São epifanias ou que raio. Desde há dias sonho que escrevo. Como já me aconteceu sonhar que voo quando ando feliz. O que é raro. Mas não. Agora sonho que escrevo. Que entre mim e uma resma de folhas brancas há uma mão que empunha a caneta. E escreve. Há dois dias sonhei que arranjara maneira de me meter no livro que larguei. Descobri uma fórmula em que uma palavra que terminava uma frase era toda a solução para a enigmática afirmação da seguinte. É assim há dias. Sonho que escrevo. E sempre que sonho, acordo como se tivesse agarrado ouro entre as mãos. Noutros tempos ter-me-ia obrigado a levantar para assentar tudo nos cadernos que por força de anos de hábito ainda não largo. Para escrever linhas tortas e palavras tremens. Para agarrar a frase mais brilhante, o pensamento mais tortuoso. Para na manhã seguinte acordar para a banalidade de duas ou três merdas mal alinhavadas. Mas agora não. Abandonei esses jogos mentais. Esses fugazes momentos alucinogéneos entre o sono e a vigília. Entre o ser e o nada. Agora não. É definitivamente o nada. Deixo que assim seja porque um dia disse que assim seria. E sou - nada. A ideia de abandonar a única coisa que me dava lugar custou-me. Ainda sonho que escrevo. Ainda sinto o cheiro da dor enquanto sonho que escrevo. A dor. Angústia. A mão que não voa. Sou de facto eu quem está no sonho. Não outro. E isso dói. Menos do que antes escrever. Mas dói porque antes escrever era uma sucessão de dores que apagavam as anteriores. E agora não há paliativos. É o nada entre o ser e o não querer ser. É a ressaca da tinta seca. É um nome que se está a apagar do futuro. É assistir a um sonho de braços cruzados. Não tivesse havido enganos e caprichos de ambos os lados da linhagem e eu seria um Guerra André. Pelo contrário, está a escrever-se que serei nada. E para quem é orgulhoso e nada mais sabe fazer, chega a partes do dia em que custa mais do os delírios da noite. Que direi eu à hora quando me perguntar o que fui.
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