quinta-feira, novembro 05, 2009

(depois da quarta revisão isto vai, ou vai ou fodo tudo pela frente)


Zero.
TOMÁSC CORRE PELA VIDA

Aqueci ligeiramente os músculos antes de sair do prédio. Fiz depois alongamentos para não rebentar com as pernas nos primeiros metros. A porta estava a fechar-se por detrás de mim enquanto escolhia a música para o itinerário desta tarde quando uma ninfeta de calças descaídas e pernas compridas se prepara para virar a esquina. Perfeita, não te vires, não te vires. Desaparece no azimute da aresta de pedra suja e imagino traços de Botticeli a cinzelar-lhe a pele. Perfeita. A porta fecha-se com estrondo. Encaixo os óculos de lentes amarelas e carrego no play. O Movement dos New Order ali à mão há-de servir. O Sol está a escapar-se e o fim da tarde parece-me mais frio do que estava há espera e tenho a impressão de que tenho pele demais à vista. Aos primeiros acordes de Dreams Never End já estou em passo de corrida, um trote ligeiro para averiguar lesões antigas. A música dá-me um certo ânimo e começo a acelerar em direcção à sede da Caixa Geral de Depósitos. Ânimo de änima em português, mas no estado de atleta é mais com estamina que eu me sinto agora enquanto escapo a um carro que não estava à espera que eu atravessasse ali a estrada junto às bombas de gasolina. A música está a andar e já não há maneira de voltar a casa se bem que é o que mais me apetece agora que contorno o edifício de pedra pela esquerda a pedalar pela Avenida João XXI acima. Olho para o relógio e vejo que estou a 175 rotações, pobre coração. Em breve estarei a descer é só o que me passa pela cabeça. Cruzo-me com dois tipos que me olham nos olhos. Estou de lentes amarelas, é a merda de não poder correr de óculos escuros à noite. Do nariz para cima devo parecer uma puta de uma drag queen mal amanhada. Só há uma coisa a fazer, seguir em frente. O cruzamento da João XXI com a Avenida de Roma é sempre um problema. Costumo descer pelo passeio da direita e depois controlo os semáforos para decidir se sigo em frente ou se passo para o lado esquerdo e tento ganhar espaço entre os carros para seguir em direcção ao Areeiro. Está vermelho. Aproveito que os carros também estão parados e passo para o outro lado, mas a fila de carros é interminável e tenho de continuar pela Avenida de Roma em direcção ao Júlio de Matos. Por fim aproveito uma brecha e faço um pequeno sprint até ao passeio do outro lado que me levou às 178 pulsações e queimou meia dúzia de bolinhas de colesterol. Foi o cabrão do colesterol que me atirou para as ruas a horas impróprias no início do Inverno. Já sabe, ou deixa de fumar ou deixa de beber café ou toma estes comprimidinhos para o resto da vida. Eu estava a abotoar a camisa e pouco absorvia do que me era entregue em papel de compêndio com aquele sotaque de professora de primária, quando o menino se porta mal e já está a a ser posto ao corrente de que não vai ter recreio até ir para a universidade. E vir de família com homens que morrem até aos cinquenta de problemas cardíacos não ajuda, sabe, são três factores de risco e tem que eliminar um. Sei, olhe, então doutora, risque-me aí dessa árvore genealógica e temos o problema resolvido. Você é muito engraçado mas não pode ser, mas olhe, pode fazer exercício, ainda que eu ache que não vai escapar a uma medicação para o resto da vida. Acha?, enganou-se que isto desceu para metade com um ano de correrias a inalar escapes pelas ruas e avenidas da nossa querida capital. Estou a cinquenta metros da Rotunda do Areeiro e começam a doer-me as canelas. A corrida vai com uns míseros cinco minutos e as dores nas canelas chegaram inevitavelmente para abalarem quando tiver acabado de contornar o Técnico. Mas estou a respirar bem. Depois dos primeiros minutos em que uma meia dúzia de gatos entoava música minimal num recanto do meu esófago, mas sem fagotes, começo a absorver as partículas de humidade que pairam do ar à minha frente com leve fragrância a Galp, talvez Repsol. Sim, definitivamente um toque espanhol. Lembro-me de quando aos 15 anos visitei Paris ter logo, romanticamente, reparado que os escapes franceses produziam uma fragrância muito mais citadina, cosmopolita do que a pesada gasolina com chumbo a que estava acostumado numa cidade de província perdida entre serranias. Tiro o MP3 de dentro dos calções de aquecimento e salto músicas. Hymn. Corto a toda a velocidade pela Almirante Reis abaixo para voltar a cortar logo de seguida à direita para a Avenida Paris. É então que a imagem de um miúdo mal-amanhado com a mãe que pelo aspecto pode ser avó ou mãe ou avó e mãe apanha o meu cérebro desprevenido e tudo desaparece para me transportar para um canto esconso não sei onde com três bebés alinhados, um tem a cabeça ligada, parece que dormem mas não, estão mortos, e há um homem que se aproxima do bebé que tem a cabeça ligada e o beija repetidamente e a cabeça do bebé move-se a cada toque dos lábios do homem mas nada mais mexe allah uh akbar os pequeninos dedos rechonchudos continuam esticados das mãos esticadas dos braços ao longo do corpo minúsculo e lembro-me que hoje não posso deixar de odiar os israelitas. Estou nisto quando à minha frente já tenho a igreja da Praça de Londres e sem querer levanto os olhos para a cruz. Passo a avenida com dificuldade. Queria interrogar Deus mas tenho de me preocupar com os carros à minha esquerda que eu sei que não vão parar nem que eu esteja estatelado no alcatrão. Tenho as canelas a arder e umas mulheres olham-me de uma paragem de autocarro. Olham-me e eu não posso esconder o que me vai nos olhos. Estou quase a parar e desistir. Nas escadas da igreja costuma estar um tipo esfarrapado a quem à saída da homilia deve haver gente a contornar. Procuro-o com os olhos semicerrados e encontro-o meio reclinado sobre o cotovelo a organizar sacos de plástico. Está ali mesmo às portas do Senhor mas nunca o vi dar um passo para dentro ou gritar sanctuarium, que talvez de pouco lhe servisse e ele o saberá. Fica-se pelas portas do Senhor até que um dia tarde demais alguém lhe diga do alto de um púlpito que era para ele apenas que aquela porta se entreabria. Onde teriam sido assassinados aqueles três bebés. Não quero desistir mas quando entro na Avenida Manuel da Maia sinto os olhos húmidos e basta-me virar à direita e estou a dois minutos do meu sofá. Tenho os olhos húmidos e não os posso esconder. Tenho os olhos húmidos. Quero pensar que é aquele vento que me apanha sempre ali, um vento frio que, apesar dos óculos, me ataca sempre do flanco direito enquanto varre a intersecção da Avenida do México por ali abaixo. Quero pensar que é isso mas temo que não. Temo não ser suficientemente forte para estes tempos. Suficientemente frio. Não sou cold sou cool, que mais, sou membro do Clube do Jogging Nocturno. O Sol está a escapar-se de vez e deixo de me mover como uma sombra. Um taxista quase me pisa o pé com a roda da frente. O cabrão deve ser daltónico porque o sinal estava verde para mim. Que idades teriam aqueles bebés? Já passei a Alameda e estou a contornar o Técnico pela esquerda. Vai ser sempre a subir. Passo pelas meninas que iniciaram o turno das 10 e já estão ao ataque. Também eu estou ao ataque àquela puta daquela subida que quando a faço de carro parece menos íngreme do que realmente é. Dos auscultadores entram agora os The Sound que me dão sempre pica para os últimos vinte minutos. From The Lions Mouth é um álbum excelente. É a banda mais maltratada dos anos 80. Não admira que o Adrian se tenha atirado há uns anos para debaixo de um comboio. Filha da mãe de subida. Não raras vezes, aqui, chego a intercalar com marcha por uns trinta segundos para depois retomar na descida. Pulsação a 178. Have to be strong man. Aprender a ser duro, tipo erva daninha. Tipo erva daninha. Acabo de contornar o Técnico e já vejo o Pingo Doce. Deixaram de me doer as canelas. Agora vai ser um autêntico passeio até ao Campo Pequeno. Esqueço tudo. Estou leve. As pulsações baixaram para 155 e começo a ganhar velocidade. Já não há muitos carros por aqui. Os suburbanos estão a caminho de duas horas de caminho até casa. A cidade começa a ser minha enquanto faço um bocado da Avenida da República até à Praça do Saldanha depois de passar pela esplanada do Galeto, hoje sem turistas. Atravesso a praça ao som de Silent Air. Continuo a saltar músicas: you showed me that silence that hunts this troubled world. Faço a Praia da Vitória e começo a descer a 5 de Outubro sabendo que a embaixada de Israel está por ali à minha esquerda. Que merda, passei anos a convencer-me de que era biologicamente judeu, um metro e setenta e um, um metro de nariz, família de comerciantes, às vezes um génio apesar de uma belíssima merda a maior parte do tempo, todos os meus apelidos, os apelidos da família chegada e afastada, a geografia, vinha seguramente das doze tribos, o povo de D-us. E agora isto. Foda-se. Quase tropeço numa tampa de saneamento. A avenida está sem movimento e estou completamente acelerado mas tento recuperar a atenção. Há dias quase fui atropelado na Miguel Bombarda porque pensava estar na João Crisóstomo, que tinha passado um quarteirão atrás, e olhei para a esquerda à procura de carros quando a rua é de sentido único mas da direita e quase passei do jogging para o kite-surf por mãos de um tipo que também devia andar a treinar mas para as 24 Horas de Le Mans. Mas agora - tudo sob controle. Ainda passei por uns almofadinhas tardios. Tenho a pulsação a 145. À esquerda e à direita embaixadas e ministérios. Viro à direita para a Avenida Júlio Dinis e vejo no crescente do Campo Pequeno a meta dos cinco quilómetros e meio. Volto a cruzar sobre a República já em passo lento. Paro junto às fontes, molho a cara abundantemente. Que idade teriam aqueles bebés. Povo escolhido o caralho. D-us não se engana dessa maneira.


Entre o ZERO e o UM.
Desaperto os ténis e encaminho-me a respirar em golfadas generosas. Encho-me de oxigénio nos duzentos metros que me separam de casa. Dava tudo por um cigarro e deixar de me sentir tão saudável. Não aguento este bem-estar. Dentro de duas horas estarei a discutir a vida de um homem que nem conheço. Ainda não o sei, mas a vida de um tipo reles e com todas as qualidades que se adquirem nas melhores academias para vencer nesta merda vai estar nas minhas mãos e de outros três amigos. Naquela noite um homem começou a morrer às minhas mãos. Eu ainda não o sabia e muito menos ele, que – imagino - continuava a esconjurar as acções do dia com obrigações caseiras de um homem de bem.
E tudo era cansativo, a vidinha diária, irremediavelmente cansativa.

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