quinta-feira, julho 02, 2009

Treze.

Um acidente.


A caminho da noite. Acabaram por comer qualquer coisa em casa de Tomás – nothing fancy, uma coisa quase seca - antes de partirem para uma noite de tripop mas era mais um som à Lisa Gerrard o que levavam na alma. A caminho da noite, já na rua. Acabaram por se deter breves instantes num tipo que apresentava à beira-rio o seu espectáculo de robertos. Roberto, para dizer a verdade. O tipo suspendia-se de um boneco de uns bons três metros de altura, ao qual estava ligado por varas metálicas. Neste caso era o boneco quem ordenava todos os gestos. Quando entraram no Lux, iam já nas duas e tal da manhã e sem nada para decidir. Por momentos, os planos da noite foram absorvidos num vórtice de música e corpos de gajas desinteressantes. A meio da noite que já madrugava, Andrés foi contra um dos colegas lá da revista, um tipo baixo e rotundo, mais velho, que foi despejado na agenda e que se ocupava a chatear os jornalistas hora sim hora não com uma conferência de imprensa que estava para acontecer ou uma actriz promovida a estrela que tinha uma sessão de fotografias ou de autógrafos ou uma coisa do género. “Eia Andrés, por aqui?”, não, por ali, quis responder-lhe mas foi um “Eia” que lhe saiu e sem dar por isso já estava ouvir não sei o quê dos horários da revista e que estava a ser lixado com os subsídios e que era uma merda ter de trabalhar tardes e noites por causa não percebeu de o quê quando sem anúncios esofágicos jorrou um vómito para cima do colega que acabara de encontrar entre duas músicas lentas e chatas. O colega não levou a coisa a bem e fez um ensaio de que queria arrear-lhe mas Joaquim que estava por perto a rir às gargalhadas interpôs-se e arrancou dali para fora com Andrés por um braço enquanto fazia sinal a Jean e Tomás. E tudo o que eles eram estava resumido nesse momento. Uma náusea imensa pela vida. Pela vidinha.
Doze.

O QUE IMPELE JOAQUIM


Com um álbum antigo dos Gipsy Kings já a rodar ao melhor estilo vinil, a discussão haveria de se prolongar horas noite adentro. Era de sangue que se tratava e a decisão não iria ser tomada por quotas nem por voto de qualidade. Fosse como fosse, dessa noite todos haveriam de sair com as mãos vermelhas e o coração a carburar a extra-sístoles. Aquele filho da puta ia morrer a quatro mãos tomadas de um arco-íris de motivações. Os Gipsy Kings falavam de um amor atormentado quando o branco dos olhos tomou conta de Joaquim transmutado num anjo espectral. De costas para Andrés, Tomás e Jean Pierre, escondeu um sorriso que lhe arrepiou a pele até às mãos crispadas sobre si próprio. Toda a noite, enquanto disparava argumentos – departamento a que inevitavelmente regressaremos adiante uma e outra vez -, outra motivação o impelia a reunir o consenso sobre a morte do chefe que mal conhecia e de quem também ele apenas ouvira falar. Há muito tempo que deixara de contemplar a justiça dos homens e apenas acreditava na punição física, nas chagas da carne. No ajuste de sangue, mas isso também eles o sabiam, e toda a sucessão de acontecimentos dos últimos tempos apenas dava forma ao inevitável. Joaquim funcionava à base da lógica mais simples.

E ademais, nada era mais forte para aquele sanguíneo do que a oposição e o conflito, o que lhe gerava invariavelmente um visceral nojo pelo poder; a sobranceria, o despotismo e qualquer tipo de posição dominante deixavam-no nervoso e instável. Desde que o conhecem que lhe notam uma aversão às ideias de supremacia, que o levavam não raras vezes à má-criação e à violência. Acata mal ordens dadas de forma seca e isso era sempre meio caminho para reagir de acordo com o impulso primário que não consegue dominar. Por detrás de um coração que por vezes se enchia de desgraçados e pelos quais dava murros nas mesas estava um animal em estado puro. Por isso a perfeição que Joaquim velava daqueles últimos dias, uma perfeição capaz de conjugar num momento o universo que um homem como ele espera toda uma vida. Mas ele é paciente, fora paciente. Joaquim sabe que todos têm o seu lugar na cadeia alimentar. Por isso era paciente. E sabia mais: que um dia haveriam de estar debaixo da sua pata e que para isso acontecer um erro deveria ser cometido, e esse erro aconteceu. Mas (isto) nada disto poderia explicar-lhes. Joaquim disparava argumentos que não passavam de uma manobra e no seu cérebro desenhava-se já a bissectriz em que estas duas realidades se encontraram para consumar a sua obsessão: uma justiça de homens despidos de atavios judiciários e a ideia de matar. Sabia que no seu íntimo, no cerne da sua motivação, estava a ideia de matar por si só. O deslize do chefe de Jean Pierre era apenas o esqueleto do inevitável, uma ideia de somenos que, a seu tempo, e sem que ele o soubesse, era como se desde que nascera estava destinado a cometer. Apenas para que a cadeia alimentar se invertesse na lógica de Joaquim. Eles não o puderam ver, mas teriam adivinhado que seiva lhe ia nas carótidas infladas se vislumbrassem a sombra a encimar-lhe o esgar cinzento enquanto procurava um saca-rolhas no móvel atrás de si. O sangue e a morte formigaram-lhe já o corpo enquanto antecipava um homem a debater-se sob as suas mãos como um anho bíblico a esvair-se em contracções e golfadas vermelho escuras.
Onze.

Tomás toca a reunir.


No sábado a segui àquela quarta-feira pouco promissora Tomás telefonou aos amigos e pediu-lhes para aparecerem lá em casa. A meio da tarde estavam todos reunidos no sexto andar de uma zona boa da cidade. Com ar descontraído, Joaquim atirou para cima da mesa que teve de aviar uma miúda à pressa, o que lhe valeu, não pelo acto mas pelas palavras que escolheu – como invariavelmente escolhia para essa situação -, a reprovação de três pares de olhos. “O que foi, então, o que é que eu disse”, deu um golo na mini gelada que segurava com displicência entre o indicador e o dedo médio. Bem, arrancou Tomás, a questão é esta:

(Levantou-se.) Andou até ao fundo da sala, respirou fundo, voltou-se e disse isto: “Ele vai morrer. Devemos decidir como”. Tomás esticou o beiço inferior, enrugou o cenho e concordou – Por mim tudo bem.

“Nestes dois dias fiz umas pesquisas. A ideia não é nova. Já foi posta em prática em inúmeras ocasiões. Umas vezes a encoberto, outras de forma mais explícita – abriu os braços num geto curto com as palmas das mãos para cima - Há autorizações ao nível Executivo para iniciar a eliminação selectiva de trabalhadores. (Mas o que é que estás para aí a dizer… ao nível executivo, eliminação selectiva – Andrés recorda-se do sonho que tivera e começava a pensar que tudo encaixava bem demais quando foi atalhado por Joaquim: ouve, porra, ouve.)

“Ora bem, a medida não é ainda oficial, mas os patrões da indústria preparam-se para dispensar trabalhadores através da eliminação… (Mas que eliminação, não estamos na Palestina. O que queres dizer com eliminação – insiste Andrés. - Ouve, porra – nesta altura Joaquim agarrou-lhe o braço e Andrés sacudiu-lhe a mão “Então”.)

“As coisas não estão fáceis para a economia da cidade. Parece estar decidido que o ciclo dispensa, desemprego e subsídio, ou reforma, não vai equilibrar as coisas. Sem grandes explicações, a solução final para a situação é a pura eliminação de trabalhadores.

- Mas como?
- Com snipers, Andrés, sei lá.
- E o Jean Pierre…
- Fez o que não se faz perante os senhores da guerra: disse não, desobediência marcial – respondeu o firme Joaquim, a sorrir, já com uma mão orgulhosa sobre o ombro de Jean. – Disse que não quando o senhor director-geral o pôs à frente da primeira comissão de avaliação para os dispensáveis, ou seja, a comandar o primeiro pelotão de fuzilamento.
- Comissão dos dispensáveis?
- O André devia chefiar a primeira experiência de dispensas com vista à eliminação de trabalhadores. Uma coisa quase informal com uma quota de cinquenta funcionários do seu próprio departamento, lá nos Recursos Humanos.
- Vocês estão a brincar comigo – disse Andrés a rir mas aparentando estar mais preocupado por Tomás ter trocado as Sagres pretas por minis. – Vão apanhar onde… é como daquela vez em que convencemos o Tomás de que…
- Podes parar – disse Joaquim. – Ninguém está a brincar contigo. Ninguém está a brincar, acredita. Tomás, explica-lho bem explicado.

Tomás andava há dois dias com aquele papel no bolso de trás esquerdo. Retirou-o com alguma cerimónia e desembrulhou-o, endireitou os vincos, olhou em particular para Andrés, a última resistência ao apelo vital.

“Isto veio-me parar às mãos num mail a que não dei qualquer importância apesar de o ter imprimido e guardado. Pensei de início que era uma daquelas brincadeiras que acabam com música de flautas de pan para elevadores.

(Começou a ler.)
“O conteúdo deste documento deve ser remetido apenas no interior das altas esferas. Sabemos da situação que vivemos actualmente e da agonia em que entrarão as nossas estruturas económico-sociais caso fiquemos de braços cruzados. À primeira vista, a medida que agora introduzimos para vossa apreciação poderá parecer excessiva mas verão como os tempos exigem austeridade e uma firmeza espartana. Trata-se na verdade de uma medida prioritária para a manutenção da espécie. Sabemos que mesmo entre nós iremos enfrentar resistências e que há quem julgue para já ser incapaz de coabitar com esta ideia mas, creiam, trata-se da solução derradeira: é urgente eliminar os indivíduos excedentários. Nesta altura já os conselhos se reúnem hora a hora para tomar o pulso da situação. As grandes corporações registam actualmente prejuízos que colocam em risco toda a nossa estrutura empresarial, pelo que não devemos ser contemplativos nem, em nome da própria existência, descartar uma acção desta envergadura. O crédito, como sabem, está congelado e a única forma de equilibrar a contabilidade é a diminuição das despesas com funcionários. Não se iludam, este plano que será posto em breve no terreno na nossa cidade serve também para testar a expansão a todo o território nacional e quem sabe se não será para exportar. Acreditem que a gravidade da situação nos levou a ponderar abranger também trabalhadores qualificados, no entanto, colocou-se desde logo um problema: apesar de sorverem individualmente uma parte substancial dos recursos em salários são contudo em número muito reduzido e pouco fariam mexer a equação global. Ademais, dificilmente seriam tão domáveis como o proletariado e o funcionalismo de base. A decisão do colégio dos conselhos empresariais foi unânime na decisão do conselho dos conselhos. Por outro lado, ao contemplar o despedimento simples como solução, logo saltou para a equação o problema de milhares de desempregados a andar pelas ruas e o caos social latente, em particular para a vida dos cidadãos que manteriam vidas regulares. É portanto, ao contrário da doutrina imposta noutras épocas de crise, não de uma mera eliminação de custos nos livros da contabilidade das empresas, mas a sua pura eliminação da arquitectura social: a eliminação física. A ideia partiu do agora regedor do departamento da limpeza municipal. Devemos comunicar que este homem apresentou os princípios de todo um plano num dos conselhos e rapidamente a ideia se propagou a toda a rede empresarial do município. Se foi recebida nos primeiros momentos com relutância e por que não dizê-lo com nojo, após um silêncio moralmente envergonhado, o pouco que aquele homem disse, pouco havia a dizer, era da sobrevivência da estrutura que tratava, rapidamente e de forma súbita ganhou adeptos entre os membros superiores do colégio empresarial, que como sabem tem o assentimento intrínseco das estruturas políticas da cidade. Uma última palavra: meus amigos, o que pretendemos é parar esta sangria na nossa economia, não apenas transferi-la de estrutura para estrutura como uma gangrena itinerante que continuaria a secar os nossos livros de contabilidade, de forma indirecta através da taxação mas igualmente letal. Quem mantém o Orçamento do município? Nós. Cortando nos gastos com pessoal, o pessoal deixará de ser nosso mas continuará a necessitar de subsistir e quem passará a pagar pela sua subsistência? O município. Aí têm, meus amigos, o município que nós financiamos. Cordialmente vosso em nome do colégio superior.

(Tomás prossegue após um gole na mini.)
“Há depois uma adenda em que se refere que o plano deverá ser afinado nos seus pormenores mais sórdidos. Não seria a ausência destes homens e mulheres sentida pelos amigos e famílias? Inevitavelmente, no entanto, como em tudo, não era essa a preocupação das corporações mas antes justificar de forma crível os seus desaparecimentos. Porém, para tudo há uma solução: primeiro, o processo deveria ser levado a cabo apenas nas instalações durante um período de trabalho contínuo que exigiria dos empregados que se mantivessem nas empresas – sob um qualquer pretexto – e, depois, por exemplo, seria publicitado um falso seminário fora da cidade e durante o qual um acidente qualquer custaria a vida a centenas de trabalhadores numa tragédia que provocaria inevitavelmente uma profunda consternação em todos e cada um dos cidadãos. E por que não avançar logo com a ideia do acidente e fazer tudo de uma vez? Ahaa, porque nos acidentes há sempre danos colaterais e nós não queremos que seja eliminado alguma peça-chave da estrutura produtiva. É fundamental perceber – ditava já um memorando para os teus olhos apenas - que isto não é um processo de sangria pura e dura, antes um intervenção cirúrgica bem delineada. Aí têm”.

Andrés desenhou um arco com os lábios e perguntou. Retoricamente, perguntou: E foi um adulto que escreveu isso? Joaquim ria quase em silêncio mas era traído pelo cenho oblíquo e a bissectriz apertada dos olhos. Andrés, Tomás e Jean Pierre estavam tomados por uma expressão vaga, abandonados cada um à sua sorte.

- Aí têm. Vocês vão fazê-lo pelos desgraçadinhos e eu vou fazê-lo pelo Jean – disparou Joaquim.

quarta-feira, julho 01, 2009

O HOMEM

Quando eu era pequeno, vivia a minha vida entre gente viva, num café que pulsava a todas as horas do dia. Com ritmos diferentes, certo, se fosse manhã, tarde ou noite. Mas eram horas que me eram sempre familiares, a mim que reconhecia as nuances do dia sem olhar os ponteiros de 1 a 12. Conhecia o andar do dia pelas piadas que irrompiam pelo café porque era o senhor João que entrava, aquele que arranjava pneus onde eu me espojava como fazem os burros nos lagos de terra quando querem aliviar a comichão das costas na terra que foi a dos meus avós. Os pneus onde cheguei a adormecer por entre túneis que só eu parecia conhecer e onde qualquer outro se perderia sem a minha bússola. Ou quando entrava o senhor Mendes, a quem por respeito e despeito chamavam o Careca - também por falta de cabelo do frontal até à nuca - e tinha na juventude sido atleta do Benfica, campeão na bola, no hóquei, no atletismo e no ping-pong. O senhor Mendes tinha uma oficina de máquinas de escrever, logo ali quase de frente para o café. Perdi-me também entre teclados azert e imponentes máquinas Royal onde metia papéis mal prenchidos com palavras desalinhadas meio vermelhas meio pretas. O café não tinha clientes. Eram amigos que entravam e saíam. Às terças era dia de feira na cidade e era dia de os agricultores aparecerem com cestos vazios para um copinho, que eu constrangido julgava que transformavam o meu café numa tasca mas que estava tão tão enganado nessa repulsa momentânea. Num compartimento à parte havia matraquilhos e flippers e mais tarde os video-jogos que começaram com o Space Invaders, um compartimento de uns 15 metros quadrados onde passei muitas tardes e muitas noites com gente que é hoje importante no país mas que eram apenas uns miúdos que aproveitavam aquela casa de família. Todos os dias havia no ar um aroma a moelas e febras feitas com a mão certa e muito colorau. E os amigos que não eram clientes. Um estranho que contornasse de fora o edifício e entreouvisse de uma porta aberta as frases soltas que andavam no ar presumiria que se matavam ali, mas não, era antes o cada um a dar-se aos outros com tudo o que tinha. E eu estava aberto para receber tudo. Foi a minha primeira e mais importante escola. O café onde se viveram angústias pessoais, íntimas, onde havia lugar para a maledicência também. Houve destruição de carácteres mas sempre um ombro para amparar os caídos em desgraça. Como quando o senhor Alexandre, que tinha a lavandaria, apanhou Alzheimer, e todos sofremos com isso, ou quando o Careca morreu após anos de luta contra o cancro na garganta. De tudo. Gerações inteiras. Pais, filhos, netos, eram impossível que por ali não passassem. Ah; também me perdi entre as fronhas de clientes finos nos cestos de roupa da lavandaria, e claro que dormi umas boas cestas coberto de flanelas e calças por vincar enquanto a minha mãe se afadigava debaixo do Sol à minha procura. Esqueço-me do senhor Oliveira que tinha a papelaria, e que disse um dia que eu tinha pernas e coração de maratonista, mas ele não era homem de cafés, apenas porque não era. E eu também não me perdia entre as páginas dos livros que vendia. Mas lembro-me de um dia o meu pai, depois de eu colocar uma dúvida estranha acerca da língua, pegar em mim e entrarmos na Papelaria Camões: senhor Oliveira, dê-me um dicionário para o Paulo. Há gestos curtos que escrevem panegíricos inteiros. Obrigado pai. Quando há meses lhe peguei na mão enquanto morria e lhe sussurrei ao ouvido obrigado pai, obrigado por tudo, obrigado, obrigado pai, obrigado pai, obrigado foi também por isto. Por tudo isto. Porque ali, naquele café, o cimento de toda aquela gente e sempre a servir-nos a todos - o meu pai.
Dez.

O POUCO QUE FAZER DE JEAN PIERRE


Até que partissem para Espanha, Jean Pierre tentava manter o cérebro ocupado com ninharias, procurando exorcizar aquela ideia de ter de matar um homem. Com pouco para fazer, passava os fins de tarde desinteressado, com todo o tempo do mundo mas sem qualquer interesse em fazer render as horas. Todas as coisas que antes lhe provocavam assombros, as exposições ali ao lado, tardes de livraria e engates de meia tigela a meio da tarde, eram uma ideia estrangeira no território que agora pisava, onde o tempo parecia não passar; os silêncios pesavam-lhe pela casa. Do quarto para a sala, da sala para a cozinha e depois para o pequeno escritório ao fundo do corredor e a seguir a varanda virada para nada. Toda aquela agitação da urbe que sempre o empolgara ali debaixo dos olhos mas ele com as mãos cravadas no mármore malhado da varanda, tudo era agora um esboço de vida, uma folha cheia de traços aguarelados por vezes outras um quadro pastiche mas empastelado a cinzentos, uma coisa parda em que os olhos agonizavam. Como se a vida tivesse parado só para ele. “Que estranha, esta sensação de ainda pertencer ao Mundo”. Era aquele sonho antigo, quando tinha sete anos, noite após noite arrastava-se por caminhos ermos de neve e veredas que levavam a lado nenhum com todo o planeta a perder de vista. A perder de vista, branco e inabitado. E noite após noite Jean arrastava-se rumo ao nada, sem esperança de encontrar vivalma. Como um oráculo que se cumpria décadas depois, eram agora assim os seus dias. Como aquelas noites que o atormentaram aos sete anos. Uma angústia surda da qual não valia a pena gritar – porque apenas ele estava por perto.

Estava numa dessas tardes, com a televisão aos pés, quando lhe surgiu a ideia de escrever uma história. Coisa que não fazia há anos. Era assim a ideia da narrativa: falidas todas as tentativas de controlo social através da reclusão, haviam-se juntado os altos legisladores do planeta para decidir outras formas de penalização. A história pressupunha tempos de revolta – uma nova era em que a tomada de consciência colectiva de uma indigência culta empurrada para as ruas e para os subúrbios fomentava movimentos à escala mundial. Os grandes líderes haviam decidido endurecer a lei com medidas draconianas. Apenas horas após o início da cimeira que reuniu os líderes do planeta, a decisão deixara perplexas até as alas mais radicais do planeta. Ficara assente a criação de laboratórios onde se manteria a cultura de doenças à época erradicadas, para as quais se conhecia o tratamento mas não a cura. Deveriam por isso ser erguidas instalações de alta segurança para manter vírus e bactérias da pior espécie e aos revoltosos seria aplicada a inoculação como medida dissuasora – a pena de morte pouco continha do horror e do sofrimento instigado pela nova lei.

Jean Pierre estava no início do guião, quando se preparava para acrescentar como as organizações de rua procuravam o assalto a esses complexos para se apoderarem de um ou dois vírus, quando tocou a campainha. A vizinha de frente, uma velhota simpática, estava a fazer mousse de chocolate e faltava-lhe açúcar. Afinal faltava-lhe mais. Insistiu – daquela forma negligente de quem não consegue pedir – para que Jean Pierre a ajudasse a medir um quarto de litro de leite. Porque os olhos já não ajudavam. Porque os óculos estavam perdidos algures entre o quarto e a sala. Jean não pôde deixar de aceder. Aceder. Deixar-se ir. Como quem vai carregar um peso por cinco minutos e põe o cronómetro a trabalhar. Mas talvez nada disso fosse assim. Talvez cinco minutos fossem uma encruzilhada da vida com um destino mal amanhado. Nada de mais, era essa afinal a sua especialidade. Deixar-se ir. A chave rodou duas vezes na mão da velha senhora, que na sua mania de velha, apesar de a viagem até ao apartamento do vizinho Jean exigir apenas o arrastar dos chinelos por um corredor de quatro metros, não pôde deixar de dar duas vezes à chave como se fosse ao minimercado da esquina ou tomar chá com as amigas ao café da ali em baixo. Quando a seguiu para a penumbra do apartamento, de imediato uma angústia se apoderou de Jean Pierre. A solidão alojara-se em cada canto do exíguo apartamento onde os móveis se encostavam contra as paredes para poderem respirar. Poucos centímetros após a porta e já ele estava a andar de lado para ultrapassar cadeiras e mesas e sofás e cadeiras e mesinhas e evitar pontapear pés de mesas retorcidos em cornucópias sólidas e de arestas agressivas. A cada passo que dava, Jean Pierre respirava a resignação. Uma vida de devota levada com terços à tardinha e missas ao alvor dos domingos. Toda uma existência dedicada ao velho capitão de infantaria de bigodes resolutos e cujos olhos continuavam a impor sentido a partir das dezenas de pequenas e maiores fotografias que ora dependiam das paredes ora estavam obliquas à madeira escurecida do móvel em que assentavam. Da parede ou do mobiliário, sempre aquele semiperfil em que inchava o peito numa atitude intimidatória, a dar crédito à possibilidade de um dia os lábios se abrirem num berro de huno nos campos de batalha. Huno ou outra estirpe qualquer. Entre a sala e a cozinha era ainda um homem duro que submetia a velha senhora a conquistar-lhe humores com monossílabos puros e recatados que ainda tinham sucedâneo em miradas de viés e evocações quase laudatórias “Ah, o meu marido, era capitão sabe”. Afinal, talvez nada lhe tivesse faltado. “Se me encontrasse os óculos é que me fazia um grande favor”, disse como se de facto não estivesse a dizer nada. Vista de onde o Jean Pierre se encontrava, o queixo tremia-lhe no fim da cara, um desenho de quarto decrescente. Um pedaço de lua decrépita a apontar para nada. Uma cara curvada pela ausência da prótese dentária que esquecera atrás de um bibelot qualquer. Curvada, triste, talvez não. Engelhada por anos de cismas. Por anos de morte lenta.

Jean Pierre ajudou-a com o leite e começou a sentir-se esgotado. Cinco minutos. Nada fazia sentido. Aquela velhota existia mas nada fazia sentido. A situação atordoava-lhe a razão. A casa. Jean Pierre não podia estar a pisar os esconsos da existência. Que limiar acabara de atravessar não o sabia e estava cansado, esgotado. Enquanto passava o hall e entrava em casa sentiu o peso de uma névoa cinzenta nos ombros. Os olhos fechavam-se, por força do que se deixou cair no sofá de pele cor de champanhe. Acordou muitas horas depois com imagens do liceu frente a culturas de bolor nas aulas de biologia. Ah!, a história dos novos regimentos do mundo. Tinha os olhos vermelhos e colados; dormira com as lentes de contacto, mas não o sabia ainda. Quando pôs os óculos deixou de ver – estava confuso. “Quem raios é afinal a velha viúva do capitão de cavalaria?” Sentado em casa, enquanto contemplava as suas misérias, os olhos embaciados entre o jarro de porcelana na prateleira de cima na cristaleira da cozinha e para a qual tinha perfeito ângulo de visão desde o sofá da sala. Tinha dúvidas. Há anos que não tinha dúvidas mas nessa noite estava cheio de dúvidas. Os olhos tremiam-lhe e transformavam a sala numa aguarela. Não eram dúvidas – era só angústia. Chorava? Quase. Limitava-se a um lacrimejar ténue, não mais do que isso. Evitava fechar os olhos para que a vida não lhe passasse como um filme e, debilitados como estava, vagueava sem rumo entre os canais da televisão. Hesitava entre o choro num programa com música de Satie e masturbar-se nos canais para adultos. Tudo para Jean era naquela noite como fora sempre a sua vida, uma hesitação entre fraquezas, sobretudo um medo terrível de querer de facto empenhar-se em fazer alguma coisa. Uma claustrofobia lancinante prendia-o ao sofá com os olhos a vaguearem entre os armários da cozinha e restos do prédio em frente que assomavam numas aberturas da varanda. Lá fora, outrora refúgio de fins de tarde, o pátio que da varanda via à distância começava a desaparecer. Bocados de ferro forjado a bordejar cimento nu e alicerces de betão armado de onde despontavam pontas do metal a prometer novas filas de apartamentos escondiam-lhe fins de tarde a ver o jardim e as peladinhas até ao Sol se pôr. Tudo isso acaba-se e passou a voltar-se para a casa. Sintonizou um canal de HOTBABES e desapertou as calças.