quinta-feira, janeiro 22, 2009

esboço escondido no cérebro para receber futuro tratamento

Ninguém o sabia ainda. Não entre nós enquanto permanecesse uma decisão das altas esferas. A medida era considerada uma prioridade para a manutenção da espécie e aqui aninhava o engulho da ideia. Porque era a medida da dignidade do homem. Os poucos que eram estranhos aos níveis mais altos da estrutura e que tiveram contacto com os factos que estavam para ser decidiram que não podiam coabitar com aquela ideia. Era urgente eliminar a fonte dos horríveis procedimentos que vinham ai. Porque apesar de se assemelhar a um plano demoníaco este era um projecto de homens. Homens ordinários que tomavam em mãos o destino da espécie. Num tempo difícil como é este, os humanos de ranking superior viram-se inesperadamente tocados pelas pedras que se soltaram das superestruturas e começaram a roçar-lhes os calcanhares para os atingirem depois pela cintura. Nesta altura já os conselhos se reuniam hora a hora para tomar o pulso da situação até que da cabeça de um homem saiu a ideia primordial: eliminar os excedentários.

As grandes corporações estavam a registar prejuízos que colocavam em risco toda a estrutura empresarial da cidade. O crédito estava congelado e a única forma encontrada para equilibrar a contabilidade era diminuir despesas com os operários. Tinham considerado livrar-se de trabalhadores qualificado. Havia no entanto um problema: apesar de sorverem individualmente uma parte mais substancial dos recursos em salários eram contudo em número muito reduzido e pouco fariam mexer a equação global. Ademais, dificilmente seriam tão domáveis como o proletariat. Foi unânime a decisão do conselho dos conselhos. Cortar na base e cortar em grande. O que desencadeava novos problemas, desde logo os encargos do município com aqueles que deixariam de depender de um vencimento das empresas. Depois, o redesenhar do quotidiano da cidade, com milhares de desempregados a andar pelas ruas e o caos que isso iria provocar na vida dos cidadãos que mantinham vidas regulares. Até que da cabeça de um homem saiu aquela ideia de eliminar os excedentários.

Não se tratava, como se vira noutras épocas de crise, de uma mera eliminação dos livros da contabilidade das empresas, mas a sua pura eliminação da arquitectura social: a eliminação física. O mais tarde regedor do departamento de limpeza apresentou a sua ideia num dos conselhos e rapidamente a ideia se propagou a toda a rede empresarial do município. Recebida nos primeiros minutos com relutância e por que não dizê-lo com nojo, após minutos de silêncio, aquele homem falou, disse pouco, pouco havia a dizer, era da sobrevivência da estrutura que tratavam naquela reunião: meus amigos, o que pretendemos é parar esta sangria na nossa economia, não apenas transferi-la para outras estruturas da alta esfera onde o mal continuará a esgotar os nossos livros de contabilidade, de forma indirecta mas igualmente letal. Quem mantém o Orçamento do município? Nós. Cortando nos gastos com pessoal, o pessoal deixará de ser nosso mas continuará a necessitar de subsistir e quem passará a pagar pela sua subsistência? O município. Aí têm, meus amigos, o município que nós financiamos. E se forem esgotados os meios do município, quem deverá repor as suas reservas nestes tempos difíceis? Nós, claro. Eis a situação, cortar os meios ao município levará à revolta e ao caos pelo que o mais acertado é eliminar o problema de uma vez por todas. Após um hiato na argumentação, uma voz acenou com uma dúvida mais do que oportuna: e como faríamos, supondo que aceitamos essa ideia – e pronunciar estas palavras era já a assinatura de cruz -, como faríamos essa, digamos, limpeza de excedentes. Excelente nomenclatura, meu amigo, limpeza de excedentes. Com snipers, what else. Poderá levar semanas, mas é a única forma de controlar todo o processo. Eliminação selectiva, indivíduo a indivíduo, isoladamente e de forma a permitir a remoção dos corpos para posterior incineração.

Este foi o plano aprovado pelo conselho de conselhos três dias depois. Um plano que exigia dos departamentos de Recursos Humanos uma selecção alargada de operários e funcionários a dispensar pelas grandes corporações.

A estratégia seria ainda afinada nos seus pormenores mais sórdidos. Não seria a ausência destes homens e mulheres sentida pelos amigos e famílias? Inevitavelmente, no entanto, como em tudo, não era essa a preocupação das corporações mas antes justificar de forma crível os seus desaparecimentos. Porém, para tudo há uma solução: primeiro, o processo deveria ser levado a cabo apenas nas instalações durante um período de trabalho contínuo que exigiria dos empregados que se mantivessem nas empresas – sob um qualquer pretexto – e, segundo, seria publicitado um falso seminário fora da cidade e durante o qual um acidente qualquer custaria a vida a milhares de trabalhadores numa tragédia que provocaria evidentemente uma profunda consternação em todos e cada um dos cidadãos. E por que não avançar logo com a ideia do acidente e fazer tudo de uma vez? Ahaa, porque nos acidentes há sempre danos colaterais e nós não queremos que seja eliminado alguém que faça falta à estrutura produtiva. É fundamental perceber – ditava já um memorando para os teus olhos apenas - que isto não é um processo de sangria pura e dura, antes um intervenção cirúrgica bem delineada. Aí têm.

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