domingo, outubro 16, 2011

O VELHO


Autocarro. Carreira 27. Subúrbios - Baixa - Centro - Universidades - Subúrbios – Casa. Passe 1, o mais barato: cinco por cento da pensão; os restantes: vinte por cento para o rés-do-chão, quarenta por cento para os remédios, vinte por cento para água luz gás, para um cigarro diário um café diário. Era por esse café a meio da manhã que estava no autocarro a caminho da máquina da reitoria da faculdade de Direito, único sítio do mundo onde tinha uma chávena de plástico a 10 cêntimos. O cigarro guardava-o para a noite.



Fazia a viagem dia após dia há quinze anos. À noite fumaria o cigarro ao lado do rádio, uma velha telefonia fabricada na Alemanha, trazida de Frankfurt, de quando deixou a sua Elizabete com uma criança ao colo e outra lá dentro: Goreti e Manel. Foi antes de irem para a capital, num tempo em que tinha toda a força do mundo e a pele esticada. Agora estava praticamente morto, mas quando casou na aldeia com a moça mais… Agora arrastava-se até ao autocarro e descia a custo na alameda das universidades. Que tempos, não se via um álamo em redor mas a placa dizia Alameda das Universidade. No meu tempo isto não era permitido. Descia a custo e arrastava-se para ouvir sempre o mesmo miúdo carregado de livros - um doutor, portanto – “bom dias avozinho”, todos os dias que há quatro anos era bom dia avozinho, e não sabia se era gozado ou se o rapaz que ia ser doutor se inspirava no respeito para o cumprimentar quando de manhã acabava a custo de subir as escadas de Direito. Noutros tempos nada lhe teria escapado, mas agora não conseguia distinguir as coisas, tinha a vista cansada. As imagens eram sempre turvas. Só uma silhueta: bom dia avozinho. Se tivesse a certeza podia responder de volta, talvez um dia substituísse o “hum” por um bom dia rapaz. Talvez fosse mais apropriado bom dia doutor. Ele não era nenhum saloio, talvez agora parecesse um trapo, mas houve tempos em que punha camisa com gravata para ir tratar dos arquivos de uma empresa ali na Baixa. Quando chegou de Frankfurt tinha amealhado uma soma jeitosa e com as graças do filho do regedor arrumou as tralhas e agarrou na mulher e nos filhos e instalaram-se nos subúrbios. Para começar a trabalhar logo na segunda-feira. A Elizabeti ficou em casa com os meninos. Mas não eram nenhuns labregos, uns sabujos da aldeia. A Elizabeti era sempre foi asseada. A casa era três divisões com a retrete ao lado, que digo, dentro da cozinha.



Os banhos tomavam-nos ao domingo, à vez, numa tina. Respeitáveis. A ganhar espaço num mundo hostil, longe da lavoura e dos animais. Ninguém a quem chamar amigo. Quando poderiam regressar – nunca.



Estava sozinho. Acontece mais do que uma vez que alguém fique sozinho na vida. Todos os dias. O mundo está dividido em fusos horários para apanhar o Sol sem que um raio seja desperdiçado. A toda a hora. Quando o ocaso abre as camas deste lado, outro tanto assenta os pés numa tábua que range para se atirar à vida. A cada minuto alguém fica só para todos os ocasos que lhe restam. E é assim que se atira à vida – sem ninguém. Com um tipo a esfregar-lhe as costas nos dedos das mãos quando está a caminho de um único momento de consolo, onde pressente as despreocupações da turba de estudantes que exasperam pelo futuro com um copo de café, um copo de plástico que lhe queima os dedos, a fumegar na espiral que se levanta acima do líquido negro. Esgota os minutos com parcimónia. Senta-se nas escadas e perscruta esse lugar onde um dia assentaram raízes verdes álamos. Uma paisagem vaga através das córneas gastas, a lembrar acrílico riscado. Populus nigra. Verde, um arranha-céus verde. Ouro no Outono. É verdade que estava velho, mas tantos anos de arquivo alteram a sensibilidade de um agricultor.



Morrer na alameda. De preferência, mas morrer durante o caminho para a universidade também era aceitável, nunca a caminho de casa.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial