domingo, fevereiro 17, 2013
terça-feira, fevereiro 05, 2013
sexta-feira, novembro 09, 2012
sábado, agosto 25, 2012
À TVI disse o antigo braço do FMI e banqueiro da Goldman Sachs que concessionar a RTP permite três objectivos em um: poupar dinheiro, manter a televisão pública na quinta do Estado e garantir a entrega aos portugueses de um serviço público de televisão. (talvez se perceba agora por que o homem foi despachado pelo banco mais poderoso do mundo)
A jornalista Judite Sousa começou com "e agora a notícia mais importante do dia" - no dia em que se soube de uma derrapagem monumental da execução orçamental, um buraco de 5 mil milhões de euros e perguntou adiante: há interessados em comprar a RTP1? porque seria esta - segundo a jornalista - a notícia do dia, a venda da RTP a uma empresa privada. Borges responde: "parece-me que sim, parece-me que sim, porque realmente (esfrega as mãos) trabalhar com a RTP como ela existe hoje, mantendo a contribuição do Estado para o serviço público, mas depois operando livremente em concorrência com os outros operadores é uma solução que atrai muita gente. Não tenho dúvidas sobre isso". (claro que foi despachado)
Ora: 1. garantir o serviço público e 2. operar livremente em concorrência com os outros operadores. Como o outro ministro, Borges não passou do índice no estudo do dossier sobre comunicação e serviço público de televisão. Talvez o índice dê equivalência em perito sobre o SPT.
domingo, julho 08, 2012
domingo, julho 01, 2012
terça-feira, abril 17, 2012
sexta-feira, abril 06, 2012
terça-feira, dezembro 06, 2011
terça-feira, novembro 22, 2011
UM
Estava – calma - não estava desassossegado. Era um dia. Outro dia. Autocarros intrépidos que se despenhavam no vazio de ravinas forradas a verde das trepadeiras na América Latina. Cheias e monções que invadiam metrópoles asiáticas com manadas de répteis desorientados. Ataques suicidas no Médio Oriente a fazerem tilt como numa velha Dona Elvira. As bolsas agitadas em sobe pela manhã antes de esmorecerem pela tarde. Só a página do obituário lhe queria desmentir estas banalidades - Estava morto. Alguém se dera ao trabalho de enviar para o jornal que tinha nas mãos uma fotografia de passe com a cara que era a dele, por baixo a cruz, uma escassa nota biográfica, duas datas, a herança por atribuir e uma missa de sétimo dia. O funeral já fora. Estava morto. Mas não, respirava, respirava para dentro da chávena de café, em pé encostado ao balcão, para dentro da chávena com as paredes em cascatas de espuma castanho e creme. Escarpas de cafeína. E a cafeína punha-o alerta. Estava vivo. As moedas que atirava para cima do vidro eram audíveis, o empregado voltou a cabeça “Está certo, obrigado”. Está certo. Está? Deu uma corrida até ao autocarro meio vazio.
Quando se sentou foi um segundo para perceber que tinha nós dos dedos espetados nas costas, nas suas. Voltou-se, não podia fazer toda a viagem com aquela pressão logo na linha das omoplatas, claro, a idade ainda lho permitia: punha-se direito e ia assim meia hora ou mais, sem apoios, sem incómodos; mas e nas curvas, e sempre que o motorista travasse, essa ideia de ir outra vez contra aquelas falanges bem nutridas de cálcio, falanges musculadas, de lavrador, como as que em pequeno observava à noite, à luz da lareira, do avô, seria intolerável, por isso voltou-se para trás, devagar, para explicar deste incómodo. Bom, as coisas estavam assim, explicar o incómodo não era uma coisa que fosse acontecer. Não naquele dia, não naquele autocarro. Não àquele homem que de pé era decerto enorme, magro, hirto, como o avô, mas o avô lavrador era baixo, e ele estava ali quase de cócoras agarrado ao encosto que pertencia ao seu lugar, com os olhos muito abertos, a boca sem expressão, como um rasgão cosido a linha de pesca.
Isto não era uma história nova, já sucedera com Samuel Clemens, que o mundo conhece como Mark Twain, o demiurgo que fez Clemens parir Tom Sawyer e Huckleberry Finn. A morte de Clemens, levando com ele Twain, só viria a acontecer a 21 de Abril de 1919, tinha já 74 anos e perdera quase todos por essa altura.
Mas não era de espanto para um desabonado como ele: quando não temos domínio sobre a vida é natural que não tenhamos também uma palavra a dizer sobre a nossa morte. Não era exactamente este o caso, P. chegou a ter decisões sobre o seu percurso: apresentava-se vestido com rigores matemáticos, coisas imperceptíveis a estranhos mas que para ele faziam todo o sentido – nunca usava mais do que duas cores, se não contássemos os sapatos, nem se permitia padrões nas camisolas, no máximo listas, de preferência horizontais, as calças sempre mais claras do que a parte de cima. Isto era do seu departamento. Ninguém lho impunha. Mas o resto, o resto era tudo um ir com a maré, a mãe primeiro e depois – pessoas, gente que lhe dizia que isto era assim e que aquilo não podia ser que não fosse assado. Mesmo quando por um golpe de rebeldia aconteceu que cursava para canalizador veio um empregador abrutalhado instá-lo a aceitar o lugar de assentador de tijolos ou que o queimava na segurança social com uma carta que ia fazer jurisprudência. Por isso era natural que por esta altura, sem o consultarem, o tivessem já dado como morto e feito um enterro em vala comum. O que não o impediu de ir mesmo assim apanhar o autocarro. Porque, e isto também toda a gente o ignorava, o que os outros lhe faziam da vida era coisa que não lhe dizia nada. Se não lhe dizia respeito, mais ainda não lhe dizia nada. Estava-se nas tintas. Querem ver-me de joelhos a assentar tijolos? Tudo bem, eu assento tijolos, porque o que eu não tiro é os olhos da canalização, e é ali que estou de facto, a tirar medidas a uma anilha acabada pela ferrugem, a amansar uma fuga de água com fio e massa consistente, que é o que tenho à mão, tudo bem, eu assento a porcaria dos tijolos. E agora? Matam-me. Por mim tudo bem, mas vou ali à Baixa dar uma vista de olhos nas pessoas que descem dos barcos. Estou morto. Esteja, mas nada me impede de apanhar este autocarro, aliás, já cá estou dentro, com este tipo de dedos nodosos nas minhas omoplatas. E agora de boca entreaberta. O hálito. Por Deus, era necessário? isto? e que se encostava a ele, meio babado, as mãos que não lhe davam folga às costa e a cabeça a pender para a frente – não podia ser para trás?
Mas ele tinha acabado de sobreviver a uma guerra com os seus demónios. Menos de meia hora depois de se levantar lia no quiosque da esquina que morrera. Não o leu por acaso, não foi por obra do acaso que acabou a desfolhar o jornal da urbe, abrindo-o com precisão de canalizador nas duas páginas dos obituários, tinha-se treinado nas últimas semanas para isso – não perder tempo com ninharias de jornal. Há vinte dias que esperava ver o seu nome com uma cruz e duas datas por cima, um panegírico vago, um texto patético que assentava como uma luva à ocasião. Tinha sido ameaçado: o fim está ai à porta. Não estava à porta, mas estava nos quiosques por todo o lado, o que era pior. Não era ninguém. Foi com isto que se confrontou toda a manhã. Os quilos que faziam ranger o soalho de nada valiam, era como se não fossem. Podia derreter-se em suor, esvair-se de todas as moléculas de oxigénio hidrogénio carbono e nitrogénio, que não estaria mais morto do que isto. Um jornal sancionava-o em fonte calibri capital de tamanho trintaesseis: FALECIDO. Uma coisa seca, a bold, sem serifas, nada.
Devia ter feito amigos. Não tinha feito amigos, devia ter usado o tempo também para fazer amigos. Agora estava desamparado porque alguém tinha decidido que tinha chegado a sua hora. Todos os dias dos últimos vinte anos usou-os a trabalhar, por vezes que nem um animal – diga-se, fechou-se em casa e com parcimónia esvaziou-se em pegas de rua. Sem ver utilidade nas relações com os outros, ditas pessoais, foi nelas que depositou os sentidos, com parcimónia, quando o rei fazia anos. Pensava que um dia talvez encontrasse alguém que o quisesse com ele, mas não tinha acontecido, ia a meio dos trinta e a vida ainda não tinha ido por aí. Mas e agora, será que alguém lhe valeria nesta altura, poderia alguém parar esta máquina que é a nossa morte em letra de imprensa. Não tinha amigos para desmentir os factos.
Só com os seus demónios. À primeira vista era difícil espremer desta figura uma espiritualidade, por mais escassos que fosse o projecto inicial, tirar dali uma ideia de inquietação - daqui se enforma a espiritualidade genuína - mais do que certo estaria votado ao fracasso. Porém, não parecia ser este o caso, porque depois de ler aquelas sete linhas no jornal ele enfiou-se em casa e andou às voltas, depois sentou-se e levantou-se e andou de novo às voltas. E ninguém age desta forma sem uma boa razão. E vistas as linhas do obituário que eram o seu, o mais certo é que fossem estas a causa imediata da sua súbita inquietação. E sendo assim, não era coisa pouca o que o preocupava. Porque não era nem a vida nem a morte, mas algo muito mais precioso: a razão de ser, a própria existência. O que o perturbava era a ausência de peso, desmentida pelo som do soalho que pisava com fraca determinação. Quanto tempo é que poderia andar naquilo? A fazer-se sopesar pelas tábuas gordurosas da sala de estar, e as do quarto, no linóleo da casa de banho. O que ia na sua cabeça: o que faz um homem? Não as suas perícias, mas que há que o faça homem, pessoa? As suas mãos? O trabalho, o produto de um dia de esforços, a sua ainda que escassa presença umas horas no sítio do ofício, o número de tijolos assentados ou o cimento que misturou? Era isto que ia na sua cabeça: no fim do dia o que faz um homem? O que lhe dá legitimidade para se impor perante os outros? Era isto.
Estava disposto a tirar as coisas a limpo e por isso meteu-se a caminho das instalações da empresa onde um filho da mãe disse um dia que não, canalizador não, vais assentar tijolos. Pensava: se eu assentar trezentos tijolos, se eu fizer isso, acabar uma fileira mais alta, acima da minha cabeça, sou. É impossível que não vejam o trabalho que saiu destas mãos (e fechou-as, girando-as a partir dos pulsos). Instalar uma canalização é que era agora inviável, passados todos estes anos, sem prática, com a formação já tão distante. Mas havia outra coisa: quem é que se prestou a entregar no jornal aquele texto hediondo? Que o tinham ameaçado com ele, por uma coisa de nada, não nega que fosse uma espada sobre a sua cabeça há quase três semanas, mas isso eram eles, agora, quem o entregou é outra conversa. Porque eles de certeza que não têm tarefas dessa natureza, entregar, enviar, não, eles decidem, portanto alguém fez chegar o obituário ao jornal. E foi seguramente alguém ao seu nível e se estava ao seu nível, se era um seu igual, como teve estômago para o fazer, sabendo que o fazia a um camarada? Isto também entrou no seu mundo de demónios recentes.
Mais do que os nós dos dedos é agora o hálito que mais o perturba. Uma coisa entre tabaco e aguardente. Faz um movimento para mudar de lugar mas o autocarro acelera a marcha numa avenida pouco movimentada e sem paragens e acaba a enterrar as omoplatas nas manápulas impávidas. Tesas. E sempre que sugere que vai levantar-se para mudar de sítio, há uma curva, uma paragem, um movimento qualquer que o atira de volta às falanges e decide pôr um ponto final nas suas intenções. Talvez entrar na cabeça da carcaça sentada no banco de trás. Não, não. Não é trabalho para mim, humilde canalizador por ser. Talvez outro, em casa, com folhas brancas, certinhas, sentado à mesa.
sábado, novembro 12, 2011
domingo, outubro 16, 2011
O VELHO
Autocarro. Carreira 27. Subúrbios - Baixa - Centro - Universidades - Subúrbios – Casa. Passe 1, o mais barato: cinco por cento da pensão; os restantes: vinte por cento para o rés-do-chão, quarenta por cento para os remédios, vinte por cento para água luz gás, para um cigarro diário um café diário. Era por esse café a meio da manhã que estava no autocarro a caminho da máquina da reitoria da faculdade de Direito, único sítio do mundo onde tinha uma chávena de plástico a 10 cêntimos. O cigarro guardava-o para a noite.
Fazia a viagem dia após dia há quinze anos. À noite fumaria o cigarro ao lado do rádio, uma velha telefonia fabricada na Alemanha, trazida de Frankfurt, de quando deixou a sua Elizabete com uma criança ao colo e outra lá dentro: Goreti e Manel. Foi antes de irem para a capital, num tempo em que tinha toda a força do mundo e a pele esticada. Agora estava praticamente morto, mas quando casou na aldeia com a moça mais… Agora arrastava-se até ao autocarro e descia a custo na alameda das universidades. Que tempos, não se via um álamo em redor mas a placa dizia Alameda das Universidade. No meu tempo isto não era permitido. Descia a custo e arrastava-se para ouvir sempre o mesmo miúdo carregado de livros - um doutor, portanto – “bom dias avozinho”, todos os dias que há quatro anos era bom dia avozinho, e não sabia se era gozado ou se o rapaz que ia ser doutor se inspirava no respeito para o cumprimentar quando de manhã acabava a custo de subir as escadas de Direito. Noutros tempos nada lhe teria escapado, mas agora não conseguia distinguir as coisas, tinha a vista cansada. As imagens eram sempre turvas. Só uma silhueta: bom dia avozinho. Se tivesse a certeza podia responder de volta, talvez um dia substituísse o “hum” por um bom dia rapaz. Talvez fosse mais apropriado bom dia doutor. Ele não era nenhum saloio, talvez agora parecesse um trapo, mas houve tempos em que punha camisa com gravata para ir tratar dos arquivos de uma empresa ali na Baixa. Quando chegou de Frankfurt tinha amealhado uma soma jeitosa e com as graças do filho do regedor arrumou as tralhas e agarrou na mulher e nos filhos e instalaram-se nos subúrbios. Para começar a trabalhar logo na segunda-feira. A Elizabeti ficou em casa com os meninos. Mas não eram nenhuns labregos, uns sabujos da aldeia. A Elizabeti era sempre foi asseada. A casa era três divisões com a retrete ao lado, que digo, dentro da cozinha.
Os banhos tomavam-nos ao domingo, à vez, numa tina. Respeitáveis. A ganhar espaço num mundo hostil, longe da lavoura e dos animais. Ninguém a quem chamar amigo. Quando poderiam regressar – nunca.
Estava sozinho. Acontece mais do que uma vez que alguém fique sozinho na vida. Todos os dias. O mundo está dividido em fusos horários para apanhar o Sol sem que um raio seja desperdiçado. A toda a hora. Quando o ocaso abre as camas deste lado, outro tanto assenta os pés numa tábua que range para se atirar à vida. A cada minuto alguém fica só para todos os ocasos que lhe restam. E é assim que se atira à vida – sem ninguém. Com um tipo a esfregar-lhe as costas nos dedos das mãos quando está a caminho de um único momento de consolo, onde pressente as despreocupações da turba de estudantes que exasperam pelo futuro com um copo de café, um copo de plástico que lhe queima os dedos, a fumegar na espiral que se levanta acima do líquido negro. Esgota os minutos com parcimónia. Senta-se nas escadas e perscruta esse lugar onde um dia assentaram raízes verdes álamos. Uma paisagem vaga através das córneas gastas, a lembrar acrílico riscado. Populus nigra. Verde, um arranha-céus verde. Ouro no Outono. É verdade que estava velho, mas tantos anos de arquivo alteram a sensibilidade de um agricultor.
Morrer na alameda. De preferência, mas morrer durante o caminho para a universidade também era aceitável, nunca a caminho de casa.
UM
Estava, calma, não estava desassossegado. Era um dia como qualquer dia. Outro dia. Autocarros que caiam por ravinas na América Latina. Cheias e monções na Ásia. Ataques suicidas no Médio Oriente. As bolsas agitadas em sobe pela manhã e desce pela tarde. Só a página do obituário o queria desmentir. Estava morto. Alguém se dera ao trabalho de enviar para aquele jornal que tinha nas mãos uma fotografia de passe com a cara que era a dele, uma escassa nota biográfica, duas datas, uma herança por atribuir e uma missa de sétimo dia. O funeral já fora. Estava morto. Mas não, respirava, respirava para dentro da chávena de café, em pé encostado ao balcão, para dentro da chávena com as paredes forradas de espuma castanho e creme. Escarpas de cafeína. E a cafeína punha-o alerta. Estava vivo. As moedas que atirava para cima do vidro eram audíveis, o empregado voltou a cabeça “Está certo, obrigado”. Está certo. Está? Deu uma corrida até ao autocarro meio vazio.
Quando se sentou percebeu que tinha os nós dos dedos das mãos de alguém espetados nas costas, nas suas. Voltou-se para trás, não podia fazer toda a viagem com aquela pressão logo na linha das omoplatas, claro, punha-se direito e ia assim meia hora ou mais, sem apoios, sem incómodos, mas e nas curvas, e sempre que o motorista travasse, essa ideia de ir outra vez contra aquelas falanges bem nutridas de cálcio, falanges musculadas, de lavrador, como as que observava à noite, à luz da lareira, do avô, seria intolerável, por isso voltou-se para trás, devagar, para explicar deste seu incómodo. Bom, as coisas estavam assim, explicar o seu incómodo não era uma coisa que fosse acontecer. Não naquele dia, não naquele autocarro. Não àquele homem que de pé era decerto enorme, magro, hirto, como o avô, mas o avô lavrador era baixo, e ele estava ali quase de cócoras agarrado ao encosto que pertencia ao seu lugar, com os olhos muito abertos, a boca sem expressão, como um rasgão cosido a linha de pesca.
Isto não era uma história nova, já sucedera com Samuel Clemens, que o mundo conhece como Mark Twain, o demiurgo que fez parir Tom Sawyer e Huckleberry Finn. A morte de Clemens, levando com ele Twain, só viria a acontecer a 21 de Abril de 1919, tinha já 74 anos.
Mas não era de admirar: quando não temos domínio sobre a vida é natural que não tenhamos também uma palavra a dizer sobre a nossa morte. Não era exactamente este o caso, P. chegou a ter decisões sobre o seu percurso: apresentava-se vestido com rigores matemáticos, coisas imperceptíveis a estranhos mas que para ele faziam todo o sentido – nunca usava mais do que duas cores, se não contássemos os sapatos, nem se permitia padrões nas camisolas, no máximo listas, de preferência horizontais, as calças sempre mais claras do que a parte de cima. Isto era do seu departamento. Ninguém lho impunha. Mas o resto, o resto era tudo um ir com a maré, a mãe primeiro e depois – pessoas, gente que lhe dizia que isto era assim e que aquilo não podia ser que não fosse assado. Mesmo quando por um golpe de rebeldia aconteceu que cursava para canalizador veio um empregador abrutalhado instá-lo a aceitar o lugar de assentador de tijolos ou que o queimava na segurança social com uma carta que ia fazer jurisprudência. Por isso era natural que por esta altura, sem o consultarem, o tivessem já dado como morto e feito um enterro em vala comum. O que não o impediu de ir mesmo assim apanhar o autocarro. Porque, e isto também toda a gente o ignorava, o que os outros lhe faziam da vida era coisa que não lhe dizia nada. Se não lhe dizia respeito, mais ainda não lhe dizia nada. Estava-se nas tintas. Querem ver-me de joelhos a assentar tijolos? Tudo bem, eu assento tijolos, porque o que eu não tiro é os olhos da canalização, e é ali que estou de facto, a tirar medidas a uma anilha acabada pela ferrugem, a amansar uma fuga de água com fio e massa consistente, que é o que tenho à mão, tudo bem, eu assento a porcaria dos tijolos. E agora? Matam-me. Por mim tudo bem, mas vou ali à Baixa dar uma vista de olhos nas pessoas que descem dos barcos. Estou morto. Esteja, mas nada me impede de apanhar este autocarro, aliás, já cá estou dentro, com este tipo de dedos nodosos nas minhas omoplatas. E agora de boca entreaberta. O hálito. Por Deus, era necessário isto? E que se encostava a ele, meio babado, as mãos que não lhe davam folga às costa e a cabeça a pender para a frente – não podia ser para trás?
Mas ele tinha acabado de sobreviver a uma guerra com os seus demónios. Menos de meia hora depois de se levantar lia no quiosque da esquina que morrera. Não o leu por acaso, não foi por obra do acaso que acabou a desfolhar o jornal da urbe, abrindo-o com precisão de canalizador nas duas páginas dos obituários, tinha-se treinado nas últimas semanas para isso – não perder tempo com ninharias de jornal. Há vinte dias que esperava ver o seu nome com uma cruz e duas datas por cima, um panegírico vago, um texto patético que assentava como uma luva à ocasião. Tinha sido ameaçado: o fim está ai à porta. Não estava à porta, mas estava nos quiosques por todo o lado, o que era pior. Não era ninguém. Foi com isto que se confrontou toda a manhã. Os quilos que faziam ranger o soalho de nada valiam, era como se não fossem. Podia derreter-se em suor, esvair-se de todas as moléculas de oxigénio hidrogénio carbono e nitrogénio, que não estaria mais morto do que isto. Um jornal sancionava-o em fonte calibri capital de tamanho trintaesseis: FALECIDO. Uma coisa seca, a bold, sem serifas, nada.
Devia ter feito amigos. Não tinha feito amigos, devia ter usado o tempo também para fazer amigos. Agora estava desamparado porque alguém tinha decidido que tinha chegado a sua hora. Todos os dias dos últimos vinte anos usou-os a trabalhar, por vezes que nem um animal – diga-se, fechou-se em casa e com parcimónia esvaziou-se em pegas de rua. Sem ver utilidade nas relações com os outros, ditas pessoais, foi nelas que depositou os sentidos, com parcimónia, quando o rei fazia anos. Pensava que um dia talvez encontrasse alguém que o quisesse com ele, mas não tinha acontecido, ia a meio dos trinta e a vida ainda não tinha ido por aí. Mas e agora, será que alguém lhe valeria nesta altura, poderia alguém parar esta máquina que é a nossa morte em letra de imprensa. Não tinha amigos para desmentir os factos.
Só com os seus demónios. À primeira vista era difícil espremer desta figura uma espiritualidade, por mais escassos que fosse o projecto inicial, tirar dali uma ideia de inquietação - daqui se enforma a espiritualidade genuína - mais do que certo estaria votado ao fracasso. Porém, não parecia ser este o caso, porque depois de ler aquelas sete linhas no jornal ele enfiou-se em casa e andou às voltas, depois sentou-se e levantou-se e andou de novo às voltas. E ninguém age desta forma sem uma boa razão. E vistas as linhas do obituário que eram o seu, o mais certo é que fossem estas a causa imediata da sua súbita inquietação. E sendo assim, não era coisa pouca o que o preocupava. Porque não era nem a vida nem a morte, mas algo muito mais precioso: a razão de ser, a própria existência. O que o perturbava era a ausência de peso, desmentida pelo som do soalho que pisava com fraca determinação. Quanto tempo é que poderia andar naquilo? A fazer-se sopesar pelas tábuas gordurosas da sala de estar, e as do quarto, no linóleo da casa de banho. O que ia na sua cabeça: o que faz um homem? Não as suas perícias, mas que há que o faça homem, pessoa? As suas mãos? O trabalho, o produto de um dia de esforços, a sua ainda que escassa presença umas horas no sítio do ofício, o número de tijolos assentados ou o cimento que misturou? Era isto que ia na sua cabeça: no fim do dia o que faz um homem? O que lhe dá legitimidade para se impor perante os outros? Era isto.
Estava disposto a tirar as coisas a limpo e por isso meteu-se a caminho das instalações da empresa onde um filho da mãe disse um dia que não, canalizador não, vais assentar tijolos. Pensava: se eu assentar trezentos tijolos, se eu fizer isso, acabar uma fileira mais alta, acima da minha cabeça, sou. É impossível que não vejam o trabalho que saiu destas mãos (e fechou-as, girando-as a partir dos pulsos). Instalar uma canalização é que era agora inviável, passados todos estes anos, sem prática, com a formação já tão distante. Mas havia outra coisa: quem é que se prestou a entregar no jornal aquele texto hediondo? Que o tinham ameaçado com ele, por uma coisa de nada, não nega que fosse uma espada sobre a sua cabeça há quase três semanas, mas isso eram eles, agora, quem o entregou é outra conversa. Porque eles de certeza que não têm tarefas dessa natureza, entregar, enviar, não, eles decidem, portanto alguém fez chegar o obituário ao jornal. E foi seguramente alguém ao seu nível e se estava ao seu nível, se era um seu igual, como teve estômago para o fazer, sabendo que o fazia a um camarada? Isto também entrou no seu mundo de demónios recentes.
Mais do que os nós dos dedos é agora o hálito que mais o perturba. Uma coisa entre tabaco e aguardente. Faz um movimento para mudar de lugar mas o autocarro acelera a marcha numa avenida pouco movimentada e sem paragens e acaba a enterrar as omoplatas nas manápulas impávidas. Tesas. E sempre que sugere que vai levantar-se para mudar de sítio, há uma curva, uma paragem, um movimento qualquer que o atira de volta às falanges e decide pôr um ponto final nas suas intenções. Talvez entrar na cabeça da carcaça sentada no banco de trás. Não, não. Não é trabalho para mim, humilde canalizador por ser. Talvez outro, em casa, com folhas brancas, certinhas, sentado à mesa.
segunda-feira, setembro 19, 2011
quinta-feira, agosto 18, 2011
Com os anos passei a tomar como naturais os enganos da memória. Pensar que aquela pessoa era enorme mas era só eu que era pequeno quando a conheci, casas de portas largas que com a idade se tornaram estreitas ou armários de parede outrora inacessíveis e agora à mão.
Há quatro dias regressei à aldeia dos meus pais. Dos meus pais, avós, tios. Os enganos da memória não tiveram ali lugar. Temi, antes de entrar naquele mundo de coisas perdidas, que à saída deixasse de ter um lugar para voltar. Não. Tudo era o que foi. E esse é um milagre pessoal, impossível de explicar a outros. Quando pisei aquelas pedras quase descalço não era a matéria em que me sustentava, era outra coisa. Sentía-me em casa. Era só uma aldeia, mas era casa. Talvez por isso fossem também há quatro dias as sensações a ressoar mais alto do que a métrica dos espaços, das pessoas.
Fui com a minha filha, que tem a idade que eu tinha quando me dei conta daquelas ruas, o sol em gincana entre as pedras. Pensei que se aborreceria depressa. Mas não. Vi nela o que eu fui, saciado pelo elementar, pelas cores vivas do sol nessas pedras, um som de animais a cortar o silêncio, trinados que chegam de longe, de onde uma serra observa os movimentos sem pressa.
Um milagre meu. Uma memória que era grandiosa, já um espelho do paraíso, e por isso não podia agora ser outra coisa.