domingo, fevereiro 21, 2010

Quinze.

Meu Deus, porque sois tão bom,
tenho muita pena de Vos ter ofendido,
ajudai-me a não tornar a pecar


- Matei-o, Joaquim – JP está branco, o cabelo desalinhado e pontas de pêlos louros e brancos que mal desenham uma barba. – Acabou-se tudo. – encosta-se à parede para não cair e é ai que Joaquim o vai agarrar pelos colarinhos do casaco e o atira contra a ombreira da porta: Nãão.
Ergue-o do chão pelo pescoço e a toalha cai-lhe expondo a sua nudez, dando à cena uma aparência inesperada. Larga-o e JP deixa-se cair até ficar sentado no chão com a cara entre as mãos e a soluçar como uma menina. Joaquim volta a pôr a toalha e anda às voltas como um animal feroz, quer virar-se contra Jean mas não consegue, era ter ali três meliantes no lugar do amigo e tê-los-ia desfeito com um único golpe. Mas o que é que te deu para fazeres isso?
(Sem se levantar) Quando te liguei ontem estava transtornado. Pensei em tudo, ouve, em tudo, o que eu sou, aquilo em que vos meti. Conjuguei todos os verbos da justiça e andei às voltas com questões morais. Abri várias garrafas de cerveja e fui enchendo o estômago vazio e fraco para estas coisas. Tu sabes que eu não sou como vocês, mas o que tu não sabes é que eu andava a seguir o engenheiro, não com a motivação que possas agora atribuir-me, como se quisesse conhecer-lhe os passos e eleger a melhor oportunidade para… tu sabes. No sábado, quando ainda no sábado tu os seguias ao longe, também te vi, e penso que tu chegaste a descobrir-me no parque (Ah, eras tu) Sim, era eu. Vi como tu, Joaquim, tiveste dificuldade em acompanhá-los quando foram tomar o pequeno-almoço e quase os perdeste, vi como guardaste a distância durante a missa e como a mantiveste no parque. (JP faz uma pausa e pede silêncio) E foi ai, foi no parque, quando ele pegou na perna da filha e acariciou na cabeça – lembras-te? (Joaquim assente que sim com a cabeça) – que uma resolução se tornou clara para mim. Eu tinha de acabar com ele. Aquele homem que era o meu chefe devotava-se a uma menina loura de olhos azuis quando, há um mês, chamou ao meu gabinete um contínuo e, para me mostrar o que era autoridade, o despediu sem indemnização, ignorando a situação do funcionário, pai de quatro filhos pequenos, foi aí que eu me decidi. Quando te liguei era isto que eu te queria dizer mas não consegui, por isso, à noite, eu sabia as horas a que ele passeava o cão, resolvi, não queria que as coisas acabassem assim, mas resolvi confrontá-lo com a sua própria consciência. Esperei meia hora até que passasse a dois quarteirões de sua casa. Quando o vi encaminhei-me para ele e mal tive tempo para falar. Disse que eu era fraco e que havia coisas que tinham de ser feitas. Resoluções. Ouvi todas aquelas coisas em silêncio, sem conseguir reagir. Enquanto falava tentei voltar as costas e sair dali, mas estava paralisado. Pelo medo e pela adrenalina que me fazia tremer as pernas. Senti as veias a dilatarem-se e cerrei os dentes, com os punhos fechados sob as mangas demasiado compridas do blusão. (Como uma criança, volta a cabeça para cima e mostra as mãos escondidas dentro das mangas.) Quando tentei abrir a boca, estendeu o braço e esbofeteou-me. Foi quando cai no passeio e o cão se atirou a mim, de sentidos quase perdidos pontapeei o cão, ele ria, e o meu sangue de súbito fervia e os meus olhos foram golpeados por uma luz forte que chegou baça mas forte entre a névoa que caía deixando-me quase sem sentidos, apenas um vulto que se afastava de mim, uma figura que avançava ondulante a uma dezena de metros de onde eu havia caído. Ouvia um murmúrio de trânsito ao longe. O mundo resumia-se a nós os dois e um cão, tudo estava concentrado naquela cena. O que era um momento singular assumiu naquela noite a reverberação dos tempos, uma história que se repetia e me tomava a mim e ao engenheiro investidos num papel ancestral, um confronto tão irreprimível como irremediável. Sem saber porquê, levantei-me, agarrei numa pedra que estava por ali e (faz uma pausa, soluça) corri para ele, gritei e quando se voltou ainda a rir-se, eu não o via bem, tinha os olhos húmidos e em delírio, deixei cair as pálpebras e dei-lhe com a pedra em cheio na cabeça. (Joaquim faz um gesto com um braço.) Deixa-me acabar. Ele caiu aos meus pés agarrado a mim, a escorregar por mim abaixo ainda a chamar-me filho da puta. Filho da puta. Filho da puta. Voltei a golpeá-lo quatro vezes, golpes que soaram secos no corpo inerte, dei-lhe outra vez e outra e outra e outra. No crânio que se quebrava como uma melancia, quatro golpes na apatia dos dias. Num impulso tirei-lhe a carteira e corri até casa. (pausa, Joaquim olha para JP) Está feito.
- Mataste-o… assim...
- Falou comigo como se estivessemos no seu grande gabinete, daquela maneira, só para me amesquinhar. Por isso lhe abri a cabeça com uma pedra.

Dezasseis.

SEGUNDA-FEIRA À NOITE


É segunda-feira à noite e estão sentados os quatro na sala de Joaquim. JP está mais calmo. Joaquim está apático, a um canto. Há largos minutos que não se ouve, tem os olhos vagos, age como se tivesse perdido tudo. E o que faz um homem que perdeu tudo? Nada, abandona-se a ele próprio.

Dezassete.

FUNERAL


São quatro da tarde e JP caminha com os pés a arrastar, devagar, atrás de umas trinta ou quarenta pessoas. De um lado e do outro de um carreiro estreito há campas rasas, pequenos mausoléus, capelas que dão para meia dúzia de familiares se sentarem e rezarem uns minutos aos seus, rectângulos de terra recentemente remexida que ainda não tem nome. JP caminha atrás do caixão do chefe, do homem que ele matou com cinco golpes secos há três noites. Entre ele e a carcaça desfigurada do engenheiro está a mulher, os olhos escondidos atrás de uma armação negra e lentes negras que deixam ver apenas um terço do rosto, na cabeça um chapéu de palha entrelaçada e pintada de preto dá-lhe um aspecto sofisticado, uma das abas faz um serpenteado que roça o casacão negro, e vai consolada por uma senhora de um lado e várias jovens do outro, logo atrás homens distintos de cabelos compostos e ar digno. Não vê as crianças e agradece aos céus porque não iria aguentar e podia até sucumbir à culpa e acelerar o passo para de seguida ajoelhar a seus pés a implorar perdões. Mas não estavam. À sua frente estavam ainda alguns directores da empresa e um ou outro funcionário do quadro. Ele seguia atrás só porque Joaquim insistiu que ele devia estar ali, não em homenagem mas numa manobra para não levantar suspeitas depois de ter faltado ao trabalho precisamente no dia seguinte à noite em que o engenheiro foi atacado e morto por um bando de delinquentes, por meia dúzia de tostões que tinha na carteira. Os pés arrastavam-se como se carregassem todos um pouco a morte do defunto Rodrigues. Os funerais decorrem sempre desta forma: segue à frente o morto e atrás, no cortejo fúnebre, um fenómeno de simpatia solta a morte, o pedaço de morte que todos carregamos, que trazemos por norma mais ou menos neutralizado, mas que nesses dias de luto se aproveita da apatia em que estamos afundados para emergir e, por uns momentos, horas, roubar a vitalidade dos corpos entorpecidos dos vivos e lembrar que um dia outros hão-de arrastar os pés atrás do nosso próprio féretro. De súbito, quando o caixão desce à terra, é a nós próprios que contemplamos na descida, tomando consciência de que somos perecíveis, de que já não há tanto tempo como pensávamos, pior: de que há agora coisas que já não poderemos fazer. Eram no entanto outras as conjecturas que ocupavam JP, autómato, a arrastar os pés nesta tarde que ia do cinzento ao sol brilhante alternadamente. Assoma-lhe à memória o som oco da pedra que empunha contra a cabeça ensanguentada do director já sem vida. Porquê aqueles quatro golpes quando já adivinhava o corpo sem vida. Era ele Joaquim? Com uma sede tão grande de morte que lhe fazia vibrar as cordas do braço, erguendo-o em investidas repetidas? Era ele pior do que Joaquim? Em que animal se transformara há três noites? A inquietação apossou-se dele e transpirava agora sentindo a face corada, ou talvez estivesse pálido. Chegam-lhe aos ouvidos os gemidos da viúva, o roçar dos pés no alcatrão esboroado, uma pazada ao longe, vislumbra terra que esvoaça enquanto o coveiro dá os últimos retoques na sepultura, perde a noção do solo firme e apoia-se num anjo que encima uma lápide de mármore brilhante que lhe devolve a tibieza com que suporta esta provação. Maldito sejas, Joaquim, eu disse-te que não aguentava. Mas mataste-o, e isso aguentaste. Não quero ir. Mas vais. Andrés e Tomás assentiam com os maxilares contraídos e movimentos repetidos da cabeça. Quando por fim a cerimónia estava concluída apertou a mãos a dois ou três amigos da empresa e encaminhou-se para a porta. Tremeu quando, já em passo incerto mas acelerado, ouviu o seu nome: “Jean Pierre, obrigado por ter vindo”, era a viúva, voltou-se a medo, “Sei que o meu marido tinha consideração por si, não imagina como é importante para mim ter aqui hoje aqueles que eram próximos do Rui”. Como ela se dirigia a ele, voltou para trás e caminhou em direcção ao local onde o coveiro dava agora pancadas com as costas da pá para alisar a terra, uma visão quase insuportável, com cada golpe a atiçar-lhe a culpa, a culpa tão grande agora que os seus ombros se fechavam contra o peito e os braços decaíam pelo ronco com as mãos coladas às pernas. “Obrigado Jean Pierre”. Apertou-lhe a mão, mas, num instante, a mulher do Rodrigues agarralhe a mão entre as suas e depois puxa-o para si e abraça-o soltando um pranto. “Não imagina como é importante ter aqui aqueles que lhe eram mais próximos”. Jean Pierre tem os olhos húmidos sem ter de desempenhar qualquer farsa, é assim mesmo que se sente, é o JP de antes daquela noite em que soçobrou a um instinto que não sabia ter escondido. Acena com a cabeça, sem sentido e afasta-se. Quando sai do cemitério vê a capela de onde partiu o corpo. Faz um movimento para subir as escadas e entrar, mas o seu corpo arrasta-o dali para fora e em breve deambula ao acaso pelas ruas, enquanto revê uma e outra vez a cena em que desfere golpes brutais na fronte do chefe, o cão a ladrar-lhe com as mandíbulas a baterem uma na outra produzindo um som compacto como dois pedaços de mármore que chocam uma e outra vez, volta a erguer o braço e repete quatro golpes que o inquietam, mais do que o primeiro, são aqueles quatro golpes que o inquietam. As ruas são um fraco paliativo.

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