domingo, maio 22, 2011

Dois.

ANDRÉS

Rodou um pouco pela cidade a fazer tempo para passar por casa de Tomás. Mentiu a Ana, tinha mais do que tempo para o que fosse. Combinaram o jantar para as dez mas tinha arrancado do Restelo eram umas oitoemeia. Disse a Ana que tinha de se encontrar com Tomás mas não lhe disse que tinha todas aquelas horas. Só queria deixar para trás a moradia com vista para o Tejo. “Não fomos feitos para durar”. Esta ideia incómoda surgira-lhe pela manhã mas ardia-lhe ainda nos sentidos como um ferro em brasa enquanto conduzia, cigarro ao canto da boca, braço esquerdo de fora e mão direita no volante. A brisa fresca a entrar pela janela alterava-lhe o cabelo contra os olhos. Às noveemeia encontra-se com Tomás para rumarem a casa de Joaquim, onde jantam todas as quartas-feiras. Não fomos feitos para durar. Com uma mão no volante de pele cozida pelo Sol procurou esse momento, desde os primeiros minutos da alvorada, o momento catalisador da epifania com que os neurónios bailavam que nem doidos, um golpe aplicado com pezinhos de lã e que abria portas ao que lhe parecia a consciência última das coisas: uma frase talhada nas tábuas da lei primordial. Foi rolando pela cidade com o GPS interno em busca das coordenadas da fonte que jorrara o que poderia vir um dia a ser o seu próprio epitáfio (por muito que gostasse daquele “Eu bem vos disse que estava doente”), reviu o dia desde que se levantou, mas quase chegado a casa de Tomás não tinha um sinal sequer de oráculos ou artes de xamanismo. Parado num semáforo em frente à Praça de Touros vem-lhe à cabeça o pormenor, coisa insignificante, a frase surgiu-lhe na forma de uma tirada em inglês, we were not made to last, como uma deixa de filme bom com gente má. Pior, um ensinamento juvenil que se ouve numa canção em moda. À primeira vista aquilo era nada, soou-lhe como um verso que fica solto desses êxitos que se insinuam ano após ano nas ondas da rádio, um daqueles slogans que todos os verões se anunciam para os dias quentes. Uma explicação escassa para Andrés, que vinha de uma maratona de sexo e se sentia acabado. Aquelas palavras que se juntaram com a harmonia de uma frase de música para fagote a anunciar um requiem sofrido com batidas meladas eram, ouvidas a capella, uma sentença de morte que tomou para si próprio, ele que temia esconjurações do acaso que ajudam a germinar num homem prenúncios de catástrofe.

O dia montou-lhe o cenário ideal para despertar a desordem obsessiva que cada vez mais lhe tomava conta dos pequenos gestos – não gestos mas tiques que se esforçava por organizar num derradeiro e inglório esforço de controlo das singularidades do dia, como um funâmbulo maniqueísta -, o vórtice derradeiro que lhe sorvia as energias num prenúncio de caos. O caos que lhe minava a clarividência.

Para quem vive nesta fronteira, mortificado por três inglórios quilómetros em que se arrastou por lençóis de algodão agridoce, um ditame com as palavras certas não podia ser coisa desprovida de significado e via-o mais como uma artimanha capaz de fazer murchar orquídeas cuidadas a Perrier. Não fomos feitos para durar. Continua às voltas, deambula por trajectos desnecessários, inventados na hora, contorna rotundas verdes. Todo o dia com a escolta da mais esquerda das ideias. À mesa de trabalho, na revista de música para adolescentes onde encalhou há um par de anos, aplicou as calorias do dia em esquadrias perfeitas entre canetas e folhas e o teclado do computador e o monitor, mas estas foram tentativas que se desmoronavam nos azimutes do destino, incapazes de apaziguar a besta que lhe trauteava ao ouvido entre o martelo e a bigorna. Quando finalmente virou da António Maria do Bocage e começou a procurar um lugar para deixar o carro estava pálido, com as mãos húmidas. A frase formara-se já perfeita no seu cérebro, sem intervenção humana e ditada aos próprios neurónios. A ordem das palavras só por si bastava-lhe para saber que não se tratava de uma mera tautologia.

Ainda buscava o clic que lhe aliviasse a tensão quando pegou no telemóvel. Tom, estou aqui em baixo à tua espera. Sobe. Não quero, despacha-te. Tomás acabara de tomar banho mas ainda se ocupava com um pormenor da corrida dessa tarde: a tampa do esgoto. Deixar-se apanhar pelos alçapões da escória marcava o estado dos mecanismos da própria sobrevivência. Devia estar entre a criança que corre, tropeça, cai, levanta-se e não dá importância ao caso e o velho que teme as saliências do trajecto como ameaças terminais. Devia estar ali, a meio caminho, capaz por natureza de evitar os esconsos do trajecto, como quem desvia uma silva que tolhe o caminho a seguir à curva da estrada, um gesto rápido de cabeça, um golpe de coluna que abre de novo o horizonte limpo. Mas a experiência dessa tarde foi outra: caiu, hesitou a levantar-se, preocupa-se pela possibilidade de olvido na próxima vez que cruze os primeiros metros da 5 de Outubro. Colesterol aparte é cada vez mais perdido que se atira para as ruas, a precipitar o fim da corrida, cada vez mais perdido.

Abotoou as calças enquanto enfiava os pés nuns sapatos de vela de couro avermelhado comprados nos saldos. Sente dor nesse dedo que bateu na tampa mas não tem tempo para gelo. Quase mecanicamente descalça-se e muda para uns ténis em malha preta. Apertado o último botão das calças dá-se conta de que tinha perdido quilos a mais. E não tinha sido no jogging nocturno, muito menos debaixo de um dossel no Restelo. A vida, numa normalidade aparente, quase doentia, não lhe corria na medida do que era exibido pelos índices exactos. Apoiado no lavatório da casa de banho, os cremes com as letras desfocadas. Lê umas palavras. Desfocadas outra vez, aperta os dedos contra a louça branca, pressionado pelas buzinadelas de Andrés, raios Andrés, hesita ainda em desfazer a barba de quatro dias. Esquerda, direita, estica o queixo para cima. Os pêlos raros e cinzentos não iriam incomodar os amigos, não era por eles que vingaria na juventude eterna, que apesar dos trintaeseis anos lhe era ainda favorável quando de sorte se via entre meninas de liceu, coisas que lhe aconteciam e que sem necessidade de prodígios o podiam deitar de costas no calabouço da esquadra mais próxima. “Fuck it” – no que lhe saiu entre dentes num inglês ouvido e reouvido em cenas de filmes cabotinos e sem imaginação. Agarrou nos cremes e passou-os pela pele como se tivesse acabado de ceifar os restos do dia. “Que se fôda” – não conseguiu impedir-se de traduzir o que lhe ia na alma.

No carro, Andrés ainda congeminava contra a frase bem amanhada que o destino lhe colocara à frente. Quando buzinou uma última vez para o sexto frente não imaginava que horas depois perceberia perfeitamente que não fomos feitos para durar e um homem estava já a fazer o caminho para o cadafalso.

O tempo descera a neblina sobre as ruas, num manto de grão antigo, e os elementos perdiam a imperfeição diurna. Aquela era uma noite de quarta-feira que arrancava com uma dose de serenidade a tresandar a placebo por todos os poros. Sombras a disfarçar pedaços de tinta que estalavam num prédio, remendos da estrada que se tornavam pardos e uniformes com o resto do alcatrão, ali uma árvore escanzelada pelo dia mas que era, à luz dos candeeiros, uma magnífica silhueta espectral e um par de velhos que arrastavam os pés longe do Sol revelador e seguiam agora em perfeita sintonia com o entardecer dos relógios. São oblíquos os edifícios ao início da noite. Um cão que se adivinhava um monte de ossos mas que era envolto de caracóis platinados rodopiava no ar, entretido com uma borboleta. Longe que estavam os raios do último sol da tarde, a harmonia descia generosa sobre a vida. A harmonia com que podíamos contar todas as noites na medida de um H maior, um H falso como Judas, mas não deixando de ser uma harmonia superlativa, porque é o que temos, isso é tudo o que temos.

Quando Tomás apareceu à porta, Andrés estava enterrado até meio do banco, alavancado com um joelho no tablier, gotículas de melancolia escorrem no ar em volta a fazer dançar as luzes que se instalavam dos candeeiros. Andrés não se mexe. Vultos aparecem para desaparecer nas suas vidas ao virar da esquina, primeiro de frente, flanqueiam o carro, depois no retrovisor e a dobrar um edifício de cimento. Uma tristeza sem sentido, era uma tristeza que dilacerava por dentro. Foi à boca desta cena que Tomás surgiu, a acenar com um gesto abatido. Nada daquilo parecia certo a Andrés e uma angústia atou-lhe a ponta da vesícula ao duodeno a meio caminho da boca do estômago. Tomás não estava aprumado. A barba de dias não colhia as bênçãos da noite: sublinhava os olhos afundados abaixo da testa.

Aquele fim de dia era um mau começo, rebentava pelas costuras de maus augúrios, mas nada impediria que fosse celebrado mais um jantar de quarta-feira. Há anos que todas as quartas-feiras jantam em casa de Joaquim – só um acontecimento extraordinário determina que a meio da semana se encontrem dispersos por outras coordenadas. À mesa há-de aparecer Jean Pierre, esse ser benévolo e muitas das vezes amorfo, o director de pessoal louro que sonhou em garoto que era escritor, ser que apesar de benévolo e amorfo determinou a sequência de acontecimentos dispostos ainda antes de ser servido o peito de pato preparado por Joaquim. Feroz e implacável, Joaquim, o dono da mesa.

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