domingo, janeiro 10, 2010

É sempre um acontecimento quando damos de caras com o título das histórias que estamos a escrever: o título MALUVU surgiu não surgiu do nada mas do tudo.

Cinco.
Tomásc regressa ao dia zero

Tomásc está sentado com os braços apoiados em cima da mesa a remoer o destino que empurra para baixo com goladas de café de saco. Está às portas do cemitério de uma cidade pequena na província.
A placa diz-me à entrada: Pulvis es. Parvus et magnus ibi sunt. São palavras que conheço desde aquele dia em que nos mudámos para o bairro novo com vista para os zigurates, de onde se levantava uma aurora laranja que me moía todos os 1 de Novembro. Hoje caminho só com a mão direita pousada no féretro que envolve o meu pai. O caminho é feito ao longo de uma espécie de vereda que leva a uma capela. Atrás de mim vêm todos os outros. Não há um som, o mundo inteiro fez silêncio às 18 da tarde desse dia porque ia a sepultar um Homem. Dezassete anos antes fiz o caminho entre a nossa cidade e os hospitais da capital numa ambulância em que meu pai ia a caminho de uma operação ao cérebro e foram 80 quilómetros em que não lhe larguei a mão, de modo que no dia 5 de Abril não podia deixá-lo fazer sozinho aquela última caminhada. Vinte e três horas antes entrei na unidade de cuidados intensivos do hospital, disseram-me que o seu estado era grave, que era bom que tivesse alguém da família com ele. Quando entrei encontrei o meu pai com olhar vago e a máscara de oxigénio que para mim não era estranha. Tinha sido reanimado pela quinta vez em toda a sua vida. Pela quinta vez foram chamá-lo ao outro lado. Segurei-lhe na mão e falei com ele. Disse-lhe pai já passámos por muitas coisas antes e vamos passar por isto. Na máscara repousavam restos de sangue, o que fiz notar ao enfermeiro. Pouco depois ele limpou a máscara com um desvelo inusitado. Meu pai continuava de olhar vago para o fundo da cama, mas era como se olhasse alguém. Continuava a segurar-lhe a mão, falava com ele. O meu pai era um protegido, como dissera 50 anos antes uma senhora que sabia coisas e pediu à minha avó - depois de uma figura de menina ter entrado em contacto com meu pai - "levante-lhe a camisa, veja se o António tem uma folha de oliveira desenhada por debaixo do coração, O ANTÓNIO ESTÁ PROTEGIDO". 4 de Abril, largo a mão direita de meu pai, rodo a cama, pego na sua mão esquerda e puxo o lençol. A folha de oliveira está lá mas agora mal delineada e sei então que o meu pai vai morrer. Digo-lhe ao ouvido: o pai foi o meu herói, obrigado pai obrigado obrigado pai obrigado obrigado por tudo. Quando me ergui procurei-lhe os olhos - os olhos do meu pai eram hábeis - mas já estavam fechados. Afastei-me do leito de morte: um Homem tinha morrido. Às 18 da tarde do dia seguinte eu fiz a derradeira caminhada com esse homem de quem não estava à altura. A última vez que o olhei vi-o imponente, antes de ser descido sobre o que era já a morada do meu primo e eu temo não ser digno deles. Pouco depois fiz em sentido descendente a mesma rua em que o meu padrinho me disse um dia ter encontrado o meu pai enquanto a subia em estado de completa excitação. Então António: o meu filho nasceu, doutor, nasceu o meu filho. E ainda hoje temo não estar à altura do antigo furriel miliciano que não trouxe medalhas do Ultramar mas que um dia teve uma festa oferecida pelo chefe de uma aldeia perdida no norte de Angola porque desembolsou a arma e a encostou às barrigas dos comerciantes portugueses para os obrigar a pesarem de novo toneladas de café à sua frente, a frente dos seus olhos, um olhar que quando queria misturava de arrogância e autoridade, e feitas as contas eram centenas de quilos a menos na primeira pesagem. À tarde foi chamado perante o oficial de posto, um tipo pífio de uniforme que pretendeu assustá-lo com palavras que sugeriam a insubordinação. À noite foi chamado à pressa porque uma festa de que nada sabia estava a preparar-se para ele e para os homens que durante a tarde se impuseram a seu lado com o dedo no gatilho. Maluvu, uma bebida tradicional, parece que foi o que havia sido preparado em sua honra. Honra. Temo não estar à sua altura.
Tomásc desce as escadas ignorando o elevador e vagueia horas pelas avenidas novas. Ser confrontado com a sua fraca estrutura moral, sentir que defraudou a matriz filial e ver-se desta forma rodeado de espelhos fazem-no sentir encurralado, como se não mais a vida pudesse ser o que era. Enquanto vivo o pai era não só o referencial como a referência constante para o dia-a-dia. No pai media as vitórias e as derrotas quotidianas, mais as derrotas dos que as vitórias, mas agora estava perdido. Não sabia se estava a corresponder, e nessa tarde foi assaltado por uma espécie de urgência para fazer alguma coisa com a vida, ainda não era velho, mas estava nos trinta e nada se passava como ele julgava – e o pai tinha a certeza – que se passaria. Uma história de homens da família que morrem antes dos cinquenta não é bom. Tem razão doutora, mas é a minha matriz. Como leu um dia um personagem dizer talvez a vida queira alguma coisa de mim, talvez a história de Jean Pierre não fosse mais do que um toque de clarim numa alvorada angolana que ele sentia com o cacimbo das ruas da capital a entranhar-se-lhe nos ombros. Mete-se no metro e vai directo aos paços do concelho, onde às horas tardias que já eram apenas encontra o segurança: Boa noite – Boa noite, doutor. Três a três sobe as escadas que dão à sala de janelas altas e portadas maciças de tinta branca a estalar com estalactites unidimensionais. Demora alguns minutos a abrir o computador, entra na caixa do correio e imprime um e-mail. Um certo e-mail. A caçada não ficará por conta de Joaquim.

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