sexta-feira, maio 20, 2011

O COMPLEXO MALUVU E A VARIAÇÃO EMÍLIO

Zero.

JEAN ESTÁ PERDIDO


Jean Pierre foi engolido pela terra. Quarta-feira, dia de jantares a quatro, o néon do café em baixo apagou-se há mais de uma hora, o empregado de avental negro já ensaia danças em volta da vassoura, sacode a cinza do cigarro no montículo dos restos do dia, e o jovem louro director de pessoal tarda a sentar-se à mesa com os amigos. Vinteequatro horas sem saberem dele. Não era outro mas aquele o jantar em que era esperado. E ele sabia-o, mas não aparecia. Procuraram-no em casa, no condomínio perto do parlamento, ligaram para o gabinete na empresa. Andrés passou pelo ginásio mas só por sorte o apanharia. JP estará seguramente algures, mas não fazem ideia onde. Joaquim está inquieto, ensaia gestos bruscos. Teme que a fragilidade de Jean o torne vulnerável sabe lá a quê, há um manto que se abate sobre a capital e encontrá-lo é mais vital do que o ar que respiram.

Terça-feira, um odor a flores e a morte cheira-se do ar espesso e húmido, quatro da tarde, Jean Pierre é uma sombra da existência, arrasta os pés, devagar, atrás de umas trinta pessoas. São quatro muros altos em volta que o tolhem. Gente aqui e ali que encontra o passado de joelhos na terra, um par de mãos compõe lírios numa jarra enrugada de arabescos sem sentido, dedos que alisam o rosto numa foto oval. Os ciprestes altos curvam-se sobre a mancha negra que avança sem convicção, segue-os a meia dúzia de passos Jean Pierre, arrastado, perdido. Um odor a flores. De um lado e do outro do carreiro estreito, contidos pelas bermas esboroadas, há campas rasas, pequenos mausoléus que podem abrigar meia dúzia de familiares para se sentarem e rezar uns minutos aos seus, capelas salteadas por rectângulos de terra que acabou de ser remexida, sem nome, onde a história é recente. Retirada, mais à direita, uma campa assinalada com relva aparada, uma pedra numa das extremidades a juntar dois nomes eternidade fora. JP caminha atrás do caixão de um homem que até há dois dias era seu chefe e que semanas antes ele e os amigos se propuseram matar, sentença que havia de ser redentora mas não para eles. Mais do que experimentar a morte, queriam que o engenheiro Rodrigues soçobrasse na sua antecipação: que a soubesse. Sentir-lhe o cheiro e as formas, com tempo, pouco, mas tempo, dar por inúteis os atavios da organização podrida que nas ademais vezes o faziam um falcão aperaltado com ermenegildos zegnas à medida. Perceber o que é ser um miserável. Sentir-se por vagos minutos como um miserável. Despedir-se da vida nessa pele. Era também este o plano de matar um homem: colocar uma impressão no molde dos dias injustos e apagados. Era isso o que parecia quererem, mas em tudo prevalecia a sua fraqueza. A ausência de vontade. A inclinação para sublimar a vida nos gestos domésticos. Era um inútil em tudo o que não fosse lidar com contingentes de trabalhadores – massas indiferenciadas que nas suas mãos se revelavam unidades singulares, só nas suas mãos – o que o tornava entre todos os gestores a pedra de toque da organização. Mas era só ali, entre os muros da empresa, porque aquela pele deixava-a lá todos os dias, não tivesse os amigos e a vida seria uma longa tarde de domingo, quando a melancolia das horas vazias estende um abraço que asfixia os sonhos assim que supomos que poderiam tomar lugar. Uma tarde de domingo em que tudo soçobra numa astenia inexplicável.

Terça-feira, é uma tarde húmida, quatro e treze no relógio de pulso, mais uns minutos numa torre alta que se adianta no tempo acima dos muros do cemitério, Jean Pierre esforça-se, recua ao momento em que tudo começou, o memorando sobre uma certa lista entregue em mão pelo director, o engenheiro Rodrigues, talvez a determinação de Joaquim, talvez o último encontro com o engenheiro, mas é sempre a mesma fraqueza, a deixar-se ir com o coração a dizer que não. Para se deixar ficar. Continua a arrastar os pés um a seguir ao outro na vereda do cemitério, vai curvado por essa única certeza: a sua incapacidade para controlar as circunstâncias da matriz que determina os dias, porque disso ali estava a prova, um director-geral com o crânio esmagado a ser levado entre quatro tábuas numa tarde lacrimejante que não tinha chuva nem sol. Foi dele que recebeu a ordem derradeira, a proposta da infâmia, uma agonia que lhe ficou atravessada, e nem agora, vendo-o inerte, carregado em ombros até um buraco que já se via de longe, sentia qualquer sinal de alívio. Nem agora. Pelo contrário. Temia que nunca mais uma jornada fosse feita sob o pulsar do coração imaculado que foi o seu.

Não se deixa enganar pelos olhos. São escassos metros que o separam do horizontal Rodrigues, mas na realidade é um mundo inteiro. Entre ele e o engenheiro caminha a viúva, os olhos escondidos atrás de lentes negras que deixam ver apenas um terço do rosto, um chapéu preto de palha entrelaçada, uma das abas faz um serpenteado que roça o casacão carregado de luto. Mas era como se a dor não pudesse manchar a sofisticação. Quando supunha que enfim um sinal de que baixavam à condição humana, era aí que lhe diziam, era plantados na dor derradeira que lhe diziam intocáveis, somos intocáveis, o que é absorvido pelo jovem gestor como mais uma derrota, um sinal do quanto ele e os amigos tinham sido ingénuos, ignorantes de que havia latitudes que lhes era interdito trespassar. Logo após vão jovens e homens distintos de cabelos compostos e ar digno. Não vê as crianças do Rodrigues. Não vê o cão do Rodrigues, uma espécie de fuinha com pelo encaracolado, o que o acalma, não saberia o que fazer se o tivessem levado a esse último adeus ao engenheiro, que todas as noites o passeava pelas ruas desertas à volta do condomínio. À sua frente reconhece alguns directores da empresa e meia dúzia de funcionários do quadro. Ele seguia atrás só porque Joaquim insistiu que devia estar ali. É importante que vás, não queremos chatices agora.

Como se tivesse de afastar suspeitas. O dia em que foram dadas as notícias da morte do Rodrigues passou-o a vomitar. Começou logo pela manhãzinha, a vomitar sangue. Podia dizer-lhes isso: passei o dia a cuspir sangue para uma arrastadeira. E era verdade. Mas esse foi o dia que amanheceu com as televisões e a polícia a fazerem saber que um engenheiro do board da associação dos empresários havia sido violentamente atacado e morto por um bando de delinquentes. Por meia dúzia de tostões que tinha na carteira. Não queremos chatices agora.

JP era pouco mais do que um autómato de rosto macerado que arrastava um pé atrás do outro, a espreitar as nuvens altas que rondavam dos céus como abutres. A poucos metros um gaio persegue um lagarto que se refugia entre as lápides. Estava uma tarde que ia do cinzento ao sol brilhante alternadamente, num padrão quase matemático. Cheira a terra misturada com flores frescas. Aqui e além pensamentos sombrios levam-no a cerrar os punhos e a mastigar os próprios dentes, mas só ele, ali, sabe porquê. Teria o engenheiro rido dele no momento em que jazia já morto? Troçando da sua fraqueza? Seria isso possível? A inquietação tomou conta dele, sentia as cores a abandonarem-lhe a face. Chegam-lhe aos ouvidos os gemidos da viúva, o roçar dos pés no alcatrão esboroado, uma pazada ao longe, vislumbra terra que esvoaça ao lado de um saco com cal enquanto o coveiro dá os últimos retoques na sepultura, perde a noção do solo firme e apoia-se num anjo por cima de uma lápide de mármore brilhante, e o mármore devolve-lhe a imagem baça da tibieza com que suporta as provações da tarde. Maldito sejas, Joaquim, eu disse-te que não aguentava. “Jean Pierre, obrigado por ter vindo”, tem ali a viúva a agarrar-lhe o braço pelo cotovelo, volta-se, “Sei que ele tinha consideração por si, não imagina como é importante ter aqui aqueles que eram próximos do Rui”. Não imagina como é importante ter aqui aqueles que lhe eram mais próximos. Tinha algo para ele. A conversa dura apenas alguns segundos, sabe que deve passar pela casa dos Rodrigues. Com os olhos húmidos JP acena com a cabeça, sem sentido, e afasta-se. Tem um sabor metálico na boca, leva a mão ao bolso e cospe o sangue para um lenço de papel, faz um arco com os lábios e dobra a língua até ao palato, enrola a bola de pasto e volta a cuspir sangue que é vermelho, apesar de tudo é vermelho, e em breve se perde pelas ruas da capital. Capazes de esconder uma vida que está a falhar. Foi ainda com este espírito que apareceu duas horas depois das oito ao jantar do dia seguinte, quarta-feira, quando todos tinham já remexido a cidade em buscas desesperadas, para ouvir de Joaquim “então, pá?”. Em menos de duas semanas tudo estaria consumado.

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