sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Era tudo verdade e há-de continuar a ser

Enganei-me e esqueci-me. Embalado por um Benfica de ataque, só no final do jogo me apercebi que no canal ao lado já tudo se estava a passar no Vale do pequeno Huw. Apanhei o Donald Crisp a decidir o futuro do filho: ...e depois a universidade, para ser médico ou advogado? O pequeno preferiu as minas. Trabalho digno, acrescentaria a mãe. Se era bom para os irmãos por que não o haveria de ser para Huw. E também é disto que se faz aquela obra-prima. A grandeza humana em todas as condições. Ou nobreza. Não o disse há dias, digo-o agora.

Tive ainda tempo para ver o professor de boxe responder ao antigo lutador, quando este o incitou a descer à mina para resgatar feridos de uma explosão: "No. There's a coward I am. But I'll hold your coat".

Muito haverá para sempre a dizer sobre o vale que era verde. Não o disse, mas há ainda a luta pela vida, a luta entre classes e o crescimento do espírito humano. A pequenez das mentes que corroem as vidas em comunidade. E o cheiro das coisas que nos ficam como marcos da infância. E um joelho esfolado e um nariz esmurrado. E, mais uma vez, como ser inteiro não exige elevadas quantias em dinheiro, apenas a "massa" rectilínea que faz os grandes homens. Que não vêm obrigatoriamente nas enciclopédias, que podem estar ao nosso lado, na nossa rua, na tasca entre cheiro a coiratos e tinto mal entornado.

É curioso que até nesta minha escolha para filme da minha vida esteja tudo aquilo que eu me forço todos os dias a ser. Quando o vi, há muitos anos, foi nesta gente que eu assentei os meus arraiais. Os supostamente mais fracos.

Um abraço (a não mais do que meia dúzia de leitores, suponho). Até logo

quinta-feira, fevereiro 26, 2004

Regresso à origem

Nada para mim é mais sedutor, hoje, do que poder falar em aramaico. Como se pede um café às 11:35 no Galeto, em aramaico?

Fiquem-se com este hebraico antigo (passagem maior dos Salmos; está no Antigo Testamento):

Súr may-ráh va-ah-say-tóv,
Ba-Káysh sha-lom va-rad-fáy-hu

(Em inglês, dita:) "Depart from evil. Do good. Seek peace, and pursue it."

Um abraço, até já

quarta-feira, fevereiro 25, 2004

Blog stays home. art goes to little screen

Amanhã, precisamente quinta-feira, a renovada "2" passa o filme da minha vida. Entre os clássicos de um John Ford dado a histórias mais musculadas, é este o meu clássico. De 1941, e apesar do cinzento-escuro dos cenários, este é um filme sempre fresco e novo. Aquela vila de carvão arrebatou-me muito antes de eu saber que tinha arrebatado óscares a rodos.

Ví-o mais de vinte vezes, só numa noite passou-me água benta pelos olhos em três sessões de cassete. Já chorei desalmado quando o pequeno Huw (Roddy McDowall no seu único filme de jeito, que eu me lembre), sentado sozinho à mesa com o pai (um soberbo Donald Crisp) - depois de os irmãos mais velhos terem abandonado o jantar e a casa - agita impaciente os talheres para pouco depois aquele mesmo pai atirar com suavidade: "Yes my son, I know you're there". E então, o sorriso de dentes largos do jovem Huw.

E é também o filme em que Walter Pidgeon, na cozinha dos Morgans, se vira para Maureen O'Hara e verte: "You will be a Queen wherever you are/walk".



Não vou dizer mais, um blog não chegaria.

O título é em português "O vale era verde". Mas eu continuo a preferir a musicalidade de "How green was my valley".

Um abraço, até logo

terça-feira, fevereiro 24, 2004

Vertebrados versus invertebrados

Quando um dia indagava do que era a existência, a razão de ser, o sentido da vida, teria eu uns vinte anos, a única imagem que se me afigurou, já madrugada adentro, foi um abismo, um buraco na história. Coisa apenas provocada pela ausência dos personagens maiores. Coisa que eu também quis para mim. Desde esse dia, passei eu a medir a importância do ser com o vazio que se deixa quando insistimos em abandonar o corpo material.

O sedentário insiste em dar-me presentes como se os meus dias arredados do blog inquietassem a alma dos meus amigos. Sinto-me lisongeado por o pequeno vácuo a que me vou vendo obrigado pelo meu anjinho obrigar à ameaça. Obrigado, Grande Carlos.

Há muito que eu queria escrever sobre uma coisa simples, das mais pequenas como diz acima. O título poderia ser: Como eu descobri que Portugal é um país de pequenos.

As coisas tendem para mim a ser simples e a decorrer com os momentos, os processos, os dias. Dei-me eu conta de que muitas vezes a arrogância toma as rédeas das relações entre pessoas. De forma quase natural, quem ordena assume posturas de prima donna. Só há poucas semanas percebi a pequenez em que vivem essas pessoas acabrunhadas e mal dispostas. Aquele que descarrega a sua prepotência sobre o mais fraco - além de demonstrar a mais pura cobardia, porque sabe que não deve esperar reacção - é na realidade um ser constrangido, que se sente inferior. Ou, no mínimo, que já se sentiu inferior. Porquê? Muito simples, essas pessoas não agem de ânimo leve. Sabem exactamente o efeito que vão provocar em quem amesquinham. E por que o sabem? Porque eles, no seu lugar natural já o sentiram e o sentem sempre muito provavelmente. São eles, de facto, quem é pequeno e apequena este Portugal. Procuram instigar esse medo curto de dignidade porque eles próprios estão por sua vez constantemente submetidos à sua hierarquia, essa hierarquia raquítica que impede e imobiliza e apenas permite a passagem de testemunhos de angústia nessa cadeia que tudo alimenta menos a civilização.

Disto salva-se o homem, tantas vezes comum, que se mantém erecto de coluna, e isso não se aprende nos palácios, nos nomes de consoantes dobradas ou nos títulos das academias. Ser inteiro depende da nobreza de cada um, como nos pugilistas, depende de ter um coração grande. Mesmo quando estamos no canto, nas cordas ou a ir ao tapete.

É isto o que eu penso. E todos os dias me pergunto se o que eu penso é o que sou.

Um abraço e até logo