa-Açorda. Recupero-me. Estou a racionalizar as coisas. Estou a traçar o mapa da minha vida para os próximos vinte anos, aproveito e abraço os meus fantasmas mais próximos. Volto a tocar no sobrolho. Nada me diz que eu deva desistir, que eu deva iludir o desafio. Do que eu não era agora sou isto. A Paulina toma-me o braço.

Ter medo é bom. Faz-nos correr. Não são as garras de combates antigos marcadas no dorso o que teme a presa; é a imagem do predador que a mantém alerta e viva. Não, não é o sonho, nem o episódio, é a adrenalina que corre nos limites esconsos dos dias sós.

Estou a sentar-me com um despropositado brilho nos olhos. Isto vai ser para sempre. Para me obrigar aos dias. A vida não é bela, quem disse o contrário? Temos luta. Pol olha-me e sorri. Duas pequenas na mesa do canto. Às 5:00 horas. Escrevo 10 num guardanapo e levanto-o como os júris dos concursos. Paulina reprova. O Sol abraça-me como se fosse tudo o que eu precisasse até voltar, numa hora destas, a sentir uma pontada no peito, e eu volto a iluminar-me com um ar sedutor, o sobrolho franzido à Erroll Flynn. O Sol não me abandona para já e sem que o Pol me pergunte nada eu digo-lhe, enquanto pedimos o melhor de uma reserva de trincadeira, "Ou se é feliz ou não se é nada". Pelo menos, por agora.

- Fim -

PS - Agora vou ausentar-me uns dias. Até já

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