Dezassete.
Só. Com os meus demónios.
Nada disto era, afinal, novo para mim. Apenas assumia outra face. O que já antes me preocupara, e que eu tentei explicar numa página que antecederia esta mas que o meu bom senso acabou de rasgar, não fora a Verdade. Eu continuava a ser o menino mimado de antes, o filhinho da mamã, o único do seu colinho. É o desígnio de Deus o que me preocupa. O desígnio que Deus tem para mim; e sob que forma. Como se existisse uma verdade pessoal. Bem, não terá sido esta uma consideração absolutamente absurda? Como se eu me tivesse anatomicamente por uma súmula bíblica onde o pecado e a redenção se estivessem a escrever pela primeira vez? De facto, vejo agora tudo isto como uma fantástica efabulação a que o meu cérebro apenas se permitiu pelo desespero que tão tardiamente na vida me exigia vassalagem. Mas de uma coisa estou certo, foi apegado ao princípio destas ideias que consegui suportar aqueles últimos dias da terceira semana.
Não passava de uma medicina preventiva, claro. Analisando bem as coisas, facilmente acabaria por chegar à conclusão de que limbos literários ou litúrgicos não tinham sido o meu caminho; não havia precedentes; o meu caso era humano, ao contrário do que me parecia. Havia, nessa fase, que dessacralizar o grande eu, único eu, que sempre pensara ser. Mas EU não queria nem estava em condições de fazer esta análise.
No fundo, por mais que eu tentasse enganar-me, sabia que a lógica de tudo aquilo permanecia escondida algures. Oculta, mas não como uma manifestação do sobrenatural. Era eu, combinação única do cruzamento de pai e mãe, igualmente únicos, quem tinha de entender-se comigo, de me suportar e decidir-se. A quê, à excepção da possibilidade Pol, não o sabia. Mas era de mim que se tratava. Eu estava só com todos os meus demónios.
Ainda com a imagem daquela fêmea a aferroar-me o cérebro e o parque vazio com dois montes de granito a erguerem duas estacas salpicadas de cimento, entrei. Vendo bem, estava tão perdido ao pensar aquelas coisas que acabo de referir como agora que as escrevo. Afinal, segundo aquela lógica, não me considerei eu um eleito absolutamente invulgar? Não estarei, orgulhoso, a fazê-lo agora mesmo? Provavelmente, mas como os senhores já compreenderam, esta não é uma situação comum. Não quando nos passa pela cabeça que uma semelhante mutação possa, de facto, estar apenas a manifestar a nossa verdadeira natureza. Talvez revelando-nos ao mundo como aquilo que somos, talvez roubando-nos a sanidade como uma prova de fogo, um Fénix moribundo a quem um espelho repete que não é nada. Talvez qualquer coisa. Talvez isto acontecer ao meu vizinho do lado fosse melhor ideia.
Dezoito.
As entranhas ardem-me como a um demónio
enquanto durmo um triste sono na beira da cama
Dormi breves segundos, talvez horas, e quando acordei estava farto de viver. Alguma coisa me sucedera durante o sono e foi a custo que me agarrei de novo àquela angústia que me obrigava a lutar pela vida.
A verdade, tenho de confessar-vos, é que por esta altura sentia a brutalidade da revolta do meu espírito. Talvez vos tenha dado uma ideia errada de sobriedade. Mas não. Esta coisa devorava-me por dentro num remorso miudinho que tomara conta de mim. Tornei-me bruto comigo mesmo, golpeava-me com os punhos na cabeça. Era um demónio adormecido dentro de mim que se recusava a conviver com a deformação e me levava a uma tosca tentativa de aniquilação física. Esperava que eu me deitasse ou que estivesse esticado a ouvir Poulenc e vinha reclamar aquela parte oculta que tomava pelo seu território. Esses momentos, como dizia o velho naquela noite, esses momentos, ainda que me assediassem raramente, custavam-me anos de vida morna e infeliz e eu desejava a morte sem querer morrer.
Ser bom. Ser mau. O que eu fazia e o que eu pensava. Duma coisa à outra ia uma grande distância. Era a minha luta diária pela decência. E era agora como uma revolta interior, uma necessidade de expiação quase discursiva que eu devia resolver em conflito comigo mesmo. Impiedosa com todos. Com tudo. E essencialmente comigo. Porquê eu?
Porquê? Que crime terrível teria cometido que merecesse tamanha punição? Aquele desejo? Naquela noite? As mulheres que eu amo por sexo? Eu apenas queria ser feliz. De novo. Até o pior dos criminosos sabe como expiar o seu crime. Ainda que não demonstre qualquer vontade de o fazer, ele está descansado. Sabe o que o pode esperar. Sabe que se lhe apontarem o dedo é a altura de pousar o mal que carrega nos ombros e limpar a culpa. Terá olhos para baixar da multidão que o insulta, terá a vergonha por opção. Mas nada disso se aplicava ao meu caso. Um turbilhão de ideias rodopiava no Tehillim do Steve Reich misturado com imagens de fome do Sudão que, na televisão, reclamavam da legitimidade do meu sofrimento, E eu repetia, talvez em pânico
Súr may-ráh va-ah-say-tóv,
Ba-Káysh sha-lom va-rad-fáy-hu.
PS - E assim se faz pela vida, até amanhã
Só. Com os meus demónios.
Nada disto era, afinal, novo para mim. Apenas assumia outra face. O que já antes me preocupara, e que eu tentei explicar numa página que antecederia esta mas que o meu bom senso acabou de rasgar, não fora a Verdade. Eu continuava a ser o menino mimado de antes, o filhinho da mamã, o único do seu colinho. É o desígnio de Deus o que me preocupa. O desígnio que Deus tem para mim; e sob que forma. Como se existisse uma verdade pessoal. Bem, não terá sido esta uma consideração absolutamente absurda? Como se eu me tivesse anatomicamente por uma súmula bíblica onde o pecado e a redenção se estivessem a escrever pela primeira vez? De facto, vejo agora tudo isto como uma fantástica efabulação a que o meu cérebro apenas se permitiu pelo desespero que tão tardiamente na vida me exigia vassalagem. Mas de uma coisa estou certo, foi apegado ao princípio destas ideias que consegui suportar aqueles últimos dias da terceira semana.
Não passava de uma medicina preventiva, claro. Analisando bem as coisas, facilmente acabaria por chegar à conclusão de que limbos literários ou litúrgicos não tinham sido o meu caminho; não havia precedentes; o meu caso era humano, ao contrário do que me parecia. Havia, nessa fase, que dessacralizar o grande eu, único eu, que sempre pensara ser. Mas EU não queria nem estava em condições de fazer esta análise.
No fundo, por mais que eu tentasse enganar-me, sabia que a lógica de tudo aquilo permanecia escondida algures. Oculta, mas não como uma manifestação do sobrenatural. Era eu, combinação única do cruzamento de pai e mãe, igualmente únicos, quem tinha de entender-se comigo, de me suportar e decidir-se. A quê, à excepção da possibilidade Pol, não o sabia. Mas era de mim que se tratava. Eu estava só com todos os meus demónios.
Ainda com a imagem daquela fêmea a aferroar-me o cérebro e o parque vazio com dois montes de granito a erguerem duas estacas salpicadas de cimento, entrei. Vendo bem, estava tão perdido ao pensar aquelas coisas que acabo de referir como agora que as escrevo. Afinal, segundo aquela lógica, não me considerei eu um eleito absolutamente invulgar? Não estarei, orgulhoso, a fazê-lo agora mesmo? Provavelmente, mas como os senhores já compreenderam, esta não é uma situação comum. Não quando nos passa pela cabeça que uma semelhante mutação possa, de facto, estar apenas a manifestar a nossa verdadeira natureza. Talvez revelando-nos ao mundo como aquilo que somos, talvez roubando-nos a sanidade como uma prova de fogo, um Fénix moribundo a quem um espelho repete que não é nada. Talvez qualquer coisa. Talvez isto acontecer ao meu vizinho do lado fosse melhor ideia.
Dezoito.
As entranhas ardem-me como a um demónio
enquanto durmo um triste sono na beira da cama
Dormi breves segundos, talvez horas, e quando acordei estava farto de viver. Alguma coisa me sucedera durante o sono e foi a custo que me agarrei de novo àquela angústia que me obrigava a lutar pela vida.
A verdade, tenho de confessar-vos, é que por esta altura sentia a brutalidade da revolta do meu espírito. Talvez vos tenha dado uma ideia errada de sobriedade. Mas não. Esta coisa devorava-me por dentro num remorso miudinho que tomara conta de mim. Tornei-me bruto comigo mesmo, golpeava-me com os punhos na cabeça. Era um demónio adormecido dentro de mim que se recusava a conviver com a deformação e me levava a uma tosca tentativa de aniquilação física. Esperava que eu me deitasse ou que estivesse esticado a ouvir Poulenc e vinha reclamar aquela parte oculta que tomava pelo seu território. Esses momentos, como dizia o velho naquela noite, esses momentos, ainda que me assediassem raramente, custavam-me anos de vida morna e infeliz e eu desejava a morte sem querer morrer.
Ser bom. Ser mau. O que eu fazia e o que eu pensava. Duma coisa à outra ia uma grande distância. Era a minha luta diária pela decência. E era agora como uma revolta interior, uma necessidade de expiação quase discursiva que eu devia resolver em conflito comigo mesmo. Impiedosa com todos. Com tudo. E essencialmente comigo. Porquê eu?
Porquê? Que crime terrível teria cometido que merecesse tamanha punição? Aquele desejo? Naquela noite? As mulheres que eu amo por sexo? Eu apenas queria ser feliz. De novo. Até o pior dos criminosos sabe como expiar o seu crime. Ainda que não demonstre qualquer vontade de o fazer, ele está descansado. Sabe o que o pode esperar. Sabe que se lhe apontarem o dedo é a altura de pousar o mal que carrega nos ombros e limpar a culpa. Terá olhos para baixar da multidão que o insulta, terá a vergonha por opção. Mas nada disso se aplicava ao meu caso. Um turbilhão de ideias rodopiava no Tehillim do Steve Reich misturado com imagens de fome do Sudão que, na televisão, reclamavam da legitimidade do meu sofrimento, E eu repetia, talvez em pânico
Súr may-ráh va-ah-say-tóv,
Ba-Káysh sha-lom va-rad-fáy-hu.
PS - E assim se faz pela vida, até amanhã
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